-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

16/04/2017

A Ceia de Emaús


Caravaggio - A Ceia de Emaús (detalhe)
  
Moacir Pimentel

Conhecido por frequentar o submundo romano e por sua predileção por prostitutas, meninos e brigas, em 1606 Michelangelo Merisi da Caravaggio fugiu de Roma acusado de homicídio e se refugiou em Nápoles sob a proteção da família Colonna que lhe fez várias encomendas.

Alguns meses mais tarde partiu para Malta, onde encontrou patronos ricos, mas logo foi detido e preso por causa de uma outra briga, na qual ferira gravemente um dos nobres nativos. Caravaggio fugiu em seguida para a Sicília, onde mais uma vez o seu enorme talento lhe garantiu trabalho até que, nove meses depois, ele voltou a Nápoles para pedir auxílio à família Colonna enquanto esperava o perdão do Papa.
A vida de Caravaggio e a obra de arte memorável por ele produzida foram cheias de drama, violência e morte, e foi durante o seu período mais turbulento e tais idas e vindas que Caravaggio pintou suas melhores obras, e tornou-se um mestre no tratamento de luz e sombra.  

Tudo bem que o claro-escuro já muito tinha sido usado muito antes de Caravaggio, mas foi ele quem definiu a técnica e escureceu as sombras, no estilo que depois apelidaram de tenebrismo. Caravaggio trabalhava rapidamente os temas religiosos, usando modelos vivos e uma paleta de cores mais rica e mais escura que aquela renascentista.

Não há como demonstrar a genialidade do pintor sem falar da Ceia de Emaús, para mim a sua melhor tela, pedindo licença à National Gallery de Londres.
Nessa tela Caravaggio alcançou níveis de realismo para os quais o termo “fotográfico” parece inevitável.

Caravaggio - A Ceia de Emaús


Nessa cena, Caravaggio nos conta uma história por meio de efeitos simples, mas dá uma nova ênfase à realidade, ao drama humano, às infinitas variações da luz, focalizando o essencial, fazendo-o atravessar a barreira invisível da superfície da tela, trazendo-o para o espaço do observador.

Ele procede à narrativa mediante todos os elementos da obra, entre os quais luz e sombra não foram os menos importantes.  

O enredo é simples: após a Ressurreição e incógnito, Jesus se encontra com dois discípulos que caminhavam de Jerusalém para Emaús. Eles não o reconhecem. Ceiam juntos, e só então Jesus se revela. Como? Pela maneira pela qual ele abençoa o pão.

É fantástico, é palpável o assombro das figuras no quadro. O Cristo de Caravaggio é um cara jovem, quase um garoto, surpreendentemente pouco espiritual, com um rosto carnudo e mordaz, sem barba e sem dramaticidade.

Um Cristo assim jamais fora pintado antes!!

Mas então a gente para, pensa e se pergunta: mas por que Jesus não poderia ter tido essa aparência? Por que não poderia se parecer com esse jovem homem que lá em cima encabeça o post? Sendo judeu, um homem de olhos e cabelos claros com certeza ele não foi.
No entanto esse Cristo pueril nos parece sereno e até distante, transcendendo não só os tormentos que o conduziram à Ccrucificação, mas também as limitações da morte.

O rosto nos surge, entre tons saturados e sombrios e as sombras envolventes, inundado por um luz límpida, que vem da esquerda. Veja como essa luz, partindo de Jesus, se expande. É a luz, a claridade no centro da tela refletida e sublinhada pelo branco do manto e da toalha sobre a mesa, que faz a figura transcender a vida mortal, cuja brevidade, para mim, é representada no quadro pela natureza morta.

Caravaggio - A Ceia de Emaús (detalhe)


São estupendas as naturezas mortas de Caravaggio. A cesta com frutas passadas do ponto oscila na borda da mesa, como que escapando da cena e adentrando o nosso espaço e pedindo a nossa justa atenção.
Embora o dono da estalagem esteja no caminho da luz, a sombra dele não recai em Jesus, projetando-se, isto sim, na parede de fundo. O patrão parece não participar da conversa, não confraternizar com os demais atores do enredo. É apenas um observador de seus clientes.

Repare nos movimentos assustados do primeiro discípulo tentando se levantar da cadeira. Um pavor súbito, mas contido. O cotovelo roto parece projetar-se para fora da tela.

Porém é a figura à direita que concentra a maior carga do drama. É comovente o seu assombro. Veja o medo, o espanto, a surpresa. O gesto dramático ao reconhecer Jesus.

