El Greco - A agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras |
Moacir Pimentel
Voltamos para o Museu da Santa Cruz, depois de um
almoço frugal em um dos bares de tapas da Praça de Zocodover, para retomar a
retrospectiva da arte do Grego que não pertencia ao passado, ao mundo da
Renascença e ao maneirismo, mas ao futuro, com ênfase na imaginação dos
artistas, em vez de na reprodução da natureza ou realidade. O certo era que,
durante os quatrocentos anos depois de sua morte, e menos de uma centena após a
compra da Agonia No Jardim pela Galeria Nacional da Inglaterra, o quadro que
vemos acima, o pintor cretense sacudira muitos gênios, agitara muitas paletas.
Isto restou-nos evidente na contemplação das
últimas e mais extravagantes obras do artista, tais como a Abertura do Quinto
Selo, nas quais as figuras foram alongadas além da credibilidade e suas formas
foram desmaterializadas por pinceladas que apelam fortemente ao gosto moderno.
O Grego fizera das figuras alongadas, das formas
torcidas, do esforço radical e das cores irreais a própria base de sua arte. A
diferença era que ele tornou esses efeitos profundamente expressivos, e não
apenas emblemas de virtuosismo. O precursor de tanta modernidade angustiada não
era moderno em tudo, ele era atemporal.
Essa última parte da narrativa O Grego,
reconstruída amorosamente pela exigente exposição em Toledo, envolvera um
resgate póstumo do pintor da obscuridade, séculos mais tarde. Como o Caravaggio
seu contemporâneo, o Grego fora um forasteiro canônico, e, portanto, uma
espécie de praga. Mesmo em seu próprio tempo, o artista fizera uma paródia da
história da arte tradicional.
Significativamente, o renascimento da reputação
do Grego começou com modernistas como Manet e Cézanne juntamente com escritores
como Théophile Gautier. Picasso e Modigliani, entre outros, seguiram o exemplo,
estabelecendo o mestre de Toledo entre os maiores artistas do século 20.
Outro mestre moderno, particularmente
influenciado pelo Grego, foi Alberto Giacometti que reinventou várias obras
antigas e tomou emprestado os contornos irregulares de Cézanne em seus próprios
retratos. Giacometti acreditava que cada artista via a realidade através das
obras do passado, criando muitos desenhos inspirados nelas.
As outrora esquecidas estilizações sinuosas do
mestre de Toledo e suas cores berrantes afetaram movimentos modernos, como o
cubismo, o orfismo, o surrealismo e o expressionismo, como visto no trabalho de
figuras continentais como Delaunay, Grosz, Kokoschka, Beckmann, e Francis
Bacon.
Eventualmente sua estranheza assustadora
atravessou o oceano, fazendo-se sentir entre os muralistas mexicanos e, em Nova
York, em alguns experimentos de Jackson Pollock, uma grande força do movimento
expressionista abstrato, que também foi influenciado por El Greco. Em 1943
Pollock completou sessenta composições de desenho inspiradas em El Greco, pois
possuía vários livros sobre o mestre de Creta.
Entre outras maravilhas, vimos o Cristo Morto com
Anjos, de Manet. As cores de Barón nos foram exibidas ao lado de uma
tipicamente apocalíptica Anunciação do El Greco, normalmente hóspede no Szépmüvészeti
Museu de Budapeste.
El Greco - Anunciação da Virgem |
Os estudiosos e os teóricos não ressuscitaram o
Grego. Foram os pintores que, a partir do início do século XX, além de
descobrirem um novo Grego também se revelaram a si mesmos. A expressividade e
as cores do Grego influenciaram Eugène Delacroix e Édouard Manet, não há
dúvidas, mas o primeiro pintor que notou o código estrutural na morfologia da
pintura mais madura do Grego foi Paul Cézanne, um dos precursores do cubismo.
Todos esses artistas, e muitos outros, foram
incluídos no programa da exposição que nos maravilhava, articulando argumentos
históricos globais através da presença de tantas obras de tantos grandes museus
presentes e dispostos a interpretar a arte contemporânea e histórica em um
contexto global. Em Toledo pudemos traçar a influência do Grego através de
outras faces pictóricas, dos acólitos do velho mestre, não apenas à luz da
influência do artista, mas no choque permanente de encontrar o talento.
Pudemos ouvir análises morfológicas comparativas
do mestre de Toledo com outros pintores, enxergar os seus elementos comuns,
tais como a distorção do corpo humano, os fundos em bruto e as semelhanças no
trabalho do espaço. Foi interessante estudar as obras e verificar quantos
irmãos espirituais o Domenico teve, apesar dos séculos que os separavam, como
se toda aquela arte que víamos, apesar dos seus variadíssimos sotaques, falasse
uma só língua plástica uniforme e contínua.
Percebemos que todos os simbolistas usaram as
tonalidades frias do Grego na anatomia das suas figuras ascéticas. As explorações
cubistas iniciais de vários pintores descobriram aspectos da obra do Grego: a
análise estrutural de suas composições, a refração multifacetada da forma, o
entrelaçamento de forma e espaço e os efeitos especiais. Vários traços do
cubismo, tais como distorções e a apresentação materializada do tempo, têm suas
analogias na obra do Grego.
Os expressionistas também focaram nas distorções
expressivas dele. De acordo com Franz Marc, um dos principais pintores do
movimento expressionista alemão, O Grego fora referência porque estava
intimamente ligado à evolução das novas percepções sobre a arte.
Vimos o retrato de Jorge Manuel Theotocopoulos, o
filho de El Greco por ele pintado em 1605 e trazido de Sevilha, lado a lado com
a tela O Retrato de um Pintor segundo El Greco, que em 1950 foi a versão de
Picasso do retrato de Jorge Manuel.
