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03/04/2017

O Dente de Buda – Uma Lenda Tibetana

Templo da Relíquia do Dente de Buda - Singapura (wikimedia commons)


Antonio Rocha
Esta é uma história que gosto muito.
Uma piedosa senhora era muito devota, fazia as preces pela manhã e à noite, diante do altar caseiro. Era feliz com o seu jovem filho único. O rapaz, na casa dos vinte anos, era mercador, viajante, trabalhava nas caravanas entre a Índia e o Tibet, vendendo tecidos, a famosa rota da seda, lá daquela região.
Belo dia o rapaz chegou em casa eufórico:
- Mãe! Recebi um convite de um grande caravaneiro. Embarco na próxima semana rumo à Índia, vamos trazer o que há de melhor. A senhora quer alguma lembrancinha de lá?
- Ah! Meu filho, se for possível e não incomodar muito, por favor, me traga uma relíquia do Senhor Buda. Eu serei eternamente grata a você, querido.
- Ô mãe, eu vou tentar, farei todo o possível.
- Tudo bem filho, não sendo possível traz uma imagem do Buda benzida, abençoada.
- Pode deixar, mãe, assim farei.
O resto da semana o jovem preparou as roupas, a viagem em si. Iriam ficar muitos dias na travessia das montanhas.
Sendo muito jovem, caiu na farra, vamos dizer assim, não se lembrou de nada. Por um lado era muito trabalhador com as responsabilidades da caravana, mas por outro, não estava nem aí para a religião.
Três meses depois estava de volta, e só então, já em solo tibetano, perto de chegar em casa, lembrou-se do pedido de sua mãe:
- E agora, o que é que eu faço? – perguntou a si mesmo.
Mais adiante viu um cachorro morto no caminho. Não teve dúvidas. Com uma faca bem amolada abriu a boca do animal, o corpo já em decomposição com mau cheiro. Extraiu um dente do cachorro, lavou e limpou muito bem, passou perfume que tinha trazido para revender e a “relíquia” parecia muito bonita, aromatizada e claro, bem polida, passou a brilhar.
O jovem pegou um pedaço de seda. Embrulhou bem bonito e ainda acrescentou mais um pano, fazendo um belo estojo para o importante presente.
Finalmente a caravana chegou e foi uma festança no lugarejo. A mãe saiu correndo de casa, abraçou e beijou muito o filho e perguntou:
- Filho, você teve oportunidade de se lembrar de sua mãe?
- É claro mãezinha... eu me esqueço... e a senhora acha que algum dia em me esqueço da senhora?
- Eu sei querido, você é um bom filho, mas me diga, o que foi que você me trouxe.
Sorrindo o rapaz tirou o bonito pacote de panos e disse:
- Mãe, eu consegui uma relíquia raríssima. Eu trouxe um dente do próprio Buda !
E então, enquanto abria o presente, completamente emocionada, a mãe começou a recitar mantras e fazer preces pelo sagrado momento que estava acontecendo.
A devota mulher correu para dentro de casa e em seu altar depositou com toda cerimônia “o dente de Buda”, que a partir daquele instante tornava-se a coisa mais valiosa que ela possuía.
Com o passar do tempo a casa daquela senhora passou a ser local de visitação, de peregrinação e todos vinham reverenciar a relíquia sacrossanta, “o dente do Buda”.
Dizem que com o passar do tempo virou ponto turístico, todo muito que se aproximava do tal recanto, ia conhecer “o dente de Buda”, fazer suas preces e seus pedidos.
Como quem conta um conto, aumenta um ponto, em qualquer país do mundo, principalmente no âmbito do imaginário popular. Alguns passaram a divulgar que o local era milagroso e que “o dente de Buda” estava fazendo “milagres”, os mais diversos.
Comentário:
O Buda foi cremado e afirmam que algumas partes do seu corpo se tornaram relíquias: dentes e ossos. Que foram repartidos e encaminhados a diversos locais do planeta.
Por exemplo, até hoje, na cidade de Kandy, no Sri Lanka, há o “Templo do Dente”. Afirmam que no altar há um genuíno “dente do Buda”. Verdade ou não, fica a critério de cada um.
Vejo essa lenda como uma “gozação”. É possível, quase certo que o rapaz tenha ouvido pelos caminhos, as muitas histórias que contavam do Senhor Buda, inclusive o tema do dente, até hoje, ponto de visitação mundial, para quem se dirige ao Sri Lanka.
Buda afirmava que “tudo é mente”, e se passou a fazer milagres, o tal dente do cachorro, é uma das muitas irreverências budistas, pois cada um é que faz o seu milagre.
Até hoje, o assunto é pauta de pregações budológicas.
No Zen-Budismo há um texto clássico em que o discípulo pergunta ao mestre se um cachorro tem natureza búdica. E, enigmaticamente o mestre responde com o monossílabo:  
- Mu!
Este “Mu” é alvo de “N” interpretações...