Caravaggio - A Ceia de Emaús (detalhe)

Note a concha na lapela desse discípulo - ela é o símbolo dos peregrinos e nos leva sem escalas a Santiago da Compostela - enquanto os braços abertos nos recordam da Crucificação. Um deles me dá a impressão de sair direto da pintura, de quase atingir os observadores. Aquela mão quase nos toca.

Caravaggio encarou valentemente a existência humana, com seus altos e baixos, seu esplendor e sua sórdida materialidade. Ele foi espantoso na ausência de inibições, criando grande arte. Mas por mais turbulenta que sua vida tenha sido, não havia nada de tresloucado ou indisciplinado em suas pinturas. O aparente caos que elas exprimem é apenas vida.





17 comentários:

  1. Olá Moacir,
    Fantástico! Sem palavras! Pra que dizer alguma coisa se você já disse tudo?
    Grata.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Moacir Pimentel17/04/2017, 07:30

      Caríssima Donana,
      Fica sempre algo sem ser dito, um tanto de conversa para rolar depois, o pulo do gato (rsrs) Mas ontem a senhora fez muito bem ao esquecer o teclado e se conectar com a real e ser feliz ao lado dos seus reunidos para a Páscoa. Por isso muito obrigado por ter "achado tempo no seu tempo" - plagiando o Mestre Heraldo! - para passar por aqui e deixar-me tão boas se bem que exageradas pretinhas.
      "Até mais"

      Excluir
  2. Mônica Silva16/04/2017, 09:07

    Achei o quadro muito bonito e sua descrição perfeita. Mas o Jesus Cristo é tão diferente de todas as imagens que já vi dele que à primeira vista não reconheci. Eu olho e não vejo Jesus. Porque será que o artista pintou assim, Moacir? Só para ser moderno e do contra ou teve outra razão? Aproveito para desejar a todos os amigos do Blog Conversas do Mano e suas famílias uma Feliz Páscoa!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Moacir Pimentel17/04/2017, 07:37

      Mônica,
      Jesus Cristo é a figura mais retratada de toda a arte ocidental. A sua estampa e o seu rosto bondoso estão gravados em nossas mentes: mais alto que seus discípulos, magro, com longos cabelos castanhos, pele clara e olhos azuis. Mas ele realmente era assim? Um homem com essas características e porte físico teria parecido um estrangeiro, muito diferente do povo da região onde Jesus viveu e morreu. De acordo com o Evangelho de Mateus, quando Jesus foi preso no Jardim do Getsêmani, antes da Paixão, Judas Iscariotes teve que indicar aos soldados quem era Jesus, porque eles não podiam distingui-lo dos seus discípulos. E assim permanece a questão: como era Jesus?
      Creio que um Jesus histórico e não as reproduções europeias do primeiro Jesus bizantino que se tornaram padrão, teria cabelos curtos e uma barba leve, ambos escuros.
      Quanto ao que se passou pela cabeça de Caravaggio ao pintar Jesus a resposta é que não se sabe nada sobre o seu processo criativo porque ele não deixou nem desenhos nem anotações, fatos que sugerem ter ele usado a tal câmara obscura e os espelhos, tecnologia de ponta e ferramentas então vistas como primas legítimas da "bruxaria", crime punível com a fogueira.
      Alguns historiadores da arte afirmam que, segundo o Evangelho de São Marcos, Jesus reapareceria aos apóstolos “de uma outra forma” e que, talvez por causa dessa leitura, Caravaggio tenha optado por um Jesus sem a barba e bem mais jovem do que Jesus teria sido quando das crucificação e ressurreição.
      Como ele pintava o que via com incrível realismo, atualizando as encomendas religiosas no humano, o sagrado no cotidiano, o mais provável é que a cena tenha sido ambientada em uma taverna de Roma e que o modelo que posou para o Cristo fosse jovem e bochechudo e imberbe. Mais um personagem do submundo romano por onde Caravaggio vivia, interagia e, inclusive, delinquia. Nada disso diminui, a meu ver, o valor da imensa arte criada por ele. Temos que tentar aprender a separar o homem vil da sua bela produção artística e intelectual.
      Abraço

      Excluir
  3. Kátia Araújo16/04/2017, 09:14

    Sim, a vida!!! Excelente texto!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Moacir Pimentel17/04/2017, 07:40

      Kátia,
      " Sim , a vida", e nela tentar encontrar alguns milagres minúsculos nos também pequenos e banais atos do cotidiano. Obrigado pela leitura e comentário.

      Excluir
  4. 1) Páscoa é Renascimento. Páscoa é "pessach", passagem, travessia.

    2)Belamente Moacir nos mostrou a passagem de um Cristo humano...

