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Moacir
Pimentel
E cá estamos em Montmartre
outra vez diante de outro dos ícones mundialmente conhecidos do bairro parisiense:
o Cabaret Moulin Rouge, cujas lendas são mais interessantes do que os shows.
Muitos filmes têm contribuído
para que Montmartre seja invadido por milhões de turistas anualmente em uma
caça desenfreada aos seus encantos cinematografados. Eu ainda nem era nascido e
já no filme Um Americano em Paris o Gene Kelly e a Leslie Caron terminavam em
Montmartre. A história do Moulin Rouge e a invenção da famosa dança cancan nos
foi contada também pelos atores Jean Gabin e Maria Felix, sob a direção de Jean
Renoir, o filho do pintor Pierre-Auguste Renoir, um dos mais ilustres dos antigos
moradores de Montmartre.
No seu filme Meia Noite em
Paris, Woody Allen imagina o que aconteceria se o nosso desejo pelo passado
pudesse ser consumado e se tornasse realidade. A Paris dourada e cinza, ventosa
e melancólica, imune a seus próprios e abundantes clichês que Woody inventou
como pano de fundo, certamente ajuda o tímido e jovem Gil - que nada mais é do
que um alterego do diretor – no papel de um roteirista de Hollywood aspirante a
romancista, que no entanto é mais conhecido por suas habilidades em reescrever.
Pleno de sonhos juvenis de
glória literária, suspeito de pretensão e permanentemente insatisfeito, uma
bela noite, enquanto passeia sozinho pela cidade e exatamente quando o relógio
toca as doze badaladas da meia-noite, o personagem - mais do que um pouco
bêbado! – vira uma espécie de Cinderelo ao ser abordado por um bando de
barulhentos americanos que o convidam a embarcar em um antigo Peugeot e a
viajar de volta no tempo para encontrar a Paris boêmia dos anos vinte que Gil idolatrava.
Nessa viagem ele janta um
choucroute garnie com Picasso no La Rotonde e esbarra em Zelda e F. Scott
Fitzgerald numa festa, na qual Cole Porter canta “Let’s Do It”. Recebe
conselhos sobre como escrever de um lacônico Hemingway bebericando um absinto
num boteco não muito diferente do lendário café Dingo e convence Gertrude Stein,
sentada ao lado do seu famoso retrato pintado por Picasso, a ler seu manuscrito
e se transforma em apto aluno de uma imperativa professora.
No screenplay, nosso antiherói
prossegue firme e forte fazendo confidências a Salvador Dalí e ao fotógrafo Man
Ray, transformando T.S. Eliot em mantra,
tentando dar um golpe póstumo em Matisse, tornando-se o provedor de ideias
fantásticas de Buñuel ao sugerir-lhe que faça um filme sobre um jantar
fracassado - @#$%@! - O Anjo Exterminador. Vira o salvador da problemática
Zelda quando ela tenta se jogar no Sena e last but not least se apaixona pela
amante de Picasso, interpretada pela Marion Cotillard. E ainda tem tempo de
interagir com Djuna Barnes, Josephine Baker e outras figuras nativas e
expatriadas do grande elenco de extraordinário talento, que povoou a Paris da
Era do Jazz.
Como não mencionar a “fabulosa”
Amélie Poulain, uma doce parisiense determinada a ajudar o próximo e a bem amar
nas estações de metrô e mercearias do bairro e nos jardins abaixo da Sacré Coeur, que virou uma febre. O Café des Deux Moulins que hospedou algumas das cenas do
filme hoje faz parte de qualquer roteiro turístico, bem ali em uma das esquinas
da Rua Lepic.
Inesquecível foi, com certeza,
o musical hollywoodiano Moulin Rouge numa Paris de 1900 - de longe a mais
visualmente deslumbrante das obras-primas de Baz Luhrmann – que relata a
trágica história de amor de uma bela dançarina de cabaré e prostituta de luxo e
de um poeta desarrumado e de sua turma de amigos artistas inadaptados, entre
eles Henri de Toulouse-Lautrec era coadjuvante.
Não dá para esquecer aquela
Nicole Kidman ruiva levando o Oscar para casa, graças ao papel de belíssima
cortesã, para quem o projeto de escritor apaixonado cantava Your Song nos
telhados do cabaret.
Sinceramente? Todas essas
referências retumbantes e românticas fazem a cabeça do turista do terceiro
milênio que, chegando a Paris de seus sonhos, às vezes se decepciona.
É por isso que a todas essas
novidades eu ainda prefiro La Vie en Rose e as fabulosas mots d’amour que a
eterna Edith Piaf costumava cantar nas noites de boemia...
Mas... deixemos a nostalgia de lado.