El Greco / Picasso - O Retrato do Pintor |
Muitos pintores contemporâneos também são
inspiradas pela arte do Grego. Kysa Johnson usou várias pinturas da Imaculada
Conceição dele e inventou-lhes novos quadros habitados por suas flores
abstratas e as distorções anatômicas do mestre e a sua linguagem da cor são um
pouco refletidas nos retratos de Fritz Chesnut.
Tanto a personalidade quanto a obra do Grego
foram uma fonte de inspiração para o poeta Rainer Maria Rilke. Um conjunto de
poemas de Rilke foi baseado diretamente na Imaculada Conceição do pintor.
Pudemos ler os poemas enquanto ouvíamos as canções do compositor grego Vangelis
em homenagem ao pintor e cenas de um filme , uma produção grega baseada no
livro O Grego: o pintor de Deus, da lavra de Dimitris Siatopoulos e estrelado
por Nick Ashton.
Sem dúvida percebemos que o que hoje é percebido
como modernidade na obra do artista é a sua globalização, ou seja, a riqueza
das suas múltiplas referências, desde a presença do oriente na herança cultural
bizantina, dos ícones não ilusionistas - como, por exemplo, pode ser visto na
Morte da Virgem - as nuances venezianas, as explosões renascentistas, a
espiritualidade latente, as digitais da companheira cristã nova, tudo isto
traduzido num maneirismo ala grega e, é claro, o espírito visionário.
Tantas e tão dramáticas foram as transformações
em seu estilo, em relação à modelagem das figuras e a relação delas com o
espaço, que as formas naturais foram gradualmente se rendendo ao abstrato. Como
suas figuras tornaram-se cada vez mais finas, mais altas e desproporcionadas, o
vínculo com o mundo corporal em suas últimas pinturas foi quebrado por detalhes
peculiares, angularidades mentirosas, manchas de cor e libertadoras pinceladas,
como vimos no seu Laocoonte.
Um nome chave na promoção da arte do Grego no
século XX foi o pintor espanhol Ignacio Zuloaga, que tinha nisso um interesse
especial. O pintor fora bem sucedido comercialmente, e assim adquirira uma
grande coleção de pinturas e, entre as obras, algumas do mestre de Toledo, que
desejava valorizar.
A arte de Zuloaga representava os ideais de um
grupo que foi chamado de Geração de 1898, que assumira a missão de buscar a
alma espanhola, definir um caráter espanhol e analisar as tradições nativas
após a guerra hispano-americana. Os artistas que protagonizaram essa busca por
movimentos radicais e pela modernidade da arte foram Pablo Picasso, Juan Gris,
Salvador Dalí e Joan Miró, todos educados dentro desse nacionalismo.
Uma das coisas mais interessantes que vimos na
exposição foi o gigantesco painel de dois metros e meio de altura e três metros
de largura intitulado... Meus Amigos, no qual Zuolaga tentou reunir durante
dezesseis anos numa mesma tela - que não conseguiu terminar! - algumas das suas
amizades do mundo intelectual e artístico.
"Mis Amigos" foi pintado em carvão e
petróleo entre 1920 e 1936. O pintor basco nele rascunhou uma boa representação
da elite cultural de uma Espanha submersa na crise da monarquia alfonsina, que
caminhava em direção à ditadura e à Guerra Civil. O detalhe importante na
composição, porém, é que o tal grupo aparece em frente a uma enorme pintura do
Grego, que então era chamada de O Apocalipse, mas que se tratava da Abertura do
Quinto Selo ou da A Visão de São João, comprada por Zuolaga por mil pesetas do
legado do Ministro Canovas del Castillo.
Ignacio Zuloaga - Mis Amis |
Foi a partir dessa enorme homenagem ao Grego que
Pablo Picasso passou a ser focado na exposição. Tomamos conhecimento que seu
pai, José Ruiz Blasco, era um professor de Belas Artes que absolutamente não
entendia porque o filho matava as aulas na mais prestigiada Academia de Artes
de Madri e preferia sair desenhando pelos cafés, nas ruas e muitas vezes no
Museu do Prado, coisas de extremo mau gosto que remetiam ao Grego, uma
influência que o pai considerava "muito perigosa".
Vimos como o estilo simbolista de Picasso
refletiu a influência do Grego, nas suas telas melancólicas e retratos
decadentes de olhos fundos e rostos emaciados do final do século XIX.
Contemplando o Retrato de Angel de Soto, tão ao estilo do Grego mas pintado em
1899, não há como não perceber o quanto o Grego afetara o desenvolvimento estilístico
do jovem artista. As características faciais alongadas e uma melancolia que
emana dos olhos expressivos dos modelos, os grupos de figuras contra fundos
escuros são evidentes reminiscência dos retratos do Grego.
De fato, lemos o desejo de assimilar o estilo do
velho mestre nas folhas dos cadernos de desenho de Picasso, onde o rapaz
chegara a escrever... Yo, El Greco...
entre rabiscos de um homem muito parecido com o Grego, estudos de uma cabeça em
várias posições e um auto retrato.
Soubemos que em 1900 Picasso deixara Barcelona
rumo a Paris e que lá se tornara amigo de dois homens: o escritor e crítico de
arte francês Gustave Coquiot e o nosso já conhecido Zuolaga. Ao longo de toda a
sua Fase Azul, Picasso pintara, de forma monocromática, telas que ecoavam os
azuis sombrios e os brancos acinzentados tão apreciados pelo Grego, e nós
pudemos observar as semelhanças em uma das primeiras obras da Fase Azul de
Picasso, o Enterro de Casagemas (Evocação), na qual o pintor expressa a dor
pela perda de um grande amigo. A composição, desdobrada em dois planos - um
celeste e outro terreno - espelhava o Enterro do Conde de Orgaz, que acabáramos
de ver, só que saído da paleta do Grego.
