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02/04/2017

Um outro Papa Hem

Hemingway em 1939 (fotografia de Lloyd Arnold,)

Wilson Baptista Junior 
O Moacir, quando começou a escrever sobre o Papa, disse, com muita propriedade, que Ao teclar sobre as minhas histórias prediletas entre todas as maravilhas que Hemingway escreveu, terminaria falando muito mais sobre mim mesmo do que sobre o artista. Então muito mais do que falar sobre a obra do “Papa Hem” para os íntimos e de Ernest Hemingway para os pobres mortais, eu gostaria de conversar sobre o homem do mundo cujas viagens globais estão bem refletidas em suas obras famosas.”
E acabou dedicando o segundo dos belos posts que escreveu sobre ele fundamentalmente ao que o Papa contou numa de suas obras, “Paris é uma festa”. O que acabou por dizer muito, também, sobre ele mesmo.
É o risco que se corre quando se fala de um autor que mexeu com a alma da gente.
Para não fazer um comentário longo demais como merecem estes posts do Moacir, preferi em vez disso fazer também um post sobre o Papa e o que ele deixou em meu coração e a minha memória. Mesmo correndo esse risco...
Da obra do Papa Hem, olhando o seu conjunto, podemos dizer que é na essência uma longa autobiografia. Uma autobiografia que, como tudo o que alguém fala de si próprio, fica-se sem saber muito bem o que fala do que a gente é e o que fala do que a gente queria ser. E, no caso dele, uma autobiografia que às vezes chega a ser presciente, porque certos trechos foram escritos primeiro e as coisas aconteceram depois.
Como o seu conto “As Neves do Kilimandjaro”, onde  um escritor passa em revista partes da sua vida enquanto está morrendo, com uma ferida gangrenada, junto de sua mulher e de seu caminhão quebrado numa planície africana esperando um socorro que não vem.
O conto foi escrito em 1936; dezoito anos depois, viajando em Uganda com sua quarta mulher, Mary, seu avião fez uma aterrissagem forçada onde ele se feriu; resgatados, embarcaram em outro avião que deveria levá-los a um hospital em Entebbe; este segundo avião caiu na decolagem e explodiu, e os dois foram novamente feridos, desta vez bem mais seriamente.
A diferença importante é que da segunda vez o socorro veio...
Mas considerar seus escritos apenas como uma tradução de relatos de uma vida vivida ou imaginada não faz justiça ao trabalho intenso e contínuo com que ele desenvolveu uma maneira de escrever que incontáveis autores tentaram imitar apenas para descobrir depois que era impossível. 
Na edição que tenho da Heinemann-Octopus (1977) de uma coletânea de suas obras, o autor do prefácio, que não deixou seu nome, conta que já no começo da carreira, em Paris, Hemingway resumiu a base de sua maneira de escrever:
“Tudo o que você tem que fazer é escrever uma sentença verdadeira. Escreva a sentença mais verdadeira que souber”.
E que foi também nessa época que ele desenvolveu sua teoria da omissão: ele acreditava que o que era sabido mas não dito pelo autor era tão importante quanto o que aparecia na página. Que isso “tornaria a história mais forte e faria as pessoas sentirem algo mais do que compreendiam”.
Na introdução da minha edição de 2012 da Vintage Classics de “A Farewell To Arms”, seu neto Seán Hemingway diz que o avô chamava isso do “Princípio do Iceberg”: Para cada parte que aparece há sete oitavos a mais submersos.
Difícil de imaginar, mas que com toda a certeza funcionou para Papa...
Ele escreveu certa vez que “O trabalho de um escritor é dizer a verdade. Seu padrão de fidelidade à verdade deve ser tão alto que o que ele inventa, tirado de sua experiência, deve produzir um relato mais verdadeiro do que qualquer relato factual poderia ser”.
Sua busca desse padrão foi incessante e exaustiva. Na introdução que escreveu para a edição de 1948 do “Adeus às Armas”, ele diz que ao longo dos dois anos em que escreveu o livro a cada dia antes de começar a escrever ele relia o manuscrito desde o princípio até o ponto em que havia parado na véspera, e cada dia parava de escrever enquanto ainda sabia o que ia acontecer depois daquele ponto. E diz que reescreveu o final trinta e nove vezes até ficar satisfeito.
Acredito nele, porque a minha edição especial do livro, que inclui a introdução da de 1948, traz além do final “definitivo” mais dez desses finais alternativos, cada um com uma quantidade de correções...
O primeiro livro dele que li, ainda garoto, foi “Por quem os sinos dobram”. Nele tive minha primeira visão da guerra entre republicanos e franquistas, que depois vim a entender melhor vendo as reportagens da época nas revistas de meus pais, e do fundo da alma dos alter-egos do Papa, que ele passou a vida criando para nos contar um pouco dele.
As páginas finais do livro, onde o americano, ferido e morrendo numa guerra que não era dele, se esforça para se manter vivo pensando nos companheiros e na moça por quem se apaixonou que estão escapando para aguentar esperar a chegada dos perseguidores inimigos e conseguir comprar um pouco mais de tempo para os fugitivos matando o tenente que comanda o destacamento, são um dos trechos mais emblemáticos dessa simbiose entre seus personagens, quem era e quem queria ser o Papa, que, fiel à sua teoria da omissão, termina a narrativa segundos antes de sabermos se Jordan consegue ou não puxar o gatilho...

