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01/04/2017

Dia da Mentira

Rompimento da represa Teton (imagem wikipedia)


Heraldo Palmeira
Marieta era funcionária dedicada do posto telefônico da cidadezinha, ponto de encontro concorrido pois estava ali o único telefone do lugar.
Também era locutora da pequena difusora municipal, e fazia sucesso dando os avisos comunitários usando sua grande habilidade para criar e imitar vozes. Vivia pregando peças e aplicando trotes inclusive nas colegas telefonistas das cidades vizinhas. Todos os anos, ela se preparava com esmero para o dia 1º de abril.
Gostava de descansar no ambiente da velha barragem, construída há quase um século nos arredores da cidade. Mas não se aventurava em braçadas e mergulhos, sentia um temor estranho diante daquela imensa lâmina d’água represada.
Aquele 1º de abril caiu num domingo e Marieta abriu o posto telefônico pontualmente às oito da manhã. Já encontrou um homem esperando. Ele queria que ela telefonasse para avisar ao prefeito, que viajara para a capital, de um vazamento estranho na barragem.
O homem estava desistindo de convencer a moça desconfiada, quando um estrondo aterrador soou pelo vale. Em minutos, um mar desceu rugindo pelo leito seco do rio, lá abaixo. Por sorte, o lugarejo era encravado num pequeno morro, estava a salvo da enchente.
A moça conhecia bem a região. Apavorada, começou a ligar para todas as colegas das cidades do redor. Aos gritos, avisava que as pessoas deviam deixar as casas que estavam no caminho da correnteza brutal.
– Tu nem deixou o dia amanhecer direito e já vem com presepada? – o prefeito, reunido num café da manhã político na capital, nem esticou conversa e desligou na cara dela. Demonstrou certo aborrecimento, pois estava se sentindo importante na casa do senador, líder do partido.
A água seguia seu curso frenético e chegaria na primeira cidade ribeirinha em pouco mais de uma hora.
O telefone tocou na casa do governador. Era seu piloto. Recebera um alerta de outro piloto, que avistou do alto a barragem estourada e o mundo d’água varrendo o sertão.
– Comandante, o senhor tem certeza de que isso não é um primeiro de abril?
Ninguém sabe ao certo se foi a gritaria desesperada da telefonista ou a palavra do governador que resolveu a questão. O fato é que o aguaceiro desceu mundo abaixo inundando o curso seco do rio e avançando por onde nem rio tinha. Quando chegou à primeira cidadezinha lá adiante, a população prevenida por carros de som e pelo falatório frenético do povo, pôde assistir com tristeza a invasão das águas.
Ao longo de quase cem quilômetros, milhares de pessoas ficaram desabrigadas e perderam quase tudo. Apenas três ou quatro vidas se perderam, um verdadeiro milagre. A notícia se espalhou por todas as vizinhanças. Os incrédulos da capital, que não viram água nenhuma, só acreditaram que aquilo não era um primeiro de abril quando abriram a geladeira ou buscaram qualquer coisa elétrica e nada dava sinal de vida. Na fúria do estouro, o aguaceiro botou abaixo diversos postes das linhas de transmissão de eletricidade e boa parte do estado ficou às escuras.
Foram dias de blecaute, onde geradores Leon Heimer, vindos do representante instalado num estado vizinho, mantinham operações indispensáveis em centros cirúrgicos e outras atividades essenciais. Ao mesmo tempo, o resto do país, comovido com a devastação, enviou donativos de todos os tipos para ajudar as vítimas.
No meio de tudo, um comerciante desenvolveu uma magistral ação de marketing. Dono de um bar à beira-mar, famoso por servir sempre cerveja estupidamente gelada, mandou instalar um gerador para manter seus diversos freezers em ação e a iluminação do ambiente.
Por todos os dias e noites em que durou a escuridão das águas, a cidade inteira rumava para lá. Boêmios profissionais, amadores, noviços em geral... parecia um ponto de romaria para quem desejava apenas dar uma pitada de normalidade a uma vida que virara de ponta-cabeça.
No dia em que a energia voltou, ouviu-se por todo canto aquele grito coletivo que era usado para festejar a volta a luz – em desuso hoje em dia: “Êêêêêêê!”.
Hoje, debruçado sobre a saudade, vejo a cidade decadente, sofrida nas lembranças dos velhos amigos que sentem as mesmas faltas do que desapareceu no avanço do tempo – pessoas, lugares, construções e memórias que desceram nas enxurradas da vida.
Não há o que fazer, a não ser o último esforço de transformar as conversas memoriais que mantemos numa espécie de laboratório de estudos contra o Alzheimer da saudade. Caminho estreito para que aquelas verdades que nos marcaram não pareçam, mais e mais, lapsos, mentiras ou invenções, cujos vestígios seguem sumindo como por encanto.
(*) Baseado em fatos reais.


4 comentários:

  1. 1) Contista de alto nível, pode continuar escrevendo.

    2)Moro em Santa Teresa, RJ, por aqui, qdo falta luz e depois volta ouço o gritaria êêê !!!!!!!!!!!!

    3)Li alhures, certa feita, que, originalmente o dia 1º de Abril era o dia da Verdade...

    4)Bom sábado para todos (as) !

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  2. Parabéns Heraldo! incrível como viajamos com seus contos.

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  3. Repito seu último e profético parágrafo: "Não há o que fazer, a não ser o último esforço de transformar as conversas memoriais que mantemos numa espécie de laboratório de estudos contra o Alzheimer da saudade. Caminho estreito para que aquelas verdades que nos marcaram não pareçam, mais e mais, lapsos, mentiras ou invenções, cujos vestígios seguem sumindo como por encanto." Que Deus nos mantenha vivos, aptos e dispostos a manter nossas pequenas e necessárias verdades!

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  4. Amigo Heraldo
    Muito oportuna a história quando vemos a água correndo, ordenadamente, na transposição do São Francisco, graças a Deus e aos homens.
    Um forte abraço
    Domingos

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