Todas as pinturas que Picasso produziu neste
período exibem os maneirismos expressivos das cenas, as distorções do corpo e a
dinâmica rodopiante do mestre de Toledo. De acordo com um ensaio escrito por
Coquiot sobre Picasso, o artista, durante aquele período azul, estivera tão
absorto na arte do Grego que decorara todas as suas paredes com fotografias de
obras do pintor de Toledo. Que continuara presente na fase seguinte, aquela
dita circense e conhecida como Fase Rosa, na qual havia novos amigos como os
poetas e escritores como André Salmon e Guillaume Apollinaire, noitadas regadas
a vinho e a absinto e muitas mulheres.
Tal fase não foi marcada apenas pelo uso das
cores quentes - o oposto da azul - mas também pela leveza dos traços e,
indicando claramente as digitais do Grego de novo, as formas mais largas e
desproporcionais e motivos que embora fossem mais alegres eram também mais
ambíguos. Em Toledo comparamos o São José e o Menino do Grego e a Vendedora de
Flores Cega de Picasso e constatamos que muito se assemelham, embora o tema do
espanhol nada tivesse a ver com o do grego. A similitude estava, em vez, nas
poses das figuras e no tratamento dos espaços.
Enquanto Picasso fazia esse mergulho na sua
herança espanhola, as fases impressionista e simbolista do modernismo estavam
chegando a um fim e cada vez mais artistas se retiravam da representação
naturalista e começavam a olhar para dentro, para um mundo intangível de
emoções e estados psicológicos, e o expressionismo se tornou o movimento
artístico proeminente. É claro que a arte do Grego ganhou imensa importância
com a predominância desse expressionismo, que se caracterizava pela
individualidade das obras de arte, morava na visão de cada artista e exigia
vitalidade, violência e impacto.
Sem dúvida foram violentas as inovações dos
fauvistas, por exemplo, e o Grego se fez presente em vários ismos inclusive nos
de Henri Matisse e André Derain, cada vez mais reconhecidos pela criatividade
de seus trabalhos. Com suas cores apaixonadas, composições agitadas, ângulos
peculiares e intensidade de emoções, as telas do Grego foram interpretadas como
desejos de auto expressão, como um retorno para o interior, para o mundo das
emoções e espiritualidade e passaram a ser estudadas. Até porque o
expressionismo só poderia mesmo favorecer um maneirista que se revoltara contra
o naturalismo e o racionalismo da Alta Renascença trezentos anos atrás.
Pelo que podemos intuir também há muito do Greco
em três telas que, por sua vez, muito influenciaram Picasso; a primeira delas o
Banho Turco de Jean Auguste Dominique Ingres:
Ingres - O Banho Turco |
a segunda, A Alegria de Viver de Matisse e, por
fim, As Banhistas de Derain. Foi a partir do impacto que recebera destas obras
que Picasso elaborou duas outras que são consideradas como preliminares ao seu
trabalho revolucionário Les Demoiselles D'Avignon - As Senhoritas de Avignon -
que por sua vez, afirmam os doutos, foi inspirado pelo Grego.
Apesar de terem sido concluídas em 1907, As
Senhoritas não foram apresentadas à sociedade parisiense até 1916, devido às
críticas desencorajadoras recebidas por Picasso de seus amigos, críticos e
outros artistas. Publicações parisienses nos deram conta de que, diante das
Senhoritas, os críticos de arte “saíram sem entender coisa alguma”, Matisse se
sentira “ultrajado” e Braque restara “em estado de choque”, enquanto Derain
dissera que tal pintura era um impasse e que, ao fim e ao cabo, um belo dia os
amigos ainda encontrariam Picasso pendurado por trás da sua grande tela.(rsrs)
Em Toledo, um dos mais importantes dos debates
colocados pela exposição, foi se Picasso estava ou não sob a influência do
Grego, ou, mais especificamente, do seu quadro a Abertura do Quinto Selo
enquanto pintava as Senhoritas d'Avignon.
El Greco - A Abertura do Quinto Selo / Picasso - As Senhoritas d'Avignon |
Vimos prova histórica de que Picasso já se
referira à pintura em 1902, durante a exposição do Grego realizada no Museu do
Prado naquele ano. Da mesma forma, nos provaram que a pintura estava em Paris,
na casa de Zuloaga, um amigo que Picasso visitava amiúde. De resto, são
valentes as semelhanças formais e estilísticas entre os dois quadros.
Sem qualquer dúvida, a obra Abertura do Quinto
Selo do Grego apelara fortemente ao jovem pintor. Pudera!
A Abertura do Quinto Selo é uma das mais
fantásticas obras tardias de El Greco e passa uma sensação visionária. O quadro
fora encomendado pelo Hospital de São João Batista, para retratar os versículos
IX, X e XI do sexto capítulo do livro do Apocalipse, no qual São João dá seu
testemunho da abertura do quinto dos sete selos, aquele que revela o
apocalipse. No entanto a obra foi mutilada. Falta a ela a sua parte superior, e
a grande pintura já foi muito danificada.
No século 19 o ministro espanhol Antonio Cánovas
del Castillo, aborrecido com o estado da tela, a enviou a um restaurador. Foi
esse artesão quem cortou cerca de 175 centímetros da parte de cima - o corte é
nítido - deixando a figura de São João apontando para o nada. Há quem sustente
que a parte cortada mostrava a Abertura do Quinto Selo, daí o nome da obra,
também conhecida como A Visão de São João.