O segundo foi “The Dangerous Summer”, quando foi publicado em capítulos pela revista Life, antes de ser transformado em livro. Uma longa reportagem real da rivalidade entre Luís Miguel Dominguín, o maior toureiro da Espanha na época, e Antonio Ordóñez, um jovem toureiro em ascensão que gradualmente toma o seu lugar durante o ano de 1959. Suas descrições dos combates despertaram meu interesse pelas corridas de touros, e eu esperava ansiosamente o capítulo da semana seguinte.
Depois foi que li o magnífico “O Velho e o Mar”, um punhado de novelas e algumas dezenas de histórias curtas. Uma dessas, em particular, “A Vida Curta e Feliz de Francis Macomber”, a história de um esportista rico que vai fazer um safari e se apavora ao confrontar seu primeiro leão e foge desorientado, deixando para o caçador profissional que o acompanha matar o animal para salvar sua vida. Humilhado e traído por sua mulher com o caçador e na frente dos carregadores africanos, Macomber no dia seguinte faz das tripas coração, encontra dentro de si a coragem que não sabia que tinha e nessa epifania enfrenta a pé firme o ataque de um búfalo ferido mas enquanto atira é morto pelas costas por um tiro de sua mulher que nunca ficamos sabendo de verdade se tentou salvá-lo do búfalo ou se atirou deliberadamente nele.
Essa descrição, claro, não chega nem perto de dar uma ideia do que é a complexa  trama psicológica e a narração brilhante daquela que é, para mim, uma das pequenas obras primas do Papa.
Papa foi correspondente em quatro guerras, mas o que nem todo o mundo sabe é que além de observar participou ativamente de três: na Primeira Guerra Mundial, como motorista de ambulância, porque um defeito na visão de seu olho esquerdo impediu que ele se alistasse como combatente (condição irônica para quem já era um excelente atirador e foi por toda a vida apaixonado pela caça); nessa ele foi ferido por duas balas de metralhadora e uma quantidade de estilhaços de um disparo de morteiro que não impediram que ele carregasse nos ombros um combatente italiano ferido até a segurança. Depois, no hospital, apaixonou-se perdidamente por uma de suas enfermeiras, de quem ficou noivo só para receber mais tarde uma carta dela dizendo que tinha ficado noiva de um oficial italiano...
Na Guerra Civil Espanhola, embora nominalmente como correspondente, as simpatias do Papa pela causa republicana o levaram a realizar missões de inteligência para o governo republicano atrás das linhas fascistas.
Depois de Pearl Harbor ele passou um ano e meio patrulhando a Corrente do Golfo e as águas do Caribe a bordo de seu barco de pesca, o Pilar, procurando submarinos alemães, até voltar ao seu trabalho de correspondente de guerra. Embora tivesse sido proibido, por ser considerado muito valioso, de desembarcar com as primeiras ondas de assalto nas praias da Normandia, tendo que cobrir o desembarque de bordo de um navio (o que não era sem riscos), quando o deixaram desembarcar juntou-se a uma unidade de combate e mais tarde, clandestinamente (e ilegalmente), a um grupo de maquisards da Resistência que chegou a liderar e que foi um dos primeiros a entrar em Paris, antes de voltar para o norte da França e acompanhar, agora de novo como correspondente, um regimento de infantaria em seu combate até a Alemanha. 
Papa, o fotógrafo Robert Capa (à esquerda) e seu motorista na Normandia em 1944
Sua experiência na Primeira Guerra foi material para o seu “Adeus Às Armas”; na Guerra Civil Espanhola para “Por Quem os Sinos Dobram”, e na Segunda Guerra Mundial para “Do Outro Lado do Rio, Entre as Árvores” e “Ilhas na Corrente”.
Seu pai, que o tinha ensinado a gostar da pesca, da caça e da vida ao ar livre, com problemas de saúde e financeiros suicidou-se com um tiro de espingarda em 1928, quando Papa estava escrevendo o “Adeus Às Armas”. Isso marcou toda a vida do filho, que considerava que o pai não tinha sabido aguentar a suas dificuldades e por se suicidar tinha falhado aquele moto fundamental do Papa que o Moacir nos contou: “Coragem é graça sob pressão”. O filho se referiu ao que considerava a covardia do pai em mais de uma de suas histórias: das que eu me lembro agora, o Doutor em “O Doutor e a Mulher do Doutor”, o pai do Robert Jordan em “Por Quem os Sinos Dobram”, o pai de Nick Adams em “Pais e Filhos”, o pai de Harris em “Homenagem à Suíça”, todos são imagens do pai de Papa.
