Michelangelo - Pietà (imagem wikimedia commons) |
Heraldo Palmeira
A mulher
miúda era jovem quando chegou a Brasília. Naquele tempo, o lugar ainda era
muito mais um grande acampamento, um esboço de qualquer coisa parecida com uma
cidade devidamente instalada. Reinava certa desorganização, mas as pessoas que
chegavam ao planalto central do Brasil tinham certeza de haver encontrado o
eldorado.
A mulher
miúda era, naqueles tempos, uma moça até atraente. Tinha lá seu charme
brejeiro. Em pouco tempo, entrou num nicho profissional que movimentava muito
dinheiro e era dos mais tradicionais em qualquer ponto do país: a venda de
joias de mão em mão. Um
tipo de negócio que prosperava alimentado pelo insumo inesgotável da vaidade.
Mesmo com
todas as suas precariedades, Brasília já abrigava um mercado robusto de
consumidoras ávidas, mulheres que desejavam conceder-se alguma recompensa por
terem ido viver num lugar que oferecia basicamente vastidão, improviso, poeira
e solidão.
A clientela
era formada principalmente pelas funcionárias públicas, o que levou a mulher
miúda a conhecer todos os labirintos da Esplanada dos Ministérios e os prédios
das autarquias e demais repartições. Nos finais de semana, aproveitando a
propaganda boca em boca que as clientes tradicionais faziam para as vizinhas, ziguezagueava
pelas superquadras em busca das esposas dos funcionários públicos que não
trabalhavam fora.
Quando ela
chegava com aquele pano aflanelado azul em formato de cilindro, repleto de
cordões, pulseiras, brincos e anéis desembrulhava sopros dourados e prateados
de alento. Uma espécie de mescalina oftalmológica. Aqui e ali tomava um cano, era
um dos riscos do negócio. Mas aprendeu logo a estabelecer limites de vendas por
cliente e a fazer reserva financeira para cobrir as fatalidades.
Nem bem
tinha completado dois anos em Brasília, apaixonou-se pelo representante de
negócios de uma multinacional. A sede brasileira da empresa ficava em São Paulo , mas o fulano
tinha escritório bacana montado no Setor Comercial Sul da nova capital “para facilitar
os negócios”, como costumava dizer. Como vivia viajando de avião entre as duas
cidades e tinha até ar refrigerado no escritório, ela tinha certeza de que ele
era um homem muito importante.
Visitou o
namorado uma única vez no trabalho e não fazia perguntas. Um dia, o sujeito não
retornou mais e a mulher miúda teve um pressentimento estranho. Num telefonema ao
escritório que ele chefiava, soube que seu homem era casado, tinha dois filhos
pequenos e morrera de câncer. Mal se refez do golpe, descobriu-se grávida
daquele amor improvável. Tinha vinte e cinco anos quando deu à luz um menino.
Ficou estarrecida com o diagnóstico de paralisia cerebral que acompanhou o bebê
para casa.
A partir daí
ela dedicou todas as forças ao seu menino. Não tinham parentes em nenhum lugar.
Sobraram apenas os dois, era um pelo outro e ninguém mais. Os tempos mudaram
muito, tirando do mercado aquele negócio de vender joias de mão em mão. A sorte é que os anos
em corredores públicos lhe garantiram certa visibilidade, a ponto de um senador
ficar compadecido e transformar a mulher miúda numa espécie de faz-tudo
extraoficial do gabinete, enquanto teve mandato. Desde então, foi assim, às
migalhas, que obteve o sustento dela e do filho.
Mal acabou
de completar 75 anos e recebeu diagnóstico de câncer. Os médicos indicam
cirurgia. A mulher miúda, agora grisalha e ainda mais miúda, passou a viver o
maior dilema de sua vida: fazer ou não essa cirurgia. Tem medo de morrer, não
pelo simples medo da morte. Sabe que, morrendo, estará levando à morte seu
menino, que completou 50 anos.
É claro que
ela entrou em pânico, já que não há parentes e ninguém, além dela, para cuidar
do grande parceiro agora homem feito. Para fugir do desespero tem reforçado
suas orações, clamando pela misericórdia Divina. Não ousa pedir para continuar
vivendo; não quer de forma alguma incomodar a Deus com uma bobagem dessas. Seu
desejo ardente é que o Todo-Poderoso leve seu menino um pouquinho antes dela.
Aí, sim, estará em condições de morrer em paz.
Heraldo, uma história comovente que me tocou de modo particular porque conheci um caso parecido, só que em vez de mãe e filho tratava-se de uma senhora de idade cuidadora de um irmão mais novo. Deus atendeu as preces da senhora.
ResponderExcluirTive uma tia (postiça, mas tia, ele era o irmão da minha mãe)com um filho só, doente. Meu tio morreu bem antes dela. E os parentes do mesmo prédio foram indo embora, um atrás do outro.
ResponderExcluirEla tinha esse mesmo desejo da moça de que você fala. Que o filho morresse antes dela. Ele foi, com 50 e tantos anos.
Há vidas mais e menos difíceis, não é, Heraldo? E a ante não sabe por que motivo. Os espíritas têm uma boa explicação.
Talvez estejam certos, como saber?
Bom dia
Ofelia
PS: Essa sua história foi triste.
Consertando: 'E a gente não sabe por que motivo'.
ResponderExcluirAh: Laços de Ternura foi um filme bonitinho, no qual a mãe Shirley MacLaine perde a filha Debra Winger, já adulta, para o câncer.
ExcluirRelato trágico de uma das milhares de mulheres que imigraram para Brasília em busca de trabalho.
ResponderExcluirGosto dos detalhes que Heraldo dá aos seus personagens, facilitando que seus leitores imaginem como seriam também na concepção de seu autor.
Reitero o talento de Heraldo na confecção de dramas e tragédias pessoais, um notável escritor nato, que Conversas do Mano tem como um dos seus articulistas!
Um forte abraço.
Saúde e Paz!
1)Parabéns mais uma vez Heraldo, gostei muito do seu artigo.Gosto desses depoimentos que enaltecem bravura, heroísmo.
ResponderExcluir2) Me chamou a atenção a mulher corajosa, guerreira, que luta pelas coisas de que precisa.
3) Contemplei-a pelos corredores das repartições públicas.
4)Vi minha querida e amada Brasília no início e
5)Faço votos que a Providência Divina atenda o pedindo da miúda ou arranje solução melhor.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirNesta crônica irretocável percebo uma característica que, da sua Bic, só havia lido nos contos: o epílogo, embora anunciado, chega como um soco no peito absolutamente inesperado.
Abração
Olá Heraldo,
ResponderExcluirHistória triste e bonita que conta muita história real. Acho que é o medo e a oração de toda mãe de filho deficiente.
"...desembrulhava sopros dourados e prateados de alento." Lindo. Deve ser isso que uma jóia traz.
Até mais.
Estranho. Seria muito humano a miúda haver pensado nela propri a dar cabo de seu filho. Ou tomarem cicuta juntos e de mais dadas... Menos embaraçosa a humanidade que não entra em desespero e entrega a Deus. Que fique um aviso: façam um bom seguro em nome de um vulnerável que não tem como sobreviver sem a nossa ajuda. A morte também seria menos amarga. Anunciada ou não. O fato é que nalguma hora todos nós deparamos com as nossas imprevidência. Heraldo, quanto mais você escreve, melhor fica! Bom findi.
ResponderExcluirEmocionante!
ResponderExcluirBEla e comovente história amigo!! Muitas miúdas temos pelo Brasil afora ...
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