Se bem me lembro da última vez
que nos encontramos em Montmarte, eu
tinha acabado de fazer uma massagem gratuita e me encontrava sentado em uma das
mesas da Praça du Tertre, brechando a multidão enquando tomava uma cerveja
gelada em um café.
Sim, porque contrariamente à
crença popular, a maioria dos cafés nos pontos mais turísticos de Paris vende
café bem ruim. Melhor pedir “une bière”. O refresco da lourinha “mofada” em um
dia quente de verão vem a calhar principalmente quando se tem ainda muito chão
pela frente nesse bairro habitado por uma nova tribo, a dos “bobos” – de
bourgeois + bohemian – que apesar de odiarem os “fouturistes”
perambulando pelo seu bairro não o abandonariam por nada nesse mundo.
Apesar dos turistas e
batedores de carteiras, ainda vale a pena perambular pelos arredores da Praça
du Tertre, por ruelas que nos reservam boas surpresas: antiquários, galerias e
exposições temporárias de arte interessantes, música e alamedas verdes. Pelas
calçadas laterais da Praça, jovens artistas desenham e pintam e vendem seus
trabalhos e alguns são muito muito bons.
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Um lugar delicioso é o
Restaurante La Crémaillère 1900, no edifício de número 15 da Praça, onde se
come bem ao som de um piano honesto em um salão decorado por pinturas, espelhos
e madeiras originais da Belle Époque. Só que, na Crémaillère, o mais bonito é o
jardim interno com sua fonte Wallace e um chão de velhos paralepípedos
sobreados por castanheiros.
Antes de descer a colina é obrigatório passar pela
esquina das ruas Saint Justique e des Saule onde mora uma das casas mais
antigas do bairro, hoje a pousada e restaurante La Bonne Franquette. A
expressão é normanda e teve seu significado alterado ao longo dos séculos: de “francamente”
para simples, informal, sem cerimônia. Ou, no caso, um lugar acolhedor, que
serve comida caseira.
Há que ir no primeiro andar da Galeria Butte de
Montmartre para ver as pitorescas vistas dos telhados e descer a Rua des Saules
onde as paredes são usadas para fazer “instalações” e tem sempre uma boa foto
pedindo para ser feita.
Mas antes é preciso fazer um programa fora do roteiro mais batido:
bem próximo ao acelerado coração de Montmartre, na Rua Poulbot, passa batido o Espace Montmartre – ou seja
o Museu Dalí.
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Onde se pode mergulhar no
curioso e intrigante mundo de Salvador Dalí para encontrar materializado o
gênio criativo do famoso artista. Não podemos nos esquecer que, parodiando
aquele rei francês, o Salvador afirmou:
Le
surrealism c’est moi!
Pense em um lugar
s-u-r-r-e-a-l-i-s-t-a!
O espaço é o único museu na
França inteiramente dedicado à obra do artista expondo-lhe pinturas, esculturas,
desenhos, colagens, trabalhos gráficos e objetos divertidos como o tal do sofá vermelho em forma de boca.
Nesse pequeno museu mora a
melhor coleção de esculturas do artista, muitas delas representando personagens
de trechos bíblicos e da literatura como Romeu e Julieta, Dom Quixote e uma
misteriosa Alice no País das Maravilhas pulando corda que me agrada muito, se
bem que a prefiro nas ilustrações coloridas feitas por Dalí.
Lá estão ao lado da versão
surrealista da Venus de Milo, a primeira escultura dele de nome Busto de uma
Mulher, a incomum Mulher Girafa, aquela outra em chamas, os relógios derretidos
e, é claro, o Elefante e o Caramujo.
Os trabalhos do artista são
sonhos ou pesadelos – que infelizmente não se pode fotografar - e caminhando sob
os céus de Montmarte após o Museu a conversa acaba sendo sobre toda a arte
urbana circundante que talvez seja um outro caminho, uma abordagem diferente
com novos códigos para confrontar velhas práticas de arte.
Não dá para não se perguntar
se na arte que mora nas paredes de Montmartre não nos deparamos com um forte e
ainda desconhecido vocabulário visual, um léxico não identificável à primeira
vista? Será que os grafiteiros que se apropriam dos espaços públicos –
fachadas, muros, escadas, paredes e até mesmo os lampiões do bairro - reinterpretando
motivos e temas famosos, não estão fazendo apenas o que fez Dalí?
Quem olha aquelas maluquices
todas com a mente aberta, percebe a mesma atitude iconoclasta, pensativa, alegre
e libertária. E encontra um pendor comum para a cor e o estranho, alguma forma
de fermento intelectual dissidente, algo entre a inspiração criativa e a
provocação, tanto nos grafites quanto na obra de Dalí.