    3)E, com todo o respeito, mas na qualidade de pesquisador olhando os vários ângulos, existem correntes espiritualistas que informam, Jesus não morreu na cruz... posso indicar vários livros ...

    4)Quem sabe, Caravaggio sabia desta interpretação ?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Moacir Pimentel17/04/2017, 07:49

      Vizinho Antônio,
      Jamais saberemos. O que ficou de Caravaggio foi a obra. E diante de objetos de arte , temos que lembrar que ela varia com o tempo histórico e que as ponderações sobre o artista, seus modelos e temas e de ordem teológica apenas estimulam a fruição das obras, ampliando nossa capacidade de fazer a leitura das imagens.
      Eu tenho minhas dúvidas quanto ao conhecimento, por parte do artista, da suposta ausência fora dos Evangelhos, na literatura grega, latina e hebraica - de Homero ao primeiro século DC ! - das descrições de crucificações. Lembro do adolescente que fui assistindo Jesus Christ Superstar e vendo aquele climão entre ele e a Madalena : "Close your eyes and relax, think of nothing tonight" (rsrs) Confesso que questionei - muito antes do Dan Brown! - se , como todos os demais judeus do seu tempo à espera do Messias, Jesus não teria se casado para multiplicar ou se não fora um "revolucionário almado" como os Teóricos da Libertação desejavam fazer acreditar. Percorri os Evangelhos banidos, a história do Concílio de Nicéia, vi incontáveis documentários e cheguei à conclusão que Jesus está tão próximo do coração e da fé das gentes que a ele se reage emocionalmente, em vez de logicamente.
      Acredito que um homem muito sábio e pacifista chamado Jesus viveu naquela parte do mundo e naquela época e que as suas palavras apesar de terem sido escritas muito tempo depois dele, por terceiros e traduzidas N vezes e selecionadas pelos poderosos, são perfeitas se as lemos nas linhas, e não entre as linhas. Nelas não há últimos nem primeiros e só atira pedra quem não tem pecado. Para mim está de bom tamanho.
      Abração

      Excluir
  5. Flávia de Barros16/04/2017, 11:09

    Moacir,

    Obrigada por essa estupenda obra de arte e por sua linda descrição do gesto eucarístico no Domingo da Ressurreição. A Ceia de Emaús está descrita no Evangelho de São Lucas onde se lê também a expressão 'Fica conosco, Senhor' dita pelos dois apóstolos ao convidar o estranho para dividir uma refeição com eles antes de reconchecê-Lo. Ela é a minha oração diária porque foi a promessa que Ele nos fez. 'Eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos'. Acreditemos e Feliz Páscoa para todos!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Moacir Pimentel17/04/2017, 07:58

      Flávia,
      Sim, felizes os que acreditam! Gosto de ler expressões como
      "gesto eucarístico". Apesar de acreditar que o artista , na cena em pauta, usou a benção do pão e do vinho como meio de por os seus personagens em movimento diante do Cristo ressuscitado em Emaús, é sim grande nessa tela além do "gesto eucarístico" a presença da simbologia da eucaristia - do pão feito carne e do vinho feito sangue! - as metáforas da presença do Cristo.
      Veja que naquela natureza morta as uvas se referem ao vinho e a maçã e os figos já estragados simbolizam o pecado original enquanto que as romãs sinalizam o triunfo de Cristo ao ressuscitar, a vitória do bem contra o mal.
      Só mais um pequeno detalhe para você que os aprecia: dizem os peritos que Caravaggio pintou um rabo de peixe - o símbolo dos primeiros cristãos - na sombra que a cesta de frutas projeta na mesa, à esquerda da tela.
      Uma boa semana para você!

      Excluir
  6. Flávio José Bortolotto16/04/2017, 17:13

    A Gente viaja com o Sr. MOACIR PIMENTEL, a Gente aprende Arte com o Sr. MOACIR PIMENTEL. Como não deixar de ler prazerosamente mais um Artigo como esse sobre a "ceia de Emaús" de CARAVAGGIO. Melhor ainda quando o Autor do Artigo expõe pontos principais da biografia do Artista. E quantos detalhes importantes que para a maioria de nós Leigos, passam despercebidos. E que técnica/ARTE perfeita de CARAVAGGIO.
    Particularmente não gosto da maneira como CARAVAGGIO escolhia os "Modelos" de seus principais Personagens Bíblicos.
    No caso da "ceia de Emaús", JESUS deveria ter +- 40 anos (33 anos + 6 erro de Calendário, calculado por um Monge não muito bom Matemático, lá pelos anos da Idade Média Inicial), na dimensão Humana era um Rabi ( Mestre) Judeu, mais ainda, um Profeta Reformador, Restaurador da LEI MOSAICA, naturalmente deveria usar barba.
    E o JESUS do famoso Quadro é um Jovem aparentemente com não mais do que
    30 anos.
    É como se ele pintasse um Gáucho típico como MARTIN FIERRO, e o representasse com o um Coolie Chinês. Muito estranho isso.

