Heraldo Palmeira
Nos meus primeiros anos de vida me apaixonei perdidamente pelo rádio.
Afinal, televisão no interior do Nordeste daqueles tempos era algo parecido com
pé de cobra: a gente sabe que existe, porque a bicha anda, mas nunca se viu um
único um deles diante do olho.
Desde que me entendo por gente há um rádio por perto. E do rádio veio
outra paixão absoluta: a música. Dessa segunda paixão, a guitarra me saltou
fascinante aos olhos.
Como cresci nos anos 60 e 70, obviamente as guitarras elétricas eram
ícones poderosos para qualquer rapazote daqueles tempos. Em qualquer banda, os
guitarristas eram os músicos mais dotados de argumentos cênicos, talvez pela
própria vocação solista das guitarras. Como as meninas enlouqueciam por eles,
todos nós queríamos ser guitarristas, mesmo sem qualquer talento para uma
missão estelar de tal porte.
Claro que já havia Beatles e Rolling Stones e suas lendárias Epiphone,
Gretsch e Rickenbacker, que viraram símbolos fortes do pop britânico dos anos
60. Mas o reino das seis cordas de aço tinha outras concorrentes poderosas e
também espetaculares: Fender Stratocaster, Fender Telecaster e Gibson Les Paul.
Muitos estudiosos afirmam que as guitarras elétricas contribuíram de
maneira fundamental para a globalização dos valores culturais ocidentais e para
derreter a Cortina de Ferro que envolvia o mundo comunista, a partir da
conquista dos jovens do Leste Europeu.
A Les Paul, primeira guitarra de corpo maciço, foi criada a partir de
experiências iniciadas em 1941 pelo americano do Wisconsin Lester William
Polfuss nas oficinas do visionário Epaminondas Stathopoulo, que herdou do pai
grego Anastasios uma empresa familiar fabricante original de alaúdes, banjos e
bandolins, de onde nasceria a Epiphone Company, depois subsidiária da Gibson
Guitar Corporation.
Polfuss, que começou a tocar gaita aos oito anos, tornou-se músico
profissional aos 13 e ficou mundialmente famoso como Les Paul, um guitarrista
de altíssimo nível técnico que extrapolou os limites do ofício de
instrumentista ao contribuir para a arte e a ciência da música, e para o
desenvolvimento do seu mercado produtor.
Corria 1948 e Les Paul iniciou uma experiência na própria garagem, que
terminou encampada pela gigante Capitol Records. Utilizando discos de acetato,
o guitarrista gravou uma trilha em um desses discos. A seguir, fez rodar o
primeiro disco e gravou ao mesmo tempo uma nova parte da música num segundo
disco, e assim sucessivamente.
Nessa primeira experiência, Paul descartou cerca de 500 discos de
acetato com os resultados que não aprovou. Mais adiante, ele avançou
tecnicamente dessa sobreposição de sons para as gravações com trilhas em canais
paralelos, mantida até hoje em qualquer tecnologia de gravação musical.
Contemporâneo histórico de Polfuss, o californiano Clarence Leonidas
Fender criou outro monstro sagrado (a guitarra Fender Stratocaster) da música,
em sua fábrica instalada a partir de 1946. Como se isso fosse pouco, ainda
inventou os lendários baixos elétricos Fender Precision Bass e Fender Jazz Bass.
Com eles, os contrabaixistas ficaram livres dos enormes baixos acústicos
e passaram a tocar como se fossem guitarristas, com muito mais conforto e
facilidade de transporte. Com isso, a Fender se enraizou de forma definitiva
nos domínios do jazz e da música popular mundial.
Les Paul morreu aos 94 anos, em Nova York, como um grande
revolucionário. Não bastasse ter criado uma guitarra que muitos consideram a
mais fabulosa de todas, mudou o princípio das gravações musicais em estúdio e
inaugurou a era – que perdura até hoje – de se multiplicar sem limites
execuções instrumentais e vocais, para produzir uma mesma música.
Mereceu da fábrica Gibson, com plena justiça, a homenagem em forma da
guitarra modelo Les Paul, disponibilizada em diversas versões e hoje o
instrumento musical mais popular da marca. Uma concorrente definitiva para
outra lenda, a Fender Stratocaster criada pelo também mestre Leo Fender, com
quem duela ao longo de décadas pelas mãos dos melhores guitarristas da história
da música.