Polimórfica, explosiva,
rebelde, desconcertante, engraçada, incomum, popular: estamos falando da arte
de Dalí ou daquela de rua? Assim como Dalí, os artistas de rua são ilimitados
quando se trata de suas fontes de inspiração e de crença, do material e dos
meios que eles usam para criar. Há quem odeie e há quem aprecie a arte de rua.
Milito entre os do último time.
E assim pensando é só fazer o caminho de volta pela Rua Poulbot, virar à direita, esnobar o
badalado restaurante Le Consulat e de novo direita volver e voilà!
Noutra viela agradável nos
deparamos com um pátio estreito rodeado por edifícios residenciais e lá,
atravessando valentemente o muro dos fundos, eis que nos aparece uma escultura
do artista Jean Marais de nome O Passa-Paredes.
Trata-se do Monsieur Dutilleul - o protagonista do conto do escritor Marcel Aymé –
aquele que anda através das paredes, rouba bancos e milionários todas as
noites, assina com giz vermelho na superfície
mais próxima do delito o pseudônimo Garou-Garou
- da expressão francesa loup garou significando lobisomem - conquista a simpatia do público por zombar da polícia
e provoca nas senhoras um férvido desejo. Até que, em um triste dia, depois de visitar
a mulher amada e casada, uma parede o prendeu para sempre... em Montmartre!
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Olhe atentamente para mão
esquerda da escultura. Diz Dona Lenda que aqueles que tocam essa mão do
Passa-Paredes – e não me pergunte o porquê - é agraciado com os poderes mágicos
do personagem, entre eles a habilidade de ganhar dinheiro.
É evidente o brilho do bronze
polido dos dedos da figura devido ao contato não se sabe de quantas mãos. E se
você está aí balançando a cabeça e sorrindo de tanta bobagem, deveria dar uma
boa olhada no brilho do bronze de outra famosa escultura.
Trata-se de uma estátua que
dorme um sono eterno muito intranquilo no Cemitério do Pére Lachaise em Paris
sobre o túmulo do pobre Victor Noir, um cidadão que o povo acredita ser capaz
de transmitir doses cavalares de virilidade e/ou fertilidade a quem tocar sua
pobre estátua mortuária... adivinha aonde?
Túmulo de Victor Noir no Père Lachaise (imagem wikimedia) |
Daí adiante é ladeira abaixo
(rsrs) É claro que se pode descer de funicular ou no trenzinho branco que,
apitando, desbrava o bairro para cima e para baixo. Mas é preciso coragem para
pagar o mico sentado entre as criancinhas cara-pálidas! A menos que você use
muletas ou tenha noventa anos ou uma porção de filhos beeem pequeninos, se
subir em um dos vagões dessa Maria Fumaça de quatro rodas para descer a colina convencerá
a todos de que é ruim da cabeça e doente do pé.
Porque é realmente agradável descer a Butte de Montmartre por qualquer uma das
escadarias ou dos possíveis roteiros dependendo do que se deseja ver.
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Eu pessoalmente prefiro a parte de trás de
Montmartre, voltada para o Norte, sem as multidões e os vendedores insistentes de
pulseiras e de chaveiros nos quais se penduram as onipresentes torres Eiffel.
Gosto dos fundos do morro, dos paralelepípedos, das praças arborizadas e das
grades de ferro, passando pelas vinhas e pelo moinho de vento sobrevivente, de
nome Blute-Fin, no local onde nasceu. Gosto dos muros de pedra cobertos de hera,
dos bancos isolados onde a gente senta, respira ar puro e é capaz de captar a
sensação de uma Paris que não existe mais.
Todos os poetas sempre me
garantiram que não importa de onde se parte nem onde se chega: o que é
importante é a viagem. É fazer calmamente essa peregrinação aos lugares que inspiraram a maioria dos grandes artistas e
escritores que viveram na França nos dois últimos séculos.
A Rua des Trois Frères nos
surpreende com as longas escadarias da Passagem des Abbesses flanqueada por
edifícios dos dois lados e decoradas por um arco que data de 1840.
Mas você deve estar cansado.
Que tal descer a Butte de Montmartre numa outra conversa?
Simplesmente amei, Moacir! Sem palavras. Só que Deus me perdoe mas morri de rir do pobre do Vitor kkkkkk Obrigada!
ResponderExcluirMônica,
ExcluirAqui entre nós e baixinho constrangedor é segurar o riso lá no cemitério diante das duas tribos que batem ponto diante da última morada do Monsieur Noir. A dos devotos que deixam flores e beijam e alisam a estátua e a dos "turistas" que, de boca aberta fotografam o espetáculo. (rsrs) Para você ver que os franceses também têm as suas superstições.
Abração
Pimentel,
ResponderExcluirObrigado por mais este artigo sobre Paris e o seu cabaré mais famoso do mundo, o Moulin Rouge!
