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11/04/2017

Ver para Crer


Moacir Pimentel

Antes de se ir a qualquer grande museu do vasto mundo para conhecer as obras de Michelangelo Merisi da Caravaggio é sempre bom a gente se familiarizar um tantinho com o tal do “barroco”.
A pintura, tal como a Igreja Católica, passou por uma Reforma. Um dos pioneiros dessa mudança, desse novo estilo, que se recusava a idealizar e que depois seria chamado de barroco, foi justamente  Caravaggio, um dos mais notáveis pintores italianos, atuante em Roma, Nápoles, Malta e Sicília.

Ele rejeitou a iluminação e o equilíbrio clássicos de Raphael e o gigantesco maneirismo de Michelangelo e todas as tradições dominantes da pintura italiana do final do Renascimento. Em vez disso, Caravaggio pintou cenas dos mitos pagãos e da crença cristã como se estivessem acontecendo ali, agora, nas ruas ou em seu quarto sombrio.
No entanto, por mais que um movimento artístico tente negar aquele que o precedeu, até mesmo para afirmar sua identidade, sempre existe algum ponto de contato entre eles.
Essa tensão pode ser vista na tela A Dúvida de São Tomé, na qual o santo toca as chagas do Cristo para verificar se são reais.

Caravaggio - A Dúvida de São Tomé (imagem wikimedia)


 As cabeças do Cristo e dos apóstolos são o foco da composição. O momento é intenso e todos os atores nesse espaço pictórico olham para a ferida, enquanto o Tomé de Caravaggio, com a testa profundamente sulcada, mergulha seu dedo no flanco do Cristo.

Nesta tela Caravaggio nos soletra uma das questões centrais do barroco – o questionamento do pensamento religioso e, por consequência, o questionamento da existência - ou não - de Deus. São Tomé precisa “ver para crer”, assim como o homem barroco, que já não aceitava mais, silenciosamente, os preceitos católicos, como fazia o homem medieval.
A dúvida de Tomé, metaforicamente, representa a dúvida do homem renascentista diante das perspectivas do pensamento vigente. Na arte barroca, há um desequilíbrio que nasce da tentativa de fundir visões opostas: a perspectiva antropocêntrica, herdada do Renascimento, e a teocêntrica, resgatada pela Contra Reforma, como fica evidente na descrença demonstrada por São Tomé nessa cena.

A obra dos principais artistas barrocos buscou unir aspectos contraditórios, tais como as luzes e as sombras e o sagrado e o profano e isto é o que se o percebe no quadro de Caravaggio.
O resultado final mostra a harmonia dissonante da estética barroca. O momento retratado é sublime: Jesus, ressuscitado, surge entre seus apóstolos. O dedo que remexe a ferida, porém, assinala a incredulidade humana, o desejo de se certificar antes de aceitar o que parece impossível.

Outro detalhe que merece registro na tela acima é que, por mais que rejeitasse Michelangelo, as mãos das figuras de Caravaggio eram iguais às pintadas pelo grande Mestre do Renascimento. Essa mão – assim como outras três no quadro O Chamado de São Mateus – é filha das mãos de Deus e de Adão quase se tocando naquele famoso afresco que mora na Capela Sistina e se chama O Nascimento de Adão.

Só que nos seus quadros, em vez de pintar lindas e delicadas figuras etéreas ou nobres e belos heróis ao retratar personagens mitológicos e bíblicos, Caravaggio escolhia como modelos gente do povo, prostitutas, crianças de rua e mendigos, comerciantes, marinheiros, pescadores e camponeses. Jamais os nobres. O artista entendia que os do povo tinham maior expressão e queria retratar a realidade palpável e concreta. Para tanto, pintou cenas provocadoras, criticadas pela crueza e rudeza, porque nelas o pintor não teve medo de captar a suja, feia e cruel realidade.
Os atores em suas pinturas são reconhecíveis como pessoas reais - muitas vezes se pode seguir o mesmo modelo de uma tela para outra, posando ora como Cupido, agora como São João. Eles eram a escória da cidade - prostitutas, garotos de programa, mendigos.

A existência marginal de Caravaggio está totalmente refletida na sua arte, seu drama transmitido por seu estilo extremo, de escuridão e de claridade com uma única fonte - a luz que vem através de uma janela, filtrada de uma rua estreita e que apenas molda a sombra profunda e ameaçadora.

Outra caracteristica marcante que conferiu dimensão e impacto realistas aos seus quadros é o fundo das telas, sempre raso, obscuro, muitas vezes totalmente negro e ausente, contra o qual ele agrupava uma cena em primeiro plano, com focos de luz intensa sobre os detalhes, geralmente rostos. O uso de sombra e luz é marcante em suas obras, e é justamente esse chamado “tenebrismo” que atrai o observador para dentro da cena.
Boa parte de suas primeras obras ou representavam cenas mitológicas como esse Baco, ou cenas da vida cotidiana como, por exemplo , O Alaudista.