Fender vendeu sua indústria para a CBS em 1965 por US$ 13 milhões,
recolheu-se para tratar da saúde fragilizada pelo excesso de trabalho, voltou à
ativa anos depois criando outra fábrica, a Music Man, até hoje ativa, e
desenhando instrumentos na G&L. Faleceu aos 81 anos, em Fullerton, em plena
atividade.
Alheio a todas essas sagas extraordinárias, numa noite de julho de 1967 o Brasil deu aquele costumeiro passo em falso entre fazer piada e virar piada,
quando artistas importantes foram às ruas puxar a famigerada Passeata Contra a
Guitarra Elétrica.
Gritando o slogan “Defender o que é nosso”, gente como Elis Regina, Edu
Lobo, MPB4, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Zé Keti... saiu do
Largo de São Francisco até a porta do Teatro Paramount, na Brigadeiro Luís
Antônio, na região central de São Paulo.
No seu costumeiro modo escorregadio, certamente acossado pela péssima
repercussão histórica da passeata – uma verdadeira ideia de jerico liderada por
Elis –, Gilberto Gil tentou transferir a própria culpa dizendo que só
participou daquela patacoada atraído por Elis, por quem se dizia apaixonado.
Em entrevista ao jornalista Júlio Maria, publicada no Estadão de 28 de
janeiro de 2012, saiu-se com essa pérola do nonsense, naquele tradicional
baianês castiço: “…Eu participava com ela daquela coisa cívica, em defesa da
brasilidade, tinha aquela mítica da guitarra, como invasora, e eu não tinha
isso com a guitarra, mas tinha com outras questões, da militância, era o
momento em que nós todos queríamos atuar. E aquela passeata era um pouco a
manifestação desse afã na Elis [...] no meu caso, eu saí desse jogo. Não quis
fazer esse jogo, se eu fosse colocar como termo da equação essas questões e
tirar a Elis da equação eu não teria ido. Mas eu fiz o contrário, eliminei
todos os outros termos da equação e deixei ali só a Elis. Determinei meu ato,
pautei meu ato por aquela questão. A questão era ela. Eu nada tinha contra a
guitarra elétrica”.
Bem mais esperto, Caetano Veloso preferiu ficar entrincheirado na janela
do Hotel Danúbio e ver tudo lá de cima na companhia de Nara Leão. Ela foi
direta, falando ao baiano: “Isso aí é um horror! Parece manifestação do Partido
Integralista. É fascismo mesmo”.
Hoje, já se sabe que aquela idiotice pode ter sido apenas uma grande
jogada de marketing engendrada nos bastidores da TV Record (a original, da
família Carvalho), que tinha dois programas de estrondoso sucesso: Jovem Guarda
(Roberto, Erasmo e Wanderléa) e O Fino da Bossa (Elis e Jair). Naquele momento
travava-se o duelo entre a música jovem e a música brasileira, com visível
desvantagem para o time de Elis, e a emissora arriscou a passeata para tentar
equilibrar a balança da audiência.
Três meses depois, exatamente Caetano Veloso com Alegria, alegria e
Gilberto Gil com Domingo no parque, cercados de guitarras distorcidas no III
Festival da Record, comprovaram que havia uma música jovem e brasileira. O
resto é folk lore!
A partir daí o tempo, senhor de tudo, passou ladino para revelar
Caetano, Gil e todos os outros artistas abduzidos por inteiro pelas seis cordas
eletrificadas. Gil, inclusive, virou um nobre do pop que tem na Fender
Telecaster um de seus instrumentos preferidos no palco. E as guitarras elétricas
estão em toda parte, em paz, como sempre deveria ter sido.
Que aula Querido Amigo!! Ainda bem que nos nunca participamos dessa bobajada de "música de raiz" e sempre soubemos colher e apreciar os frutos híbridos que resultante do diálogo com outras culturas e modos de expressão, com a certeza que a força da nossa Natal e da sua Acari sempre serão importantes como parte integrante do holos que nos s somos. Abraço.
ResponderExcluirMT,
ExcluirQue aula nada, apenas o gosto por coisas encantadoras e suas histórias que despertam a curiosidade. Quem, como nós, amava (e seguimos amando) Beatles, Stones, Roberto, Rita, Caetano, Gil, Elis, Pixinguinha e tantos mais jamais poderia se entregar a essas posturas fechadas. Aliás, como costumava dizer um grande amigo músico, "quem tem raiz é árvore e a Amazônia está lotada delas".