Talvez por isso Papa tenha sido, a vida inteira, obcecado com a morte. Ou antes com o modo de morrer. O Harry de “As Neves do Kilimandjaro”, o Robert Jordan de “Por Quem os Sinos Dobram”, o Francis de “A Vida Curta e Feliz de Francis Macomber”, o Coronel Cantwell de “Do Outro Lado do Rio Entre as Árvores”, o garoto Paco que queria ser toureiro de “A Capital do Mundo”, o Thomas Hudson de “Ilhas na Corrente” – todos, cada um a seu modo, descobrindo ou reafirmando na morte algo da coragem ideal masculina que marcava os personagens do Papa.
Com exceção do “Paris É Uma Festa”, que é um caleidoscópio da vida do autor e seus amigos durante um período precioso de suas vidas na França, em todas as histórias do Papa é o enfrentamento de seus personagens consigo próprios à procura dessa atitude para ele ideal que é o leitmotiv de sua obra. E sua vida reflete isso no envolvimento com as guerras (de que ele escreveu em 1948 que, tendo estado muito perto de demasiadas delas, pudera perceber que são lutadas pelas melhores pessoas e provocadas pelas piores pessoas que existem, e por isso queria fuzilar pessoalmente todos os que lucram com elas), na pesca em alto mar, nas caçadas na África e no Wyoming, na paixão pelas touradas, nessa vontade de viver que não excluía cortejar a morte, e que ele resumiu uma vez como
“O conselho mais sólido para um escritor, penso eu, é este: Tente aprender a respirar fundo, a realmente sentir o gosto da comida quando comer, e quando for dormir, dormir de verdade. Tente o mais possível estar inteiramente vivo, com todas as suas forças, e quando rir rir como o diabo. E quando ficar com raiva, fique com raiva de verdade. Tente estar vivo, você logo vai estar morto.”
É esse Papa que guardo comigo. É esse que ouço quando olho para seus livros nas estantes. Alguma coisa minha responde à sua voz, não sei bem o quê. Talvez alguma coisa que eu já tenha feito e muita que eu não fiz. Talvez o sonho impossível de caçar numa África que não existe mais...
Mas essa ânsia de viver não foi barata. As sequelas dos ferimentos na Primeira Grande Guerra, dos muitos ferimentos nos dois acidentes de avião na África, que incluíram uma fratura do crânio e uma séria concussão cerebral, um acidente de carro em 1930, uma nova concussão num acidente de automóvel em Londres, quando esperava para embarcar para a cobertura da Normandia, outro acidente de carro em 1945, o fígado deteriorado pelos anos de muita bebida e, suspeitam os médicos, os efeitos deteriorantes no cérebro da hemocromatose herdada de seu pai acabaram por destruir a resistência do Papa e mergulhá-lo numa depressão que acabou levando-o ao suicídio, ironicamente com um tiro de espingarda de caça na boca, da mesma maneira que o seu pai.
Fico pensando, às vezes, nas maravilhas que Papa talvez ainda pudesse ter produzido se as dores, a doença e as dificuldades não o tivessem acabrunhado a ponto de resolver subir mais cedo para trocar histórias de pescaria e discutir a do negro Jim. E não sou só eu. Outro de meus autores preferidos, o grande Ray Bradbury, aquele poeta dentro e fora da science fiction, escreveu um conto em 1972, chamado “The Parrot Who Met Papa” (O papagaio que conheceu Papa), sobre um velho papagaio que vivia numa gaiola pendurada em cima do balcão de um botequim pouco conhecido perto da casa do Papa em Finca Vigia, e onde ele costumava beber sozinho quando queria fugir da turma que o procurava no Floridita. E nos anos em que Papa já não conseguia mais escrever como queria, depois do “Ilhas na Corrente”, ele costumava afogar as mágoas nesse balcão de bar e conversar com o papagaio e lhe contar sobre o seu próximo livro, que teimava em não escorrer mais de dentro da cabeça para os dedos. Um dia, depois da morte do Papa, o papagaio foi sequestrado por um escritor mau caráter de quinta categoria que...
E mais não conto porque não quero estragar o prazer dos leitores que porventura ainda venham a ler a história. Só adianto que o  Moacir provavelmente gostaria do final...