Caravaggio - Baco / O Alaudista (imagens wikimedia)


Caravaggio, como se pode afigurar através dessas pinturas – o Alaudista mora em Berlim e o Baco na Galeria Uffizi, em Florença - era abertamente homossexual em uma época em que tal opção sexual era crime de sodomia, punido com a fogueira.

O deus do vinho e do prazer de Caravaggio, à esquerda, foi pintado com um realismo sem precedentes e era um jovem gorducho, de bochechas rosadas e bastas sobrancelhas negras estendendo para o pintor, a taça do prazer.

Esse quadro de Baco, pintado em 1597, possui um detalhe interessante. Trata-se de um pequeno auto retrato do pintor, a imagem de um homem jovem – Caravaggio teria então vinte e cinco anos - de cabelos encaracolados e escuros, espreitando de dentro da garrafa de vinho, no primeiro plano à esquerda da composição.

Ele está segurando um pincel e trabalhando diante de um cavalete. Na pintura original. se soubermos para onde olhar, são perfeitamente visíveis os olhos, o nariz, o pescoço e o braço da pequena figura, que aparece em meio à luz refletida na superfície do vinho:

(imagem spoiledbitchtravelblog.blogspot.com)


Na segunda tela o outro rapaz à direita batizado de Alaudista – que pode muito ter sido o mesmo modelo que posou para o Baco - por sua vez é tão “fofo” que muita gente o toma por uma garota. O fato é que esses deus e músico não são Romeus ansiando por suas Julietas, mas rapazes oferecendo-se ao pintor.

O que eu acho fantástico nestas telas é justamente a taça rasa na qual o “muso” oferece o vinho escuro, roxo, convidativo.
A forma aguda e convincente de Caravaggio pintar a garrafa de vinho, ou as frutas era, mais que tudo, aquilo que revelava a sua natureza faminta, agressiva, o seu temperamento perigoso, a sua realidade violenta.
Veja que, no entanto, a corrupção e a decadência nunca estão muito longe: a romã demasiadamente madura e o buraco de bicho na maçã recordam-nos da transitoriedade de todas as coisas.

Caravaggio não aprovava nem tão pouco desaprovava os seus temas, mas os representava com um tédio e uma tristeza latentes, mostrando-os como as frutas e as flores, que logo feneceriam no aposento escuro.


10 comentários:

  1. Mônica Silva11/04/2017, 08:41

    Então...você sabe que amo os seus artigos sobre artes onde aprendo demais. Adorei o autoretrato na garrafa de vinho! São pequenos detalhes como este que você explica super bem que fazem seus artigos interessantes sem ser cansativos. Mas as fotos não devem ser pequenas, Moacir, senão não dá pra ver direito e eu tenho que ver não pra crer mas pra entender kkk
    O tamanho ideal é o do maravilhoso quadro de São Tomé. Não fique chateado e muito muito obrigada!

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    1. Moacir Pimentel11/04/2017, 14:32

      Mônica,
      Como eu poderia ficar minimamente "chateado" com você? Nada a ver. A crítica construtiva é sempre bem vinda e eu lhe agradeço pela sugestão. Os meus posts de arte vêm se modificando nos últimos meses. Tenho tentado escrever artigos menos loooongos e cansativos (rsrs) e a descrever só uma tela em vez de várias obras, como foi o caso da Mona Lisa Quadrimensional do Jean Metzinger , daquele Nu do Lucien Freud e do texto sobre as Duas Mulheres na Janela do Murillo, no post de Sevilha.
      Sucede que temos um limite para as fotos no Blog e por isso às vezes opto pelas montagens que ocupam o espaço de uma foto enquanto que, mesmo mal, mostram várias.
      Só que esses artigos sobre Caravaggio foram escritos há meses atrás, quando eu ao mencionar duas obras de um artista mostrava-as em composições duplas com as fotos na horizontal, lado a lado. Note que em posts mais recentes tenho preferido montar duas telas ou esculturas uma em cima da outra, porque na vertical elas ficam maiores, como ocorreu por exemplo e várias vezes nas matérias sobre o Rodin e a Camille.
      No entanto sempre teremos posts , notadamente os "turísticos", nos quais você encontrará montagens com duas, quatro e até mesmo seis fotos as quais, de outra maneira, não teríamos com publicar.
      Quando você desejar visualizar uma tela com mais detalhes, sugiro que jogue, por favor, o nome dela e do seu autor no Google e faça uma pesquisa de imagem :

      1)O Alaudista – Caravaggio

      http://photos1.blogger.com/blogger/5590/2495/1600/765px-Michelangelo_Caravaggio_020.jpg

      Obrigado pela leitura e comentário.
      Abração




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    2. Mônica Silva12/04/2017, 13:34

      Seus artigos não são chatos, Moacir. São tudo de bom! Agora eu entendi as fotos pequenas e vou deixar o comodismo de lado pra buscar as obras de arte no Google. Me desculpa por tomar o seu tempo. Obrigada!