Também ouvi de outro que o mais universal dos homens é aquele que não perde os modos da própria aldeia, mas aprende os modos dos outros com prazer. Daí, nasce o cosmopolita.
Sim, é sempre imprescindível acreditar na alquimia, em juntar valores e apresentar o prato com temperos diversos e harmonizados. Afinal, somos parte do Universo e alguns de nós é que resolveram criar as divisões que lhes interessava. Agora se expliquem diante do espelho.
Heraldo, bom dia.
ResponderExcluirSeu texto me trouxe alguns sorrisos e algumas saudades. Não da guitarra, infelizmente não. Mas dos termos que você usa e do que me lembro dessa época da nossa música.
Não sei se você sabe, mas eu era fanzoca da Nara. E shows era comigo mesmo. No Opinião, em Copa, fui a não sei quantos. Vi a Bethânia 'nascer' ali. João do Valle(não sei mais se tem dois Ls).
Mas amei coisas como estas: 'algo parecido com pé de cobra: a gente sabe que existe, porque a bicha anda, mas nunca se viu um único um deles diante do olho."
"No seu costumeiro modo escorregadio...", referindo-se ao Gil.
"Saiu-se com essa pérola do nonsense, naquele tradicional baianês castiço..."
É a cara do Gil, esse músico tão talentoso, de que tanto nos orgulhamos.
É bom lembrar, Heraldo, quando a gente lembra. E essas suas frases me lembraram de que vivi momentos muito felizes no meu encontro com a música.
Bom final de semana, até.
Ofelia
PS: Elis e Nara morreram tão jovens... Alguma ideia de por que motivo fomos tão penalizados, nós, os brasileiros e fanzocas das duas? Quem não foi? Quem não era?
Ofelia,
ExcluirVocê tem também este grande momento na vida, testemunhado o frisson cultural do Opinião e em momento tão rico. O João, com quem tive o prazer de estar algumas vezes, era um gigante simples, com um "L" apenas.
Nós nordestinos aprendemos desde cedo a conviver com essas linguagens particulares, engraçadas. Fico feliz que as frases tenham lhe transportado para momentos bons, ainda mais tendo a música como trilha sonora desse tempo da sua lembrança.
Quanto à morte das nossas cantoras amadas, Nara foi vitimada por um tumor cerebral sem qualquer chance de tratamento. Ou seja, obra ruim do destino. Elis, na minha opinião, foi vitimada pela doença emocional dos gênios, pela ansiedade gigantesca de uma mente convulsionada, sofrida desde cedo, incompreendida, censurada na sua busca pelo novo, usada e depois abandonada pelo sistema - inclusive porque se tornava intratável em alguns momentos. Basta lembrar como passou os últimos anos de vida em dificuldade financeira e amargurada porque continuava sendo considerada a melhor cantora brasileira de todos os tempos (pura verdade!), enquanto outras ganhavam fama e rios de dinheiro.
Das duas grandes divas nos restou o conforto dos discos e imagens que ficaram gravados para a eternidade. É nesse patrimônio que temos de centrar nossa saudade.
Oi Heraldo,
Excluirsomente hoje li sua resposta. Obrigada.
A Nara chegou a tentar um tratamento alternativo, não é? E diz-se que o tumor chegou a diminuir. Mas, como disse uma amiga minha, essa doença, quando vem, vem pra levar. Às vezes, sorte nossa, não leva.
Cheguei a ver Nara se apresentar com Menescal, já doente. A gente olhava pra ela, não 'via' nada. Doença enganadora.
Elis foi pior. Estava saudável. E sem dúvida nenhuma foi a maior cantora do Brasil de todos os tempos. Tinha tudo, voz, molejo, molecagem e a emoção transbordante. Desequilibrava na divisão musical, única.
Não se pode ter tudo, não é, Heraldo? Ficamos com a lembrança boa dessa época, dessas vozes, dessas figuras.
Abração
Ofelia
Mestre,
ResponderExcluirUm post monumental. Aquelas guitarras! Nós queríamos ser eles, não apenas os guitarristas , mas os Beatles e os Stones e os Pink Floyds porque as garotas enlouqueciam por eles, é claro, mas também porque o som deles traduzia a nossa alma funda.