Foi só depois da morte de Cánovas, quando a tela
foi vendida a terceiros até chegar às mãos de Ignácio Zuolaga, que o interesse
dos grandes centros europeus por esta pintura foi reavivado, até por ser o tema
mais do que incomum na iconografia cristã.
Os peritos e curadores de arte presentes no
evento toledano nos disseram que a parte de baixo, a que hoje conhecemos,
mostra o amor profano, enquanto que a do alto, a que desapareceu, mostrava o
amor divino. Tudo bem que devemos manter um pé atrás quando se trata
historiadores de arte...
Os do século XIX lançaram teses sobre o Grego sem
levar em conta o ambiente estético, teológico e poético do tempo em que ele
vivera e, sobretudo, sem procurar compreender as particularidades da Toledo
mística de então. Alguns chegaram a dizer que ele era louco, megalômano,
bravateiro, que só se preocupava em chocar. Tais críticos parecem desconhecer
que são parecidas, em espírito, com as imagens do Grego, as descrições nos seus
escritos devocionais da experiência mística de Santa Teresa de Ávila,
contemporânea do artista.
Mas foquemos na tela em questão: A Abertura do
Quinto Selo. O que se vê é a figura exageradamente alongada de São João do lado
esquerdo da composição com os braços esticados para o alto, erguidos em êxtase
a Deus. Atrás dele, a visão interior terrível da qual só ele é testemunha
torna-se visível: os mártires de Deus clamam ao céu por justiça, parecendo
flutuar, pálidos e sem peso no fundo, juntamente com os anjos do céu que
distribuem os mantos brancos que eles deverão usar quando estiverem finalmente
diante do trono de Deus.
As pálidas representações das almas quase não
foram individualizadas, e sim alinhadas horizontalmente em um ambiente
indeterminado. Parecem estar em um estado de perplexidade de espírito, cercadas
por cortinas amarelas e verdes que flutuam em um céu agitado. Uma sétima figura
à direita parece estar deslizando para cima, solta do tempo e do espaço, na
tentativa de alcançar a túnica branca.
Na falta de equilíbrio e clareza do desenho, a
composição desafia as regras da pintura tradicional. Os corpos alongados e a
verticalidade usada contradizem as cortinas e as manchas iluminadas de nuvens
que formam linhas horizontais onduladas na composição sem que, no entanto,
estas linhas construam uma estrutura linear na pintura.
A grande figura de São João está muito perto de
nós nesse primeiro plano, quase apresentando a cena no palco para o espectador.
O tratamento de profundidade é muito pouco habitual, já que a distância entre
as almas delgadas e o São João parece ser grande, devido à diferença na escala
de seus tamanhos, mas as dimensões do pano vermelho, jogado por terra entre o
protagonista e os figurantes, desmente essa impressão.
A abordagem que o Grego faz da luz e da cor nessa
superfície revela a herança veneziana do pintor e reforça a emoção em cada
centímetro da cena dramática. Uma fonte de luz deve ter sido providencialmente
pintada pelo artista, na parte superior da pintura, ora extraviada, porque
embora ela não seja mais visível na cena alguma coisa ilumina São João, as
quatro figuras nuas à esquerda e o pano vermelho, enquanto os dois nus
ajoelhados à direita estão mais na sombra.
A luz derramada sobre o São João pontua a expressão
dramática do rosto do santo, além de sugerir a tensão e movimento, através da
interação da luz e do escuro nas pregas intrincadas da roupa do evangelista. Já
todos esses tons fortes de vermelho, verde, azul e amarelo aumentam a
turbulência do cenário, destacando-se contra os nus pálidos e o fundo
amarronzado.
Apesar de ter esse efeito espetaculoso e dinâmico
sobre a maior das figuras, a intensidade da luz aumenta a percepção e a
sensibilidade do grupo de figuras nuas anormalmente alongadas a ponto de fazer
com que elas pareçam desossadas. Talvez esse tratamento sensual dado aos corpos
pelo artista, ajude a criar um certo ar de leveza e alívio para as figuras,
aumentando a sensação visionária da pintura.
Os coadjuvantes roubam muito da cena, pois
parecem estar em constante movimento inquieto para cima, quase como chamas
efêmeras. Não só o cenário não é identificável, como parece não haver uma
atmosfera em torno das figuras nuas, nem um chão ao qual elas estejam
conectadas. O olho nunca deixa de se mover ao redor da tela, e quando se
concentra em uma determinada parte logo é atraído para outra.
A sensação teatral da cena, as figuras que
lembram chamas e a interação dinâmica dos contrastes de luz e cores, tudo isso
desenha uma cena altamente expressiva que sacode o espectador, mesmo à primeira
vista. Com todas as suas qualidades expressivas, a Abertura do Quinto Selo nos
pareceu ser a pintura na qual o Greco mais pintou ele mesmo.
Já o quadro As Senhoritas d'Avignon de Picasso
causou um tsunami nos círculos de arte antes de se tornar revolucionário e
fashion. A começar pelo nome. Para começo de conversa o nome da tela faz
referência à Calle Avignon, uma rua de Barcelona conhecida por ser ponto de
prostituição. Então essas moças aí são mesmo prostitutas e imagem inevitável
numa discussão de arte do século XX. É quase impossível exagerar a importância
das senhoritas e o profundo efeito que o quadro viria a ter na arte
subsequente. Essas moças inventaram o cubismo e, mesmo enquanto o quadro ainda
estava sendo pintado, já circulavam por toda Paris boatos sobre a natureza
interessante e original da peça.