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  2. Flávia de Barros11/04/2017, 12:07

    Moacir,
    Mais uma aula excelente sobre um grande mestre da Pintura. Tenho uma predileção pelas obras que mostram passagens da Bíblia e dos Evangelhos de Nosso Senhor Jesus Cristo mas não conhecia o maravilhoso São Tomé de Caravaggio. Agradeço a você por um dos quadros mais realistas e belos que já vi. Também não sabia que o barroco foi uma reação da Igreja contra o protestantismo. Fiquei com uma dúvida sobre um dos meus artistas preferidos. O estilo de Rembrandt também era barroco?
    Um abraço para você.

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    1. Moacir Pimentel11/04/2017, 14:45

      Flávia,
      No século XVII rolou a divisão permanente entre a Igreja Católica Romana e os protestantes e tal fato atingiu tudo e todos. Como os protestantes não representavam as pessoas ou objetos foi como se os princípes da Igreja tivessem decidido deslumbrar seus fieis com a magnificência e riqueza da decoração de seus templos. Ou seja, a Igreja passou a construir em ritmo acelerado e precisou de muitos pintores e escultores para tornar impactantes o interior dessas novas igrejas.
      Na verdade, a arte barroca e aquela do Renascimento versaram sobre os mesmos temas mas as imagens barrocas tinham mais movimento e emoção.Os dois Davis de Michelangelo e de Bernini são um exemplo disso,lembra?
      Eu não ligo muito para os rótulos em arte.Mais importante do que saber se El Greco foi bizantino, renascentista, maneirista ou barroco, a mim interessa muito mais que ele tenha sido tudo isso e conseguido ser ainda mais : um modernista “em formação”. (rsrs)
      Mas sim é válido dizer que Rembrandt tinha um estilo barroco.E se você me perguntar o que isso significa, eu lembraria a você a origem do termo, a pérola “barroca” ou “irregular” uma coisa bela porém desprovida da perfeição e do equilíbrio perseguidos pela Renascença.Um estilo mais dramático, escuro, vivo, intenso que os especialistas subdividem em vários barrocos:italiano católico, holandês protestante, flamengo, espanhol e por aí vão querendo dizer , na verdade: Caravaggio,Poussin, Bernini, Rubens, Rembrandt, Vemeer e Velázquez e Murillo e muitos outros que preferiram retratar a vida como a viam e emoções e personagens humanos em vez de fazer propaganda bonitinha ou extravagante. Caravaggio é Caravaggio e Rembrandt é Rembrandt e ambos fizeram grande arte.
      Obrigado pela leitura e comentário e outro abraço

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  3. 1) Gosto muito de São Tomé. Ele era grego, e na cultura grega naturalmente faz parte o "ver para crer", uma civilização que puxa mais para a Filosofia do que para a Fé.

    2) Gostei, claro, do Tomé de Caravaggio, e o realismo cru da ferida de Cristo.

    3)O Deus Baco tem músculos de quem trabalha, parecem músculos de operário. Se é auto-retrato, mostra o pintor carregando os quadros e molduras daqui para lá etc.

    4)A meu ver, estou indo bem no meu curso de "História da Arte", o professor Pimentel é brilhante.

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    1. Moacir Pimentel12/04/2017, 08:46

      Antônio,
      Eu não sabia que São Tomé era grego. Faz todo sentido então o ver para crer. Agradeço a você pelas boas pretinhas de incentivo mas por aqui aprendemos todos e uns com os outros e é essa a graça do Conversas.
      Abração

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  4. Francisco Bendl11/04/2017, 18:42

    Pimentel,

    Mais um artigo que me faz copiá-lo e arquivá-lo junto aos demais, que complementa as informações e detalhes que são transmitidos em teus textos irrepreensíveis em se tratado de artes, de sensibilidade, de uma interpretação sobre a vida que transcende a compreensão de pessoas como eu, que sequer imagina este poder imenso de criatividade do ser humano!

    Obrigado por mais este registro brilhante e imprescindível para quem deseja saber sobre escultores e pintores geniais, e que devem ser enaltecidos através de obras com este quilate que caracteriza as tuas postagens.

    Um forte abraço.
    Saúde e paz.

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    1. Moacir Pimentel12/04/2017, 08:52

      Bendl,
      Obrigado por me colocar tão seguidamente no seu arquivo.(rsrs) Só não me deixe por lá esquecido. Apareça, de vez em quando, para resgatar da poeira os velhos textos, através da sua leitura que muito me honra.
      Valeu!
      Abração

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  5. Olá Moacir Mestre,
    Adorei cada palavra, desde o "tantinho sobre o tal do barroco" até o fundo raso escuro
    e os modelos rudes e reais de Caravaggio, e sua existência marginal refletida na sua arte.Não dá muito para separar, não é?
    O menino do lagarto é o mesmo Baco e o Alaudista, não é, o garoto de Caravaggio?
    Aula complementar particular para a Flávia, gostei demais!
    Aconselhei seus textos para uma amiga que está vendo exatamente ele numa aula de história da arte na UEMG.
    Gratíssima.
    Até mais.

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