Quanto à passeata dos nossos profetas tupiniquins, talvez não soubessem enquanto "militavam" que nada pode deter o futuro.
Na verdade nada mudou nessa paisagem: hoje somos obrigados a achar funk o máximo, sob pena de sermos diagnosticados como portadores do complexo de vira-lata. E olha que, como no Rap do Silva, já fui funkeiro porque sou pai de família. (rsrs)
O seu post me fez lembrar da trilha sonora da nossa juventude e nela, de um momento em um show de rock no qual as palavras falaram mais alto do que as cordas. O concerto na Alemanha Oriental Comunista, em 19 de julho de 1988, diante de um público inquieto, nas profundezas da Berlim Oriental.
As autoridades comunistas liberaram o show como um esforço desesperado para amaciar parte da crescente tensão da juventude cansada de viver emparedada.Então 300 mil pessoas estavam no gargarejo e milhões mais assistiram à tremida e distorcida transmissão na televisão estatal.
No entanto, o evento teve o efeito oposto ao esperado pela Stasi e foi um prego no caixão da Alemanha Oriental, inflando um espírito de rebelião que contribuiu para a queda do Muro de Berlim, 16 meses depois.
O destaque naquele concerto foi o discurso do Bruce , entregue em um alemão tosco, mas compreensível:
"Eu estou aqui não por um governo ou ideologia . Eu vim para tocar rock'n'roll para você na esperança de que um dia todas as barreiras sejam derrubadas", disse ele antes de atacar de Chimes of Freedom do Bob Dylan.
https://www.youtube.com/watch?v=WBIcfPBVxxQ
Mas isso foi quando ainda havia cabeças universalistas , antes de todos traírem todos os sonhos da nossa juventude.
E hoje?
Hoje lemos as suas pretinhas trazendo à tona nossas estórias, e agradecemos pela "sua luz caída", como tão bem poetou o comunista Pablo Neruda ....
"Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço onde a claridade está presa.
Há que sentar-se na beira do poço da sombra
e pescar luz caída com paciência."
Abração
Caríssimo,
ExcluirVocê é o guru desta nossa patota do blog.
Pois é, só mesmo profetas risíveis como os nossos para se opor ao progresso. O pior: por pura ignorância e preconceito! Já vi alguém escrever que as guitarras foram muito mais poderosas que mísseis na hora de quebrar o muro do obscurantismo. Vamos adiante, abraço.
Heraldo, um belo texto onde você extrapola sua admiração pela música para nos mostrar que o progresso técnico não pode ser detido, e que o que devemos fazer é reconhecer as novas possibilidades e aproveitar o que ele nos traz para melhorar aquilo que fazemos.
ResponderExcluirUm abraço.
Obrigado, Mano,
ExcluirRecusar o progresso técnico é sempre estupidez - você testemunhou o que aconteceu com a área de informática, quando tentou se criar reserva de mercado no Brasil!
A introdução dos instrumentos elétricos na música é algo é algo a ser festejado. Basta ligar o rádio para compreender.
Grande Heraldo!
ResponderExcluirSe não sabemos que tipo de instrumento tocas, a tua virtuose se mostra neste relato sobre guitarras, músicas, conjuntos, e o desenvolvimento dessas guitarras que nos embalaram com seus sons estridentes por muitos anos!
Eis um texto nos moldes de Pimentel, sem comparação entre os autores, evidente, mas pela qualidade empregada pelo Heraldo na sua dissertação a respeito desses instrumentos tão importantes e decisivos à introdução do rock tanto nos Estados Unidos quanto no mundo!
Este blog extraordinário a cada dia nos traz gratas surpresas, se não pela excelência dos autores de artigos os mais variados, pela diversidade dos temas abordados e com tanta propriedade!
Taí, vou ouvir Bill Haley & His Comets, Rock Around the Clock!
Um forte abraço, Heraldo.
Saúde e paz!
Nenhum instrumento, apenas amante da música a ponto de terminar em estúdios produzindo música! hoje, é inegável que os instrumentos eletrificados estão na alma da boa música de qualquer estilo.
ExcluirSem dúvida, estamos vivendo uma bela fase deste blog, aprendendo e fazendo amigos.
Aproveite Bill Haley, uma belíssima voz do rock.
muito bom!
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