Antonio Canova - Paulina Buonaparte, principessa Borghese (imagem Domingos Ferreira) |
Domingos Ferreira
A recepção oferecida pelo comandante militar da região à força naval visitante,
brasileira e americana, começara a ficar animada. Após várias rodadas de uísque
doze anos, tequila e rum, acompanhadas por um magro serviço de canapés, o
álcool destravara as línguas e o burburinho evoluíra para um vozerio alto e
gargalhadas nada protocolares. Havia uma nítida predominância do espanhol
caribenho, secundado pelo portunhol dos oficiais brasileiros e o inglês dos
americanos, em minoria, mas dominantes. Afinal de contas, a doutrina e o
equipamento eram deles, e os corações e mentes estavam sob controle. O ar
condicionado do grande salão dava sinais de derrota frente ao calor tropical e à
grande animação dos participantes.
Como ocorre nesses coquetéis, puramente masculinos, formaram-se várias
rodas onde se falava desde a operação conjunta das Marinhas, até futebol,
mulheres e o que visitar na cidade. O general, chefe de gabinete do anfitrião,
capitaneava um dos grupos mais barulhentos. Era um homenzarrão cuja voz fazia
justiça a seu tamanho. A figura se completava com um uniforme chamativo e
gesticulação teatral, que o ajudavam a exigir atenção. E ele gostava disso.
Alberto, comandante de um dos navios brasileiros, fazia parte dos
ouvintes do general Contreras, discorrendo entusiasmado sobre a pesca de
marlins nas águas azuis, em frente às belas praias de seu país. Ele acabara de
fisgar um desses peixes, enorme, lutador, incansável, valente... A audiência
ouvia em silêncio obsequioso enquanto o narrador trazia o peixão para perto da
lancha de seu amigo milionário, com muito cuidado para não arrebentar a linha. No último instante, anterior ao
clímax da estória, Alberto, na quinta dose de uísque e querendo agradar,
interrompeu o general com uma pergunta inoportuna sobre o estado do mar na
ocasião.
Contreras, no esforço de puxar o peixe para bordo da lancha com um arpão,
interrompeu o movimento dos braços e parou, no meio da frase, enquanto fixava
perplexo o comandante. O constrangimento foi generalizado. Alberto percebeu o
tamanho da gafe e teve o impulso de sair dali.
O general foi mais rápido. Respirou fundo, ignorou a pergunta, e
reiniciou a narrativa, mais devagar e em tom uma oitava abaixo. Manteve o olhar
fixo em Alberto e contou tudo só para ele, em detalhes. Botou o marlim para
dentro, amarrou o bicho que lutava pela vida, voltou com a lancha para o cais,
mediu e pesou o peixe (um recorde!), fotografou-se com o troféu...
Passado algum tempo, ambos se deram conta de que o grupo estava reduzido
a poucas pessoas. Contreras, bem abastecido de tequila, parou de falar e olhou
em volta. O salão estava meio vazio. Pegou o comandante pelo braço e o levou
para outro grupo, onde estava um coronel, seu ajudante, a quem disse:
- Anastásio, a recepção aos nossos amigos brasileiros está no fim, mas a
noite apenas começou. Você toma conta do comandante, enquanto vou ajudar o chefe
a despedir os convidados.
- Si, mi general!
- Outra coisa! Forme um grupo de
companheiros nossos e convide alguns brasileiros para irmos todos terminar a
noite na "Fortaleza". O comandante aqui é meu convidado de honra. E
não quero saber de gringos “cabrones” no grupo, porque não entendem nada disso!
Já basta inventarem essa história de Guerra Fria, para nos meterem no meio, com
essa “mierda” de “segurrããnça continental!”...
- Si, mi general!
Alberto ainda tentou reagir, mas o general o ignorou e se afastou rumo à
saída do salão. Anastácio logo começou a cumprir as ordens recebidas. Isso deu
oportunidade ao comandante para respirar e se amaldiçoar pela idéia de ter
feito aquela pergunta infeliz, que ele já havia até esquecido. Estava muito
cansado dos últimos dias agitados e sem dormir direito, durante os exercícios
no mar. Só pensava em voltar para bordo, tirar o uniforme e desabar na cama em
seu navio. Além disso, iria acordar cedo no dia seguinte para comparecer a mais
uma cerimônia, no monumento a um herói nacional, seguindo-se a despedida do
país visitado.
Não houve tempo para mais nada. De repente, o grupo se formou e o general
apareceu com todo gás e mais um pouco de álcool. O coronel tangeu os convidados
para o estacionamento, onde embarcaram em dois carros e uma camioneta pequena. e
o comboio partiu para a "Fortaleza". No carro do general, estavam
Anastácio e Alberto, convidado de honra.