    Feliz Páscoa a TODOS(AS) deste oásis de boas Leituras.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Moacir Pimentel17/04/2017, 08:12

      Prezado Bortolotto
      Concordo: Caravaggio pintava mesmo estranhezas. Ele era um contador de histórias, um criador de experiências, a quem não interessavam os meros símbolos. O que ele procurava era a realidade bruta e através dela fazer sentido. Queria era que as pessoas viessem para a escuridão de suas telas - o chiaroescuro através do qual geria os dramas criados em cada um delas - e que nelas, de repente, se encontrassem na presença, não de uma pintura, mas de um evento real: ver era crer!
      Para tanto preferia usar modelos do povo, retirados da vida cotidiana e construía com realismo absoluto personagens feitos a partir da observação de corpos comuns, com músculos, pelos e unhas e pés sujos em cenas religiosas nas quais havia uma acessibilidade sem precedentes e os mais humanos dos sentimentos jamais pintados antes pelos mestres que o precederam e que inspiraram os que vieram depois dele , incluídos Rubens, Velasquez e Rembrandt.
      Nessa Ceia de Emaús, por exemplo, Caravaggio escolheu representar um momento preciso, a saber, aquela fração de segundo depois que os dois apóstolos perceberam que estavam testemunhando um milagre. Ele congelou esse momento, tornou-o permanente e nos permitiu considerar tanto o milagre como experimentar os mesmos choque e espanto sentidos pelos dois apóstolos que se movem e crescem diante de nós na compreensão do que estavam vendo. Acho que independentemente do rosto e da idade errados do Cristo , ele foi bem sucedido nessa narrativa.
      Em 1606 Caravaggio pintou em Malta uma segunda versão da Ceia de Emaús - seis anos depois da primeira! - que hoje mora na Academia de Belas Artes de Brera , em Milão. Na nova versão ele acrescentou mais uma personagem: a mulher do estalajadeiro. Em comparação com a primeira, os gestos das figuras são muito mais contidos, as presenças se tornam mais importantes do que os desempenhos. Na nova tela Caravaggio usou para o Cristo um modelo mais velho e barbado. Veja , por favor, jogando no Google e pesquisando por imagem:

      http://www.milaonasmaos.it/wp-content/uploads/2013/04/Caravaggio_Cena_Emmaus_Mil%C3%A3o_Brera.jpg

      A segunda obra não me comunica com a mesma intensidade da primeira a história a ser contada: a imensidão do milagre da ressurreição e o espanto daqueles que o presenciaram. Mas gosto é gosto e o que seria do amarelo se todos preferissem o azul? Sem falar na possibilidade do verde (rsrs)
      Agradeço-lhe imenso pela sua leitura e por seus ótimos comentários.

      Excluir
  7. Alexandre Sampaio16/04/2017, 21:08

    Pimentel,
    Um texto formidável que nos faz compreender nos detalhes o quadro de Caravaggio.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Moacir Pimentel17/04/2017, 08:14

      Sampaio,
      Muito obrigado pela leitura constante e o incentivo.

      Excluir
  8. Francisco Bendl17/04/2017, 09:46

    Pimentel,

    Apesar de tardio, mais uma vez agradeço esta postagem sobre Caravaggio, que complementa os anteriores, proporcionando-me informações preciosas quanto à biografia deste célebre pintor.

    Desnecessário eu repetir os costumeiros elogios que registro sobre as tuas obras, portanto, aplico sobre este texto as mesmas qualidades e observações que tenho feito, reconhecendo mais uma vez o teu talento e vocação indiscutíveis para esta forma de arte, onde também tu te sobressais merecidamente.

    Um forte abraço.
    Saúde e paz

    ResponderExcluir
  9. Moacir Pimentel18/04/2017, 08:05

    Bendl,
    Também é "desnecessário eu repetir" que o importante é que você chegue, que permaneça, que participe e que nos alegre enriquecendo o Conversas com os seus talentosos textos e ótimos comentários.
    Muito obrigado e outro abraço

    ResponderExcluir
  10. Olá Moacir,
    Muitas e boas aulas particulares! E somos nós que saimos ganhando!
    Até mais.

    ResponderExcluir

Para comentar, por favor escolha a opção "Nome / URL" e entre com seu nome.
A URL pode ser deixada em branco.
Comentários anônimos não serão exibidos.