13 comentários:

  1. 1) Muito excelente o diálogo literário entre Moacir e Mano.

    2) Nós eleitores ganhamos em Arte, Informação, Literatura, História, Geografia etc.

    3) Continuem, por favor.

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    1. Wilson Baptista Junior02/04/2017, 16:39

      Obrigado, mestre Antonio. Vamos continuar, mas vocês também!

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  2. Francisco Bendl02/04/2017, 09:36

    Wilson,

    A soma dos textos postados que abordam Heminguay, o teu e o do Moacir, perfazem uma excelente resenha dos trabalhos deste genial escritor, tendo eu copiado a ambos e colocado dentro do livro Por Quem os Sinos Dobram!

    Conversas do Mano se notabiliza como um extraordinário espaço cultural justamente porque possibilita que as análises apresentadas possam ser retomadas e aprofundadas, esmiuçando o tema, e oferecendo aos leitores detalhes que dificilmente seriam encontradas em obras avulsas.

    Da minha parte, agradeço esta consideração pelo leitor e frequentador do blog, que não somente lê um registro muito bem feito, mas também colhe informações importantes sobre os personagens mencionados ou locais visitados, além de contos, narrativas e crônicas as mais diversas.

    Parabéns, Wilson. Perfeito.

    Um grande abraço.
    Saúde e paz.

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    1. Wilson Baptista Junior02/04/2017, 16:45

      Amigo Chico,
      Fico muito feliz que você tenha gostado. Uma das conversas mais estimulantes é sobre livros, mas, como foi citado pelo Moacir, é mais complicado, porque não é tão fácil mostrar ao leitor uma imagem do que ele por acaso não tenha lido. Então o que escreve fica contente quando encontra no leitor um eco como o seu.
      Um abraço do
      Mano

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  3. Olá Mano,
    Marido à parte, sou fanzoca desse blog! E adoro todos os escrevinhadores!
    Os comentários então...dariam outro blog. Se nāo nos censurássemos entāo, hem Francisco Bendl, daria outro blog ainda.
    Duelo bacana sobre o Hemingway. Poderosos , esses caras!
    Até mais sempre.

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    1. Wilson Baptista Junior02/04/2017, 17:00

      Ana, gosto muito de você gostar do blog. Só um reparo (para os leitores, não para você, porque sei que foi figura de linguagem:), não é um duelo, mas uma conversa, onde nenhum quer vencer o outro.
      Um beijo.

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  4. Francisco Bendl02/04/2017, 16:32

    Aninha, minha parceira dissidente e amplamente favorável à liberdade de expressão,

    A censura imposta pelo Mano não tolhe o pensamento e tampouco arrefece a vontade, pelo contrário, provoca a criatividade e incentiva a argumentação para que o blog extraordinário permita, com relação aos artigos postados, um pouco de tempero político, pois até mesmo as obras de arte, literatura e música, foram envolvidas pela política em todos os tempos da história da humanidade!