Como de costume, Contreras falava sem parar. Agora o assunto era “segurança
nacional”! Ele estivera no Brasil, havia pouco tempo, a convite do regime
militar, e esse conceito, implantado por influência americana, fora muito debatido.
O general dizia a expressão em portunhol reverso, tentando ser gentil. Falava
"segurããnzza nacional"... Além disso, toda vez que terminava uma frase
com muita ênfase, Anastásio, rebatia do banco da frente:
- Si, mi general!
Alberto fazia um esforço enorme para prestar atenção, mas seu pensamento
estava longe e o corpo entorpecido. O comboio se deslocava em alta velocidade
por uma estrada secundária escura, fora da cidade. O general passou a dar
instruções a Anastásio, em voz baixa, ao que ele assentia com movimentos de
cabeça.
O carro reduziu a velocidade e parou na porteira do que parecia ser uma fazenda.
Alberto, na expectativa de um portão de fortaleza militar, com sentinela e
tudo, demorou a compreender. Mas entendeu tudo quando o porteiro, com paletó
branco engomado e gravata borboleta preta, abriu a cancela com uma ampla mesura.
O alegre comboio adentrou na área e se
aproximou de um casarão, encimado por um anúncio em neon que dizia: "Fortaleza
Galante". Esse nome paradoxal fora resultado de uma difícil negociação
entre o governo e o pragmático português, dono do negócio. De fato, ele atendia
bem aos interesses de ambas as partes.
A chegada do grupo no casarão foi antológica, Contreras à frente, íntimo
de "madame" Carmem, foi recebido em grande estilo. O grupo fardado, parecia
vir para uma reunião de estado-maior. Ao contrário do coquetel, o salão estava
cheio de mulheres jovens, com roupas caras, perfumadas e maquilagem exagerada.
A decoração era pesada, com predominância de mármore, vidro e gesso, em
contrafações de esculturas greco-romanas. Sofás e poltronas, forradas com
veludos de cores vivas, completavam o ambiente gigolô cafona, importado de
Miami.
Fez-se um semicírculo silencioso, com "madame" e o general ao
centro, ladeados por Anastásio e Alberto. Contreras falou por alguns minutos,
com os olhares do grupo fixados no chão, sobre a importância da ocasião para as
relações entre os países ali representados e para a "segurããnzza
coletiva". Encerrou exaltando as moças a darem tudo de si, pelo
entendimento continental, e desejando bom proveito aos convidados.
As luzes foram reduzidas, a música começou e serviu-se champagne francês.
Antes que a coisa engrenasse, Anastásio reduziu o som e pediu atenção. Dizendo-se
“ecônomo”, informou que todas as
despesas estavam pagas, no que foi aplaudido com entusiasmo. Disse, também, em
tom de boletim interno, que o comboio partiria dentro de duas horas e quarenta
e cinco(!) minutos, como planejado, no que foi
ruidosamente vaiado.
Na mesa do general e Carmencita, estavam Anastásio e Rosita, velha
conhecida dele, e Esmeralda, a mais nova aquisição da casa, com um ar
constrangido. Era uma bela morena esguia, de pele clara e cabelos longos e
soltos. Carmencita não parava de elogiá-la para Alberto. Este, sentado ao seu
lado, meio sem graça, constatava que não frequentara um ambiente daqueles desde
aspirante. Contreras supervisionava o ambiente e aprovava as palavras de
"madame", com um sorriso satisfeito.
Conversa vai, conversa vem, o champagne e a beleza de Esmeralda começaram
a fazer efeito. Pouco depois, o comandante e ela se levantaram e foram para a
suíte presidencial, recomendação expressa do general. A cabeça de Alberto
girava, o perfume e os braços de Esmeralda o envolveram e ele, reunindo forças,
possuiu aquela mulher linda e triste. Foi um ato burocrático, no qual Alberto
se surpreendeu com a evidente inexperiência de Esmeralda, na coreografia
profissional desse tipo de relação.
Dormiu como uma pedra. Um pesadelo com Anastásio o acordou em sobressalto,
sem saber onde estava. Tentou ver as horas, porém esquecera o relógio a bordo.
Surpreso e enternecido, olhou por alguns instantes para Esmeralda, nua, bela e
exausta, ressonando baixinho. Vestiu-se com cuidado e saiu sonolento da suíte,
em direção ao salão. A música estava mais baixa e poucos companheiros haviam
regressado dos quartos. Mas o inefável general estava no posto, cochilando
recostado em "madame", que o acordou, ao se aproximar Alberto.