Pois esta casa de espetáculo tem a idade da nossa República ou, pelo menos, foi inaugurada no mesmo ano, 1.889!
Faz 128 anos, há mais de um século que diverte e atrai gente deste planeta e de todos os seus recantos, que, dirigindo-se à capital francesa, ir ao Moulin Rouge é obrigação, um compromisso inadiável e intransferível.
Imagino a pessoa sentada à uma de suas mesas e ver as bailarinas mais lindas do mundo dançando o CanCan, oferecendo um espetáculo empolgante, indescritível!
Ah, essas mulheres ...
Bom, mas o Moulin Rouge e a sua história estão reservados para pessoas também especiais, gente do mundo, viajantes internacionais, indivíduos que sabem se divertir, e podem pagar os preços exigidos para as apresentações incomparáveis que lotam as suas dependências com muita antecipação.
Agora, Pimentel, haveria outra cidade como Paris, que reúne pintores, escritores, músicos, escultores, políticos, diversão, atração, beleza de seus bairros, o rio Sena, que seja mais atraente que esta cidade no mundo?
Não conheço a Cidade-Luz e jamais irei visitá-la, mas os teus textos e fotos sobre ela são tão abrangentes, que lamento eu não ter tido condições no passado de poder reservar uns tostões e descer em solo parisiense quando eu até tinha força suficiente para esta viagem!
Nesse momento, resta-me copiar as tuas postagens e arquivá-las como as anteriores, que me possibilitam conhecer Paris como se eu a visitasse anualmente!
Um forte abraço.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirNoves fora as mal afamadas casas de Pigalle, são três os mais famosos cabarets de Paris: o Moulin Rouge, o Lido e o Crazy Horse. Hoje infelizmente todos eles fazem shows para americano ver, com muitos efeitos especiais e quase nada de cancan e dos maravilhosos códigos eróticos do passado. Mas uma vez na vida vale ver!
E apesar de muito apreciar outras cidades , até porque que nelas eu morei e estudei ou tenho familiares e amigos , sou forçado a concordar com você quanto a Paris : nenhum outro lugar no vasto mundo se rivaliza à Cidade Luz na oferta conjunta de beleza física, história, diversão e atrações culturais.
Espero continuar "viajando" com o amigo em outras conversas
Abração
Moacir,
ResponderExcluirUm passeio delicioso em que você vai 'conversando' sobre filmes famosos e canções inesquecíveis a história do bairro e lugares maravilhosos que não conheci. Adorei saber sobre o museu e as estátuas. Suas fotos são lindas demais e destaco o bom humor do artigo. Um abraço para você.
Flávia ,
ExcluirO Google diz que o Churchill dizia que "a imaginação consola os homens do que não podem ser e que o senso de humor os conforta do que eles são". Eu não sei se o o prezado Winston disse ou não disse isso mas seja lá quem disse tinha um bocado de razão. Sem humor não tem graça (rsrs)
Obrigado pela leitura constante e outro abraço
Excelente post com informações importantes pra quem deseja visitar Montmartre
ResponderExcluir1)Moacir escreve um cartão postal de Paris, descreve com alma e coração.
Excluir2)Impressionante como ele grava os nomes das ruas, os detalhes de uma grade, uma escada...
3) É uma máquina fotográfica impregnada de Vida.
4) Parabéns Pimentel !
Carlos,
ExcluirObrigado pelo comentário e , lembre-se, toda viagem começa no momento em que começamos a colher informações sobre o nosso próximo destino .
Vizinho,
ExcluirJamais achei de bom tom sair perguntando direções aos nativos por onde andei e passando recibo de abestado. Antigamente a minha metodologia de viagem era comprar um mapa e estudar os caminhos. Hoje temos os apps mas ainda assim, quando chegamos numa cidade desconhecida a primeira coisa que fazemos é comprar bilhetes para aqueles busões " descapotados" e rodar pela paisagem olhando-a lá de cima. Gostamos de nos familiarizar com a geografia que , em seguida, faremos a pé. Devo confessar porém que uma Cyber-Shot da Sonny bem que ajuda a manter intactos os bytes de memória nas pastas de fotos do PC.
Gratidão
Olá Moacir
ResponderExcluirNão se pode negar que Paris conta muitas histórias, de lugares, casas e gente. E com a paixão com você as descreve dá realmente vontade de passar por esses caminhos, ver desenhos e moinhos, ruas de pedra e muros com heras. Sentar pelo caminho e falar de arte.
E esperar pela próxima para descer a Butte de Montmartre com você e quem mais vier.
Até lá.
Caríssima Donana
ExcluirPromessa é dívida: estou contando com a sua leitura e, bem assim, com o já anunciado comentário final do Editor, após a descida da Butte .
"Até lá"