Rompimento da represa Teton (imagem wikipedia) |
Heraldo Palmeira
Marieta era
funcionária dedicada do posto telefônico da cidadezinha, ponto de encontro
concorrido pois estava ali o único telefone do lugar.
Também era
locutora da pequena difusora municipal, e fazia sucesso dando os avisos
comunitários usando sua grande habilidade para criar e imitar vozes. Vivia
pregando peças e aplicando trotes inclusive nas colegas telefonistas das
cidades vizinhas. Todos os anos, ela se preparava com esmero para o dia 1º de
abril.
Gostava de
descansar no ambiente da velha barragem, construída há quase um século nos
arredores da cidade. Mas não se aventurava em braçadas e mergulhos, sentia um
temor estranho diante daquela imensa lâmina d’água represada.
Aquele 1º de
abril caiu num domingo e Marieta abriu o posto telefônico pontualmente às oito
da manhã. Já encontrou um homem esperando. Ele queria que ela telefonasse para
avisar ao prefeito, que viajara para a capital, de um vazamento estranho na
barragem.
O homem
estava desistindo de convencer a moça desconfiada, quando um estrondo aterrador
soou pelo vale. Em minutos, um mar desceu rugindo pelo leito seco do rio, lá abaixo.
Por sorte, o lugarejo era encravado num pequeno morro, estava a salvo da enchente.
A moça
conhecia bem a região. Apavorada, começou a ligar para todas as colegas das
cidades do redor. Aos gritos, avisava que as pessoas deviam deixar as casas que
estavam no caminho da correnteza brutal.
– Tu nem deixou o dia amanhecer direito e já vem com presepada? – o
prefeito, reunido num café da manhã político na capital, nem esticou conversa e
desligou na cara dela. Demonstrou certo aborrecimento, pois estava se sentindo
importante na casa do senador, líder do partido.
A água
seguia seu curso frenético e chegaria na primeira cidade ribeirinha em pouco mais
de uma hora.
O telefone
tocou na casa do governador. Era seu piloto. Recebera um alerta de outro
piloto, que avistou do alto a barragem estourada e o mundo d’água varrendo o
sertão.
– Comandante, o senhor tem certeza de que isso não é um primeiro de
abril?
Ninguém sabe
ao certo se foi a gritaria desesperada da telefonista ou a palavra do
governador que resolveu a questão. O fato é que o aguaceiro desceu mundo abaixo
inundando o curso seco do rio e avançando por onde nem rio tinha. Quando chegou
à primeira cidadezinha lá adiante, a população prevenida por carros de som e
pelo falatório frenético do povo, pôde assistir com tristeza a invasão das
águas.
Ao longo de
quase cem quilômetros, milhares de pessoas ficaram desabrigadas e perderam
quase tudo. Apenas três ou quatro vidas se perderam, um verdadeiro milagre. A
notícia se espalhou por todas as vizinhanças. Os incrédulos da capital, que não
viram água nenhuma, só acreditaram que aquilo não era um primeiro de abril
quando abriram a geladeira ou buscaram qualquer coisa elétrica e nada dava
sinal de vida. Na fúria do estouro, o aguaceiro botou abaixo diversos postes
das linhas de transmissão de eletricidade e boa parte do estado ficou às
escuras.
Foram dias
de blecaute, onde geradores Leon Heimer, vindos do representante instalado num estado
vizinho, mantinham operações indispensáveis em centros cirúrgicos e outras
atividades essenciais. Ao mesmo tempo, o resto do país, comovido com a
devastação, enviou donativos de todos os tipos para ajudar as vítimas.
No meio de
tudo, um comerciante desenvolveu uma magistral ação de marketing. Dono de um
bar à beira-mar, famoso por servir sempre cerveja estupidamente gelada, mandou instalar
um gerador para manter seus diversos freezers em ação e a iluminação do
ambiente.
Por todos os
dias e noites em que durou a escuridão das águas, a cidade inteira rumava para
lá. Boêmios profissionais, amadores, noviços em geral... parecia um ponto de
romaria para quem desejava apenas dar uma pitada de normalidade a uma vida que
virara de ponta-cabeça.
No dia em
que a energia voltou, ouviu-se por todo canto aquele grito coletivo que era usado
para festejar a volta a luz – em desuso hoje em dia: “Êêêêêêê!”.
Hoje,
debruçado sobre a saudade, vejo a cidade decadente, sofrida nas lembranças dos
velhos amigos que sentem as mesmas faltas do que desapareceu no avanço do tempo
– pessoas, lugares, construções e memórias que desceram nas enxurradas da vida.
Não há o que
fazer, a não ser o último esforço de transformar as conversas memoriais que
mantemos numa espécie de laboratório de estudos contra o Alzheimer da saudade.
Caminho estreito para que aquelas verdades que nos marcaram não pareçam, mais e
mais, lapsos, mentiras ou invenções, cujos vestígios seguem sumindo como por
encanto.
(*) Baseado em fatos reais.
1) Contista de alto nível, pode continuar escrevendo.
ResponderExcluir2)Moro em Santa Teresa, RJ, por aqui, qdo falta luz e depois volta ouço o gritaria êêê !!!!!!!!!!!!
3)Li alhures, certa feita, que, originalmente o dia 1º de Abril era o dia da Verdade...
4)Bom sábado para todos (as) !
Parabéns Heraldo! incrível como viajamos com seus contos.
ResponderExcluirRepito seu último e profético parágrafo: "Não há o que fazer, a não ser o último esforço de transformar as conversas memoriais que mantemos numa espécie de laboratório de estudos contra o Alzheimer da saudade. Caminho estreito para que aquelas verdades que nos marcaram não pareçam, mais e mais, lapsos, mentiras ou invenções, cujos vestígios seguem sumindo como por encanto." Que Deus nos mantenha vivos, aptos e dispostos a manter nossas pequenas e necessárias verdades!
ResponderExcluirAmigo Heraldo
ResponderExcluirMuito oportuna a história quando vemos a água correndo, ordenadamente, na transposição do São Francisco, graças a Deus e aos homens.
Um forte abraço
Domingos