Estremunhado e de mau humor, Contreras mal esperou ele se sentar para
perguntar-lhe por que havia demorado tão pouco no quarto. Não gostara da mulher
escolhida para ele por "madame"? Carmencita tentou intervir, mas o
general começou a elevar a voz, despertando a atenção de quem estava no salão.
- “Capitán”, você passou menos de uma
hora com a mulher mais nova e bela da casa, recém-chegada, reservada para Sua
Excelência, o Mariscal Presidente, que ainda nem a conhece. O que aconteceu?
Alberto tentou ensaiar uma explicação, mas foi interrompido pela chegada
de Esmeralda. Ela acordara assustada com o vozeirão de Contreras e voltara
correndo para o salão, esbaforida e em desalinho. O general conteirou sua
indignação para ela:
- Você tratou mal nosso convidado de
honra? O que aconteceu? Quantos "palos" foram? Diga, quantos
"palos" foram?
Esmeralda, totalmente desarticulada, não teve coragem de responder aos
gritos do general, mas levantou timidamente o dedo indicador da mão direita, em
direção a ele.
- "Uno palo! Uno palo solo?!" - urrou Contreras indignado, voltando-se surpreso para o comandante.
Alberto, perplexo com o que acontecia, viu a inutilidade de argumentar
com Contreras. Enlaçou a cintura de Esmeralda, que chorava muito e, com passos
decididos, atravessaram o salão e subiram a escada em direção à suite. Alberto foi
gentil com ela e conversaram muito. De fato, ela chegara havia dois dias e
aguardava a vinda do Mariscal, em uma grotesca paródia do direito do senhor
feudal. Seria só dele, caso aprovada. Entre lágrimas e abraços, contou ter sido
expulsa de casa pelo pai intolerante, após o aborto de um filho com um primo. Alberto
ouvia tudo com atenção e se empenhava em acreditar no que lhe era dito.
A conversa foi interrompida por um telefonema de Carmencita, informando
que todos tinham ido embora (na hora prevista por Anastácio!) e que um dos
carros ficara à disposição do “Capitán”. Isso fez os dois relaxarem de vez,
ajudados pelo champagne que acompanhava a conversa. A situação era
completamente diferente agora e a forte atração, evidente entre eles, se impôs
para valer. Amaram-se com muito carinho e desespero no resto da noite...
O sol batia forte no piso do entorno ao monumento, onde ocorria a
cerimônia. Alberto, protegido por convenientes óculos escuros, suava muito
dentro do uniforme trocado a bordo, às
pressas. Regressara para seu navio ao amanhecer. Esmeralda o acompanhara, sofrida,
até o estacionamento, contrariando as normas da casa. Com um beijo infinito, a
despedida fora muito dolorosa para ambos.
A cerimônia terminou. Alberto foi ao encontro de Contreras que estava junto
ao Mariscal Presidente, cuja visão doeu no coração do comandante. O general separou-se do grupo de altas
autoridades e veio em sua direção, com um semblante amistoso.
- E então, “mi capitán”, está tudo na
mais perfeita "segurããnzza nacional"?
- “Mi general”, eu queria me despedir do
senhor e agradecer suas atenções para comigo.
Contreras não se conteve e abraçou Alberto, perguntando-lhe ao ouvido:
- Como é, quantos?... quantos
"palos" foram?
Separaram-se. O comandante fez uma continência cortês para o general e respondeu
com um meio sorriso, entre maroto e triste, em portunhol caprichado:
- "Muchos, mi general, muchos palos!..."
O navio se dirigia veloz rumo ao ponto de encontro para os exercícios na manhã
seguinte. Alberto estava no laís do passadiço (lado de fora da área de comando),
descoberto e com luz apagada. A noite sem lua era um breu, o mar estava calmo e
soprava uma brisa forte pela proa. A cena era dominada pela espetacular abóboda
celeste, cravejada de incontáveis estrelas, onde se destacava Sirius, imensa,
observando a tudo e a todos, silente e distante.
Marinheiro de muitos portos, Alberto rememorava, em um misto de surpresa
e carinho, os fatos incríveis vividos nas últimas horas. Com muita ternura e um
nó na garganta, lembrava os loucos e lindos momentos passados com Esmeralda,
graças ao general Contreras, instrumento do Destino.
Nunca mais se viram, nem se comunicaram. Contudo, em uma cumplicidade
remota, sempre tiveram certeza de que um jamais esqueceria o outro. Uma saudade
que valia a pena sentir...
(*) Sonata - peça musical para poucos instrumentos e tema desenvolvido em
três ou quatro movimentos.