Les Demoiselles d'Avignon retrata cinco
prostitutas nuas em um bordel, em uma tela que é muito semelhante à do Grego,
tanto no seu tamanho quanto na sua forma quase quadrada. Uma das figuras, cujo
rosto tem feições egípcias, mora do lado esquerdo da tela e com uma das mãos
está abrindo uma cortina, ecoando a figura de São João, de perfil na tela
original, e também com os braços estendidos para cima. É como se ela nos
obrigasse a assistir à cena.
A figura de pé e mascarada à direita também está
abrindo outra cortina e, mais uma vez, também as cortinas foram importadas do
outro país pictórico. As duas figuras de pé no centro da ação aparecem
sugestivamente mais francas e diretas e europeias, encarando o espectador e nos
fazendo lembrar as figuras em forma de chamas da tela original, especialmente
por estarem de pé e em posturas forçadas.
A figura de cócoras do lado direito foi
eternizada em uma posição impossível. A sua cabeça foi radicalmente dividida em
duas, uma voltada para o espectador enquanto a outra mira a cena, no nível em
que se encontra. É como se a cabeça tivesse realizado um giro de cento e
oitenta graus ou como se duas figuras diversas tivessem se fundido, como se um
plano frontal e outro dorsal estivessem ocupando o mesmo espaço na tela. As
figuras de Picasso estão localizadas nas mesmas paragens centrais ocupadas
pelas almas alongadas e distorcidas do Grego e, como suas ascendentes, parecem
não ter peso em outro cenário indefinido.
Os corpos foram reduzidos a formas angulares que
olham fixamente para fora da tela, duas radicalmente. As formas das figuras são
por vezes tão angulares que elas se tornam quase abstratas, especialmente na
metade direita da pintura. Como um elemento protocubista a natureza morta
desafia a gravidade e toda a pintura se rebela contra qualquer senso de
perspectiva, qualquer proporção realista ou qualquer sensação de legítima
profundidade.
Uma paleta relativamente pobre é usada nas
Senhoritas: o frio azul contrasta com os tons castanhos quentes dando à pintura
uma sensação de desconforto geral. Os rostos das mulheres são semelhantes às
máscaras: as sobrancelhas, as orelhas e a forma dos olhos combinam-se para produzir
uma qualidade mascarada.
Como a Abertura do Quinto Selo do Grego, essa
composição assimétrica de Picasso não tem nenhum foco ou equilíbrio. Estamos,
mais uma vez, diante de numerosas linhas diagonais formadas pelos corpos das
figuras que interagem umas com as outras em um espaço tratado de forma ambígua,
com uma profundidade que varia enormemente pela pintura a fora. Cada um dos
elementos definidos por essas linhas pretas afiadas na composição parece estar
a uma distância diferente do espectador.
As manchas de tinta branca que enfrentam,
atrevidas, os tons contrastantes dos corpos refletem aquela outra dramática
abordagem que o Grego fizera da cor no seu Quinto Selo, bem como apimentam em
negrito com mais ansiedade o já turbulento cenário, que de repente nos faz
também pensar no Banho Turco do Ingres. E lembrar que Picasso caminhara uma
longa estrada desde o século XVII.
Ninguém pode negar que corre sangue espanhol nas
veias do cubismo. Se tentamos definir o que é o cubismo somos forçados a falar
da grandeza da composição, da deformação da perspectiva, de uma reanálise do
objeto em sua relação com a estrutura pictórica, das sombras fundidas e das
transições borradas, e tudo isto é o Grego que pode até ter sido veneziano nas
origens e renascentista e maneirista no meio da corrida, mas que pintou
magistralmente desde que parece ter decidido ser um cubista em construção
(rsrs)
As semelhanças entre as vidas pessoais e
artísticas dos dois pintores acrescentam um toque agradável à comparação de
estilos. Ambos os pintores tiveram as suas formações artísticas em suas terras
natais e, em seguida, saíram de casa para os maiores centros artísticos e
intelectuais dos seus tempos. Nativo de Málaga, na Espanha, Picasso alcançou o
auge de sua fama em Paris, assim como o Grego encontrou seu nicho artístico em
Toledo.
Enquanto a inovadora abordagem do Grego fora
alimentada por seu patrimônio bizantino e veneziano e ele se manteve O Grego,
Picasso também se inspirara na sua herança espanhola e sempre permaneceu
verdadeiramente espanhol. Ambos os pintores formaram distintivos e ecléticos
estilos, construindo suas habilidades sobre os mestres do passado. As críticas
que ambos receberam também foram muito semelhantes, pois ambos foram
ridicularizados e rejeitados por algum tempo antes que suas artes fossem
aceitas e valorizadas.
A pintura que intrepidamente marcou o início do
cubismo e da modernidade na arte, Les Demoiselles d'Avignon, grita a admiração
de Picasso pelo Grego e a sua assimilação do estilo do velho mestre. No
entanto, Picasso não plagiou o Grego. A tela As senhoritas de Avignon não é uma
réplica da tela A Abertura do Quinto Selo. O que torna O Grego e Picasso tão
inovadores é justamente a capacidade de interpretar de um jeito novo e original
as influências por eles recebidas de mestres anteriores.
O que nos ficou claro, na magnífica exposição de
Toledo, é que o Grego fora um artista moderno porque ele tratara a luz e o
espaço irracionalmente e colocara as formas na tela de acordo com a lógica
pictórica de seu próprio quadro interno. Diante do Quinto Selo não estamos
diante da visão de São João e sim de uma das visões do Grego. Desse grego, cujo
nome verdadeiro era Domenico Theotokopoulos, desse pintor que usava uma
linguagem visual que ignorava o equilíbrio e a proporção clássicos, o espaço
racional e as cores harmoniosas, com um único propósito: expressar seus medos,
angústias, amores, sonhos, sua humanidade e, acima de tudo, sua devoção a Deus.