9 comentários:

  1. Wilson Baptista Junior03/04/2017, 13:56

    Muito boa história, Antonio. Todas as crenças do mundo sofrem deste fenômeno da "multiplicação das relíquias", seja por enganos ingênuos, por interesses comerciais, ou por artimanhas como a do rapaz da sua história. Mas, como você deixa entender, o importante não é a autenticidade das relíquias mas a da fé que se deposita nelas.
    Um abraço do
    Mano

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  2. 1) Certíssimo Mano,

    2)Buda falou que "tudo nasce primeiro em nossa mente". Coisas materiais e imateriais.

    3)A ilustração que vc escolheu ficou ótima.

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  3. Francisco Bendl03/04/2017, 14:41

    Não querendo eu complicar a conclusão do Mano sobre a fé que se deposita nos objetos, que podem ou não ser relíquias falsas ou verdadeiras, o objeto em si não poderia servir como atiçador desta crença, como estopim para aguçar que se cultue uma religião ou filosofia.

    Mais ou menos como os cristãos católicos praticam a sua fé, cujas imagens de personagens lendários e/ou mitológicos, até mesmo de igrejas em lembranças a várias Nossas Senhoras e santos, esvaziam o conceito de Deus e o próprio monoteísmo, trazendo um pouco de culto a vários deuses indiretamente.

    No passado, e recente, a Igreja Católica vendia lascas de madeira, alegando pertencerem a cruz de Cristo!

    Dito misso, meus parabéns ao artigo de Rocha sobre Buda, e ao debate que se instala - caso alguém quiser dar-lhe sequência - a respeito da fé pura, sem artifícios ou lembranças para fortalecer uma crença, mas com base exclusivamente na subjetividade, no coração, no acreditar sem ver, sem tocar, sem ser lembrado, apenas e tão somente na imaginação, então a fé verdadeira, a meu ver.

    Sei que é difícil, quase impossível, haja vista que, se eu acredito em mim, no que posso fazer, na minha capacidade, deve-se à minha existência, pois eu me vejo, a minha imagem é refletida no espelho, eu sinto a mim mesmo, imagino sem um corpo real.

    Mas, professar uma religião ou filosofia com preceitos religiosos, exige esta condição, caso contrário passa a ser mera idolatria, exatamente como os antigos romanos e gregos com suas mitologias.

    Acho que o dente do Buda e a alegria da senhora que o recebeu de seu filho, remete a pessoa para os primórdios da civilização, ao medo do temporal, do raio, do vento, da chuva, da noite.

    O dente foi uma espécie de amuleto da sorte, de graças, que, se bem cultuado, aquela vida seria abençoada.

    Nada diferente de hoje, surpreendentemente, com as fitas nos pulsos, os rosários, as imagens as mais variadas e exóticas, os quadros, as medalhas, que servem como a imaginação que se chancela, que se legitima naquele objeto.

    Das duas uma:
    Ou fé demais ou fé de menos (a cacofonia é proposital).

    Um forte abraço, Rocha.
    Saúde e paz.

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    1. 1) Obrigado Chicão.

      2)A meu ver, a Fé é uma Energia que une o simples mortal e o Criador (que tem vários nomes).

      3)Paralelamente esta Fé pode ser desenvolvida com atitudes práticas: Caridade, Generosidade e afins.

      4)Na Bíblia lemos: "Fé sem obras é morta" = Tiago 2, 14-26.

      5) Abraços !

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  4. Olá Antônio,
    "...cada um é que faz o seu milagre."
    Para mim isso resume tudo.
    Até mais.

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  5. 1) É isso aí Ana,

    2)Somos nós e nossa mente que fazemos os nossos milagres.

    3)Por exemplo, as belas obras de arte que vc faz com tanta dedicação são milagres.

    4) Este blog do Mano é um milagre !

    5)Tudo de bom !


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  6. Obrigada, Antônio.
    Fiquei contente!

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  7. Moacir Pimentel03/04/2017, 21:10

    Vizinho Antônio,
    Seguinte: eu NÃO gostaria de ter um dente ou osso ou pedaço da roupa ou cachinhode cabelo de Seu Ninguém da galera santíssima. Minha mulher não consegue não entrar em qualquer tipo de templo: catedral, basília, capelinha, mesquita , sinagoga, ermida: estamos dentro! E são sempre lugares de muita beleza e paz.
    Agora as tais das lojas de "lembraçinhas" - santos e rosários e livros de oração, e chaveiros e imãs de geladeira e canecas e marcadores de livros etc,etc, etc me fazem lembrar de uma tela de El Grego de Jesus expulsando os vendilhões do Templo.
    Tou fora!
    Quanto ao "Mu" do Senhor Buda me soa como o "Boh" dos romanos - deve ser seguido por um leve e displicente mover de ombros! - que se pode traduzir como: seilá, não sei, será? pode ser, que chatice, mais ou menos,quem sabe? talvez, tou nem aí, esquece, como? tanto faz, e daí? e por ai vai (rsrs)
    NAMASTÊ!

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  8. 1) Valeu Moacir.

    2)Acho que é por aí... sem essa de comércios, consumismos...

    3)A humanidade entra milênio e sai milênio e vive aprontando...

    4) Abração !

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