Primoroso relato de um possível encontro entre militares latino-americanos.
ResponderExcluirA cena, muito comum em se tratando de se encerrar a noite nas dependências de um lupanar e mulheres atraentes e sensuais, fugiu à regra quando a companhia escolhida para agradar o visitante brasileiro era inexperiente, pouco desenvolta nas lides sexuais.
O generalíssimo, enquanto mandava e desmandava, apenas esquecera que a sua autoridade e macheza se resumiam aos galardões que se concedera e que ostentava, pois adormeceu ao lado de "madame", sem que a sua performance íntima pudesse ser avaliada e comparada!
Um artigo diferente, bem escrito, com detalhes que facilitaram e muito imaginar-se os ambientes onde esta situação tenha se desenvolvido.
Gostei do texto, e parabenizo o seu autor.
Estimado Francisco
ExcluirA vida marinheira é aventurosa por definição. Muitas vezes, acontecem coisas as mais inesperadas em circunstâncias beirando o absurdo.
Para mim, tem sido um grande prazer ter ingressado neste grupo de amigos de grande sensibilidade e gratificante erudição.
Muito obrigado por suas palavras.
Um forte abraço
Domingos
Estimado Francisco
ExcluirA vida marinheira é aventurosa por definição. Muitas vezes, acontecem coisas as mais inesperadas em circunstâncias beirando o absurdo.
Para mim, tem sido um grande prazer ter ingressado neste grupo de amigos de grande sensibilidade e gratificante erudição.
Muito obrigado por suas palavras.
Um forte abraço
Domingos
Prezado Domingos,
ResponderExcluir"Os marinheiros têm uma mulher em cada porto"....
Essas foram as suas primeiras palavras nas Conversas nos anunciando muitas outras excelentes histórias. Como a de hoje, tão bem narrada e na qual surge, ao som de uma sonata allegro ma non troppo, outra mulher apaixonante , outra Esmeralda, só que muito mais triste e protagonista de um destino bem mais amargo do que o da ascendente , daquela inesquecível cigana , que conhecemos ao som de um “pasodoble” se desvestindo de uma roupa de toureiro e livre para escolher o marujo de seu encanto e de segui-lo portos a fora.
Quanto à sonata de "um palo só", nem sempre tem que rolar uma sinfonia. Não vejo nada de errado, de vez em quando, com um tranquilo lullaby (rsrs)
Quanto à pergunta recorrente do generalíssimo lembrou-me de que nas minhas paragens adolescentes - leia o Posto 4 de Copacabana - a galera de então perguntava: "Apagou quantas velas?"
Grande texto e , por favor, nos mande mais.
Abraço
Amigo Moacir
ExcluirVocê tocou em uma das minhas fixações ao comentar as duas Esmeraldas. Na verdade, essa insistência deriva da Esmeralda de Vitor Hugo,na obra prima "Notre Dame", a qual violenta a moral da época e é enforcada, terminando enterrada com Quasímodo, apaixonado. Anaken!
Quanto a "apagar velas", vou pensar no caso, nas caminhadas no calçadão do posto 4, onde moro.
Olá Domingos,
ResponderExcluirSua história é muito divertida, e contada de uma tal maneira que fiquei curiosíssima para saber o fina! Que também foi muito bom. Você é um romântico!
Até mais.
Amiga ANA
ExcluirVocê tem razão. Sou um romântico arrebatado!
Um abraço agradecido.
Domingos
Bela história, Domingos, muito bem contada. Suas histórias trazem aquela força das aventuras vividas. Esperamos que venham ainda muitas mais assim.
ResponderExcluirUm abraço do
Mano
Caro MANO
ExcluirMuito grato por suas palavras
Ainda tenho muitas histórias para contar.
Um grande abraço
Domingos
1) Bom artigo, ótimo cronista com toques de humor.
ResponderExcluir2)Me fez lembra da minha adolescência.
3)Amigos me levaram para visitar "Sete Quedas e Pingo D´água", localidade parecida com o texto acima descrito, na barreira do DF com Goiás.
4)O amigo que dirigia a Variant do pai era um cabo de exército, frequentador habitual do espaço, já conhecia parte do público.
5) Então exclamou:"Ainda bem que hoje não tem os Fuzileiros Navais, eles chegam em bando e tomam conta de tudo".
6)Esse amigo, gente boa, morreu jovem, atropelado ma W-3, antes de Brasília ter sinais.
4
Estimado Antonio
ExcluirMuito obrigado por seu estímulo.
Vou trazer os fuzileiros navais para esse blog.
Não vai sobrar nada!
Abraço
Domingos