Já o que confere à tela de Picasso a sua força
espantosa é o que ele faz com esses corpos e cabeças - a liberdade desenfreada,
quase imprudente, com que Picasso as incorpora em sua visão pessoal e as libera
para que sirvam às necessidades psíquicas dele próprio. Não sabemos se fez isto
de maneira consciente, pois era machista de carteirinha, mas As Senhoritas
tornam visível o medo que o artista tinha das mulheres, a necessidade que tinha
de dominá-las e distorcê-las e a determinação dele de não se deixar intimidar.
Assim, a tela As senhoritas d'Avignon é a visão que Pablo Picasso tinha das
mulheres.
A energia era o dom especial dos dois artistas. O
Grego e Picasso tinham a capacidade de transformar até os temas mais fortuitos
em obras de grande força. Nelas beleza e poder se relacionavam. Se formos
capazes de fazer essa ligação entre beleza e poder, então em uma escala podemos
colocar o Grego no extremo da beleza e Picasso no extremo do poder.
Fico pensando com meus botões a respeito deste rumo à modernidade, título que o Pimentel deu ao seu artigo de hoje, repetição dos anteriores em termos de qualidade, cultura e informação, fornecidas plenamente pelo célebre autor.
ResponderExcluirCertamente o dia que me perguntarem sobre o que vem a ser moderno, citarei o nome de Moacir Pimentel, onde em plena era de avanços eletrônicos tão sofisticados, ONDE CONTRADITÓRIA E PARADOXALMENTE leva as pessoas a teclar em minúsculas caixas de plástico para se comunicarem, uma espécie de avanço tecnológico do som do tambor usado largamente no passado para enviar mensagens, Pimentel desfila soberano na passarela do conhecimento, ao som de uma bateria de Escola de Samba campeã!
E aplaudimos delirantemente a sua passagem, o seu ritmo, a sintonia perfeita entre o saber e como transmiti-lo.
A MINHA NOTA É ... DEZ!
Chicão,
ExcluirConfesso que jamais pude me espremer naqueles 144 caracteres do Twitter (rsrs) . Sou prolixo de nascença. Pelo andar da carruagem logo desenvolveremos "polegares estranhos" - apud Mestre Heraldo! - e minúsculos para poder melhor teclar em celulares e iPads.
Quando a "desfilar soberano" isso é exagero desse seu coração nota DEZ.
Obrigado e um abraço
Quem foi que falou que nada se inventa e tudo se copia? Eu não entendo de arte mas consigo ver que a obra do Grego e a do Picasso tem alguns detalhes parecidos, Moacir. Só que eu acho o São João bonito e as Senhoritas feias. Quem pintou estas 'figuras' só podia ter mesmo pavor de mulher kkk Não fique chateado ( seu artigo é excelente) mas é que sobre cubismo para uma analfabeta em pintura como eu só desenhando. Obrigada!
ResponderExcluirMônica,
ExcluirChateado?! Se você tivesse teclado que achava as Senhoritas "liiiiindas", eu não teria acreditado (rsrs). Picasso assim como os sushis crus necessita de tempo - e muito saquê! - para que o paladar seja trabalhado. E, ao fim e ao cabo ,há quem ame e quem odeie. E isso é muito bom.
Eu muito aprecio o trabalho dele e conversarei sobre outras modernosas paletas e espero que você continue lendo e comentando.
Por enquanto só considere o quanto o mundo tem mudado nos últimos séculos. Como ele e com ele, a pintura teve que se transformar, fugir dos temas bíblicos e mitológicos e das naturezas mortas, conversar de um jeito novo, diferente e mais intrigante , por exemplo, do que passou a fazer a fotografia inventada na metade do século XIX, copiando o mundo em p&b melhor do que o melhor pintor poderia.Foi quando os gênios começaram a falar com as cores, com as distorções, com a emoção e a imaginação. E deu no que deu e para onde vamos? Não sei, mas é divertido acompanhar.
De resto e sobre o "pavor" que Picasso teria das mulheres, o que se sabe é que ele tratou as dele muito mal. Porém, quanto as Senhoritas assustadoras aí do post, talvez seja preciso um pouco de contextualização. Picasso retratou nessa tela prostitutas. Na virada dos séculos XIX e XX elas assustavam mesmo.É que ainda não tinham inventado nem o amor livre nem a pílula nem os antibióticos e o prazer do sexo rolava, para aquela geração, nos bordéis onde a sífilis matava.Uma das vítimas foi o pintor Henri de Toulosse Lautrec.Complicado.
Obrigado pelo comentário
Moacir,
ResponderExcluirEu não esperava esse encontro surpreendente de El Greco com tantos outros pintores da modernidade principalmente Picasso. Adorei o artigo. Fantástico! Descobri a obra de Picasso quando visitei o museu dele no bairro gótico de Barcelona por acaso. Foi amor à primeira vista. Então faço apenas uma sugestão. Quando você compara as obras de El Greco com outras dá muita vontade de ver. Sua escrita foi formidável mas ficou faltando visualizar alguns quadros. Parabéns e um grande abraço para você.
Moacir,
ExcluirAmei os quadros! Muito obrigada pela gentileza da resposta e um abraço especial para você.
Primeiramente (não é fora Temer!), eu teria que estar com a cabeça mais ligada para ler um texto longo do qual não entendo lhufas. Moacir é rei na escrita, gosto do jeito que ele escreve e de como diz o que diz. Mas me faltou interesse aí. Por essas obras. Embora com Picasso no meio.