    A tua relação com o Wilson, teu esposo, a minha com a Marli, o Rocha com a sua mulher, todas, sem exceção, têm seus componentes políticos, no mínimo a arte de se conviver com as diferenças, a começar que estão casados um homem e uma mulher.
    Queres mais diferenças que estas?!

    Dito isso, aceito que o Mano não queira um blog como os demais, cuja essência é sobre esta ( snip / ---------------------- / snip), mas um que outro registro que esteja de acordo com o tema postado, penso que o Wilson deveria levar em conta.

    Evidentemente é a minha opinião, pois o dono do espaço é o Mano, que faz o que deseja e quer no seu blog, e quem discordar, bye, bye.

    Um forte abraço, Aninha.
    Saúde e paz, extensivos aos teus amados, inclusive ao dono da tesoura!

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  5. Wilson Baptista Junior02/04/2017, 16:36

    Chicão, Chicão...

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  6. Moacir Pimentel02/04/2017, 19:46

    Wilson,
    Ao escrever sobre o Papa Hem no âmbito de Paris é uma Festa eu apostei que você, em seguida, conversaria sobre o que eu não dissera, porque quem teve na infância e na adolescêcia o Papa Hem como "velho companheiro" não se segura: tem que tentar expressar "aquilo em nós que responde à sua voz, não sabemos bem o quê , talvez alguma coisa que nós já tenhamos feito e muita que eu não fizemos". Bravo!
    Mesmo depois de tudo o que nós dissemos sobre o Papa, cada um dos seus livros e contos mereceria um post para chamar de seu. Muita gente boa acredita que, mais do que os romances, as short stories foram as verdadeiras obras primas do autor.
    Além de As Neves do Kilimanjaro, e da A Vida Curta e Feliz de Francis Macomber, mencionadas por você, merecem menção entre elas Um Lugar Limpo e Bem Iluminado e Colinas como Elefantes Brancos porque ali ele consegue nos contar uma história sem que, na realidade, a conte.
    Como esquecer o impressionante retrato da Espanha que ele tanto amava nas linhas premonitórias de A Capital do Mundo, nas quais o Papa Hem foi oráculo, escrevendo a gênese do longo pesadelo da Guerra e começando a fazer os sinos dobrarem por milhões de adolescentes que, como o Paco, não viveriam para ver o sol nascer?

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  7. Moacir Pimentel02/04/2017, 19:58

    Através de diálogos telegráficos povoados por signifivados muitas vezes não articulados, Hemingway aborda a angústia e desilusão humanas , mas faz isso transformando em temas épicos o trivial – como em o Velho e o Mar! – e em projeções psíquicas as rotinas cotidianas, no tal "princípio do iceberg" mencionado por você que, ao fim e ao cabo, são palavras mudas e entrelinhas grávidas onde a gente sempre leu uma emoção crua codificada que ninguém chegou perto de imitar.
    Em meio à violência e falta de sentido da vida tão presentes nas pretinhas dele, Hemingway jamais negou fogo ou se rendeu e nós nos seus escritos sempre encontraremos dignidade, o que, por sua vez, nos ajuda a ir atrás e encontrar significados.
    Quanto ao lema dele “Coragem é graça sobre pressão”, talvez ele descreva a própria obra. Nela a graça seria a fluidez, a suavidade e a naturalidade das cenas , a sensação perene de inevitabilidade dos enredos. Já a pressão seria a necessidade que ele tinha de manter suas histórias com um pé no chão, bem abotoadas e reduzidas à sua essência.
    Finalmente o melhor da festa é que, como você tão bem colocou, nesses nossos LDD - long distance diagnosis (rsrs) - não há duelo, não queremos estar certos sobre o homem nem o escritor , não precisamos ganhar o "debate" nem levar para casa o troféu de mais esperto.
    O que queremos é realmente conversar , compartilhar o que sentimos conhecendo o vasto mundo e querendo mais dele naquelas páginas. Descobrir no seu belo post que esse encantamento não foi só meu, é um sentimento muito bom. Por ele, muito obrigado, Wilson.