ResponderExcluirDesculpa a sinceridade. Se eu participasse de uma aula, com professor ou professora me mostrando isto ou aquilo, talvez eu me interessasse e muito. Mas assim, falado, ou melhor, escrito, eu vou lá e venho cá. Muita insincera uma avaliação de má entendedora. Quem sabe na próxima eu capricho, consigo sentir alguma emoção, a emoção que o Moacir merece com que todos leiam seu artigos.
Impressionistas, o homem dos corvos que decepou a orelha e cujo nome -acreditam? - não me vem agora à cabeça de jeito nenhum - o da noite estrelada, ele mesmo, não lembro.
E também das escultura é mais fácil dizer alguma coisa, porque sinto. Nada aqui 'bole' comigo, como diria minha amiguinha baiana, na infância. Desculpa, Moacir.
Ofélia,
ExcluirJá me questionei se os meus quiloméééétricos textos de arte não seriam uma leitura árdua e monótona para quem não se interessa por pintura e/ou escultura. O seu comentário me dá uma noção mais exata do que o leitor - aquele que não comenta - pode estar achando dos meus temas. É bom ler o que você sente ou pensa ou não sente nem pensa diante das minhas pretinhas. Que, na minha modesta opinião , só provocarão emoção ou interesse se eu as teclar com vontade e souber do que estou falando.
Às vezes, em outras paragens virtuais, eu me deparo com autores que são sistematicamente ignorados por comentaristas sem noção , que invadem caixas de comentários para teclar sobre outros temas sem ao menos anunciar um off topic, ou para trocar piadas, ou para postar links sem conexão com o assunto em pauta, como se o autor não estivesse ali , como se o tempo e a energia que o texto lhe tomou entre uma tarefa e outra, entre um afeto e outro, não merecesse respeito, como se para escrever ele tivesse apenas e sem o menor esforço que se ligar nalguma tomada. @#$%&@!!! Não é assim que a banda toca.Escrever, às vezes, é um negócio sofrido.
Nesse texto que não a tocou, veja você, eu tentei compartilhar uma experiência que vivi ao lado de minha mulher: uma das mais belas e interessantes exposições de pintura que já tivemos o prazer de ver nessa vida. Algo que nos encantou de verdade.
Se não consegui captar o seu interesse, certamente não foi por falha sua mas minha. Afinal o teclado é meu.
Então eu gostaria de realmente, de coração, lhe agradecer por tão gentilmente me dizer que no texto nada 'bole' com você e me pedir desculpas.Imagina! Não tem de quê, Ofélia.
Vou continuar conversando sobre arte porque ela é "a minha matéria", porque ela conversa comigo , porque eu a entendo como uma linguagem uniforme e contínua desde os primórdios da nossa espécie quando os xamãs sujaram de mãos as paredes rupestres. Mas vou repensar, graças a você, a quantidade de parágrafos ou o número de assuntos abordados em cada pauta, por exemplo.
Espero ser capaz de, na minha estrada, dentro das minhas referências , das coisas que "bolem" comigo,eventualmente, lhe cativar a atenção.
Obrigado
Tão educado você que me deixa até sem graça, Moacir. Já falei que não sou versada em arte. E a minha cabeça anda embaralhada demais para ler textos longos, o que consigo fazer se o assunto for a minha praia. Fui sincera demais, não é? Fui sim, e esse comportamento não se justifica, está mais para falta de educação.
ExcluirAcho que porque cheguei nos 70 eu tudo me permito. Tudo não, não exageremos. Mas coisas que eu não diria no passado, digo hoje.
Fiquei constrangida por ter 'desfeito' algo que você se deu ao trabalho de fazer, não bastou ligar na tomada. Sei que não bastou. Já li outros textos seus que muito bem me fizeram.
O de hoje, infelizmente, não.
O que atribuo, sem NENHUM EXAGERO e SEM QUERER AGRADAR, a mim mesma.
Alguma coisa está fora da ordem na minha cuca. Uma delas é a preguiça intelectual que toma conta de mim quando o assunto não invade a alma.
Da próxima, prometo silenciar. É mais educado, mais digno.
Porque você sabe e TEM CERTEZA de que o problema é meu.
DESCULPA, foi uma grosseria.
Até a próxima, se Deus quiser.
Ofelia
Ofélia,
ExcluirNada a ver. Você foi educada sim e eu gostei do comentário e não se justifica o seu constrangimento por "ter desfeito algo que você se deu ao trabalho de fazer".
Até porque não se "desfaz" nada. É justamente o contrário : todos acrescentamos fios a essa "conversa".
Os do Oriente dizem que " somos a teia e quem a tece, somos o sonho e o sonhador".
Acredito nisso e digo mais : somos as telas e os textos.Todas essas mensagens estranhas e alienígenas, radicalmente abertas e inacabadas - e até sem orelha! (rsrs) - nas quais nos projetamos e continuamos pintando ou escrevendo com as nossas próprias tintas.Talvez seja esse o poder das obras de arte : como se recusam a terminar nos forçam a vê-las e a nelas vislumbrar a nós mesmos.
A única maneira autêntica e honesta de terminar esse bate teclas é no meio de uma frase, sem fechamento, mantendo as janelas abertas. O jeito é respeitar nas telas e nos textos e em nós mesmos a infinitude. E olhar de novo e ler mais uma vez e continuar "conversando "....
O Constante Diálogo
Há tantos diálogos
Diálogo com o ser amado
o semelhante
o diferente
o indiferente
o oposto
o adversário
o surdo-mudo
o possesso
o irracional
o vegetal
o mineral
o inominado
Diálogo consigo mesmo
com a noite
os astros
os mortos
as ideias
o sonho
o passado
o mais que futuro
Escolhe teu diálogo
e
tua melhor palavra
ou
teu melhor silêncio.
Mesmo no silêncio e com o silêncio
dialogamos.
( Carlos Drummond de Andrade )
Oi Moacir,
ExcluirDrummond é sempre um soco no peito, não do tipo que faz o coração colapsado voltar a bater, como obra dos médicos que ressuscitam os 'quase idos'. Mas ele bole com o pulso, com certeza. "Mesmo no silêncio e com o silêncio/ dialogamos." Quem pode com um mineiro desse?
Não sei se já contei aqui. Como sou católica (fui praticante) e sentia culpa por um relacionamento que não deveria ter, ele era casado, mas eu não conseguia me arrepender da relação (não é propaganda não, hem, gente?). E quem entende de catolicismo sabe que para a absolvição do padre é necessário o arrependimento. Chorei muito, mas tive que dizer ao padre que não me arrependia, não havia como. E o sábio padre me deu uma pista do que fazer. "Minha filha, o ladrão rouba, vem aqui e diz que se arrependeu, e depois volta a roubar". E eu, ágil nas palavras: "Então eu me arrependo, padre!"
Deveria ser proibida a sugestão, mas era um padre especial, meio Jesus. E eu continuei fiel ao 'pecado' e à igreja. Até deixar de pecar. Mas não foi por influência do padre não.
Sinto muita admiração por padres assim, que não fecham a porta. Eles mantêm a nossa fé e não nos afasta da igreja.
Você também não me afastou dos comentários, não reagiu mal. Nesse caso, é você que vai pro céu, rsrs...
Ofélia,
ExcluirEsse padre devia conhecer o Eclesiastes de cor e salteado - "Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu ".
Quem sabe ele não era um desses " anjos tortos" que Deus inventa, de vez em quando, está muito comovido e manda "ser gauche na vida" ?
Como não sei rezar duvi-d-o-dó que eu alcance o céu, mas seja lá onde for , vou querer morar na geral , sentar na arquibancada, no gargarejo, defronte da tchurma dos poetas:
"O perdido caminho, a perdida estrela
que ficou lá longe, que ficou no alto,
surgiu novamente, brilhou novamente
como o caminho único, a solitária estrela.
Não me arrependo do pecado triste
que sujou minha carne, como toda carne.
O caminho é tão claro, a estrela tão larga,
os dois brilham tanto que me apago neles.
Mas certamente pecarei de novo
(a estrela cala-se, o caminho perde-se),
pecarei com humildade, serei vil e pobre,
terei pena de mim e me perdoarei.
De novo a estrela brilhará, mostrando
o perdido caminho da perdida inocência.
E eu irei pequenino, irei luminoso
conversando anjos que ninguém conversa.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Brejo das almas, 1934
Ah, Moacir...
Excluir"Conversando anjos que ninguém conversa" é um dos meus versos preferidos do Drummond (são tantos!). Desobstrui qualquer coisa lá dentro...
Bom dia e obrigada
Ofelia
1) No primeiro quadro, Agonia de Jesus, fico a meditar; como deve ter sido difícil este momento. Cristo ver mais adiante sua morte chegar. Homem de coragem.
ResponderExcluir2)No segundo quadro, belo momento, alegria da concepção, anjos em volta.
3) Só aí nos dois quadros acima vemos a morte e a vida. Diálogo que Pimentel nos propõe entre a Modernidade e o antigo.
4) Imagens seguintes: El Greco e Picasso, continuando o Diálogo tão bem exposto por Moacir.
5) Demais quadros complementam a meu ver este Diálogo, ests conversas.
6)Por falar em 100 mil visitas ao Blog (parabéns Mano)vejo multidão aparece em Zuloaga e no banho turco em maior profusão.
7)Mais dois quadros dialogando com base no Quinto Selo do Apocalipse.
8)E eu ouvindo/lendo os Diálogos, e aprendendo muito
9) Parabéns pintor Pimentel palavras plenas.
Vizinho Antônio,
ExcluirPenso como você: as telas são conversas. De gente que tem tanto a dizer que inventou um outro jeito, uma outra linguagem colorida para contar "estórias". Talvez o maior presente das obras de arte seja essa percepção que nos comunicam de que os eternos aprendizes não "conversam" à toa.
Muita"gratidão"
É preciso saber muito para colar os dois pintores. El Grego e Picasso.
ResponderExcluirPost genial, Moacir.
Carlos,
ExcluirNo meu tempo de estudante "colar" era se apropriar da prova do colega ao lado - o 1o da classe! Se foi esse o sentido que você deu ao verbo que usou, que Picasso teria copiado El Grego, eu discordo. Se em vez quis dizer que Picasso olhou para o passado antes de inventar o futuro, assino embaixo. Abração e muito obrigado por comentar.
Olá Sr. Professor Moacir,
ResponderExcluirVou inverter tudo, nós todos, leitores, estamos de parabéns por podermos usufruir de uma aula fantástica. Eu, principalmente, que estava ansiosa pelas digitais de El Greco. Tive surpresas, que bom! Tipo Orfismo, Surrealismo, Francis Bacon... Não imaginava que El Greco tivesse ido tão longe. Mas como você já disse ele é um inovador como Cèzanne, só que na Idade das Trevas!
Gostei muito de "O precursor de tanta modernidade angustiada..."
Até muito mais.
Você não acha que é hora de outra escambo!
Melhor: outrO escambo!
ExcluirCaríssima Donana,
ExcluirSaber que a senhora gostou e que se "surpreendeu" com as digitais do Grego na modernidade, me deixa menos
"angustiado". Fiz no texto uma sutil homenagem à inventora dos "velhinhos em formação", descrevendo o Domenikos como "um cubista em construção". Foi tão sutil que passou batida (rsrs)
Quanto a um novo "escambo"...
A senhora acha pouco a pororoca das pretinhas e o escambau?
Abraço