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    1. Wilson Baptista Junior03/04/2017, 22:21

      Moacir,
      Bem como você disse, dá vontade de escrever sobre cada conto e cada novela que o Papa escreveu. Seus escritos já foram exaustivamente analisados por críticos literários, linguistas, estudiosos de literatura, procurando entender o segredo da sua maneira inimitável de contar histórias. Mas não é disso que estamos falando aqui, nem eu nem você, deixemos isso para a crítica (alguém já disse que um crítico é alguém que queria ser um escritor mas não teve talento para isso) e a academia (que se especializa em dissecar alguma coisa tão completamente que não percebe quando a alma se escapa entre os cortes de seus bisturis).
      O que nos interessa é o que o Papa deixou nas nossas almas com cada um de seus escritos que lemos. E que nos toca em algum outro lugar, e onde descobrimos um pouco mais, de cada vez que relemos.
      E que dizem, provavelmente, coisas diferentes a cada um dos seus leitores. Me lembro aqui de um de seus contos, “Os Assassinos”, que foi duas vezes filmado, uma em 1946, outra em 1968, depois da sua morte (essa eu assisti antes de ter lido o conto) e em que os roteiristas e os diretores tentaram encontrar “os sete oitavos do iceberg” que ficaram sem ser contados. Não sei o que o Papa terá achado da primeira versão, a segunda ele não viu. Mas virou outra história. Seria a mesma imaginada por quem leu o conto antes de ver o filme? Não sei. Dificilmente.
      Claro que raramente a imaginação de um leitor bate com o roteiro do filme feito com o livro que ele leu. Mas neste caso é interessante porque o roteiristas tentaram recriar, a seu modo, toda a história não escrita que vem antes do conto. Tentaram achar uma razão para o que o Papa conta. Teria sido preciso?
      Fico imaginando se alguém tentasse filmar o “Colinas como elefantes brancos”. Não imagino como. Talvez alguém como o Godard...
      Fico feliz que você tenha gostado de ver que o encantamento da leitura do Papa não foi só seu. E fico feliz porque isso tenha tido a ver com o nosso Conversas.
      Um abraço do Mano

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    2. Moacir Pimentel05/04/2017, 09:50

      Wilson,
      O Papa sempre nos disse que tudo era "nada y pues nada y nada y pues nada" mas com as suas magníficas histórias nunca permitiu que realmente desacreditássemos que a vida era worth living.Simples assim.
      À tchurma dos críticos e doutos acadêmicos a dissecar os livros alheios e a retalhar suas almas de bisturis em punho, eu acrescentaria os leitores que, incapazes de abstrair as narrativas, tentam traduzí-las unica e pobremente a partir das biografias de seus autores.
      Com relação ao filme Os Assassinos tenho certeza que Hemingway o teria odiado porque não saber quem é Ole Anderson e o que diabo ele fizera é justamente a maravilha da coisa, a graça da história , o tal "algo mais do que compreendemos" mas que com certeza podemos IMAGINAR criando mil enredos.
      Você introduziu na conversa uma velha polêmica: a dos livros versus os filmes que inspiraram. Sou de opinião que os filmes são uma beleza mas que simplesmente não têm o mesmo poder dos livros porque assistindo-os somos apenas observadores. Não sentimos o que o personagem sente, não lemos os seus pensamentos íntimos, as suas dúvidas e medos e esperanças. Os livros permitem que a gente sinta e saiba e VIVA mais. Olhe que isso pode dar samba.
      Finalmente e talking in circles se é muito difícil descrever para um leitor um livro que nos tocou a alma funda mas que ele não leu, pergunto: você não poderia publicar algumas das shorties do Papa - e de tantos outros gigantes! - e , em seguida e a partir dos comments , é claro, conversar sobre elas em mais um post?
      Abraço

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  8. Wilson Baptista Junior06/04/2017, 17:27

    Você definiu bem porque os filmes feitos a partir dos livros não falam a mesma língua dos autores. São duas linguagens muito diferentes, o livro com seu tempo e seu espaço abertos à imaginação, o filme com sua imediatez e sua possibilidade de descrever graficamente o personagem e seu espaço, e com a dificuldade de deixar dito o que o personagem pensa ou pensou. Todos os dois grandes meios e capazes de produzir obras primas, mas quando se faz um filme a partir de um livro é outra obra, inútil procurar nele o escritor do livro.
    Quanto à sua idéia sobre o formato da conversa literária, seria uma maravilha se não tivéssemos, como você mesmo disse, que conseguir a cessão dos direitos autorais, e se tivéssemos os conteúdos em português, o que em geral não é o meu caso, e acredito que nem o seu. Mas vamos pensar, quem sabe?

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