Milton Nascimento (imagem www.livepict.com) |
Heraldo Palmeira
Antes de
embarcar para Brasília encontrei Beto, um velho amigo que iria do Rio para o
Nordeste. Fazia tempo que não tínhamos notícias mútuas e começamos nosso
encontro por um abraço demorado.
Estudamos
juntos quando jovens, e naqueles tempos nossas conversas varavam boas
madrugadas. Contei minhas novidades primeiro e logo chegou a vez dele, pois era
evidente sua ansiedade. Tivera um casamento que durou pouco e apostara, desde a
separação de quase vinte anos, no caminho teoricamente mais simples dos relacionamentos
furtivos. Tinha uma vida parecida com a minha, de viagens constantes, e virara
um solteirão convicto.
Ele me
falou da dificuldade de levar relacionamentos a sério. Contou de várias
namoradas, namoradas ao mesmo tempo no melhor estilo marinheiro, um amor em
cada porto, até que Júlia – que também era minha amiga daqueles tempos –
apareceu e jogou todas essas teorias e práticas pelos ares, empurrou o
navegador para terra firme.
Por algum
motivo insondável, Beto quis estar sozinho quando percebeu que a chegada dela
era inevitável e com ares de porto seguro, e foi se afastando das outras
mulheres. Agora andava radiante porque, pela primeira vez em tantos anos,
estava vivendo uma relação clara, limpa, monogâmica e deslumbrante – palavras
dele.
O meu
amigo trazia naquele momento um brilho no olhar que saltava aos olhos, me
contou do novo amor numa conversa deliciosa que nos distanciou da confusão e do
desconforto comuns das salas de embarque. Logo me dei conta de que formavam um
casal óbvio que algum capricho do destino e das correntes demorou a juntar.
– Você
pode rir de mim, se quiser, pois sei que estou meio bobo mesmo. Mas algo me diz
que vou amar muito essa mulher, que finalmente vou ter um relacionamento como
sempre sonhei.
Anunciaram
o embarque do meu voo. Dei um abraço afetuoso no meu amigo, fiz um afago em sua
bochecha. Desejei que o clima de renascimento tomasse conta deles dois e fui
embora feliz.
– Dê um
beijo na Júlia, diga que estou torcendo!
Desembarquei,
peguei o carro no estacionamento do aeroporto e segui sem pressa, observando a
cidade vazia pelo feriado de Páscoa.
Talvez a
Páscoa passe distante dessa conversa mole de coelhos machos botando ovos de
chocolate enormes – isso deve explicar aqueles olhinhos esbugalhados! Talvez a
Páscoa esteja nesse compasso descompassado dos corações apaixonados, como
pandeiros que se apressam quando toca a música certa, que arrepia, que dá frio
na barriga.
Ele havia
deixado claro que mexera nos seus demônios, que andou morrendo de medo nos
primeiros momentos, mas algum tipo de certeza começou a apressar seu coração, a
desmantelar suas incertezas convictas de tantos anos.
Afinal,
só porque os tempos atuais nos exigem apressados, fugazes, superficiais,
alheios, infelizes, invejosos, traiçoeiros, obsessivos, mentirosos, não é
razoável todo mundo estar obrigado a se mostrar praticante da negação dos
afetos.
É claro
que preferi acreditar naqueles dois e desejar a mesma sorte, pois meu amigo
estava convincente demais. No rádio do carro a voz celestial de Milton fazia perguntas
infernais. Beto e Júlia voltaram à minha mente. Desejei vida longa a tudo que
estava representado naquela felicidade escancarada horas antes pelo meu amigo.
O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito, me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita
O rádio
do carro continuou sem deixar por menos. Geraldo Azevedo, que conheço há tantos
anos com muito bem-querer, seguiu apontando a rota do porto com a delicadeza
costumeira.
Coração, essa mesma batida
Que bate tão diferente
Quando acontece na gente
O mesmo amor
É um amor diferente demais
Quem inventou o amor
Teve certamente
inclinações musicais
Não
entendi por que me veio à mente olhos cor de mel, covinhas, cabelo ao vento,
marcas de sol... daquela que desacata, que é revelia, Dona Flor que Jorge Amado
nos colocou latente à flor da pele, rediviva naquela trilha sonora linda!
Ainda
estou sem resposta para a mesma batida do coração, que bate tão diferente.
Inclinações musicais de quem inventou o amor? Acontece na gente, feito
impressão digital, como canções parecidas e tão desiguais.
(*) Rebatizei meus amigos como Beto e
Júlia para deixá-los incógnitos em seus beijos e abraços inteiramente
apaixonados. Vida longa ao amor deles! O mesmo amor, um amor diferente demais!
(**) Trechos de O que será (À flor da pele), (Chico Buarque) / Inclinações musicais
(Geraldo Azevedo-Renato Rocha).
Que texto lindo, brilhante e comovente! Você está se superando quando achei que não era mais possível, que já estava no ápice! Maravilhosa surpresa! Obrigada por me dar o prazer de conhecer seus escritos.Beijos!
ResponderExcluirHileia,
ExcluirEnorme prazer tê-la aqui, minha amiga. Ainda mais merecendo palavras tão gentis. Obrigado, beijos.
1) Heraldo falou de encontros, de amizade, de amor, esperanças...
ResponderExcluir2) Parabéns, falou de Arte, falou de vida... de poesia, de letras e canções ... nos falou de corações ...
Obrigado, Antonio.
ExcluirMais um, né meu velho? Você não tem jeito. Nunca vai se superar. É uma coisa infinita!!! Coincidentemente estava com uma música do João Bosco na cabeça quando para minha surpresa, leio o seu estupendo texto. Olha o que eu estava cantarolando...
ResponderExcluir"O meu coração marcado tinha um nome tatuado que ainda
doía, pulsava só a solidão...
O amor quando acontece a gente esquece logo que sofreu
um dia, esquece sim"
Pois é, coisas da vida! Forte abraço,
Wagner Monteiro
Grande comandante,
ExcluirEssa música de Bosco não é brincadeira, navega nas mesmas alturas em que você transita. Abraço.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirEu bem sei que o leitorado vai dizer que não está valendo , é claro, já que a minha senhora lê o Conversas. Mas eu sou um casado convicto. Não consigo me imaginar aos 62 anos sem a minha companheira de vida , curtindo a "liberdade" e empenhado diuturnamente na prática cansativa da caça primitiva pelos portos da vida. Envelhecer sozinho é para os fortes(rsrs)
Depois de uma boa gargalhada por conta dos "coelhos machos botando ovos de chocolate enormes de olhinhos esbugalhados", lendo o seu excelente post chego à conclusão que não há receita , nem cartilha, nem trilha sonora, nem manual de instruções para a mulher certa, o casamento certo, o amor certo. Corremos o risco de encontrar a parceira certa no momento errado e a errada no momento certo. Complicado! Então registro apenas uma dica para os navegantes: se ela for metade do que você sempre quis, se lhe fizer bem, se você estiver livre para viver esse sentimento por inteiro, segure a sua santa milagreira pela mão e vá em frente e chega de "negação de afeto" e de conversa.
Abração
Caríssimo,
ExcluirVocê resume tudo numa frase: "Corremos o risco de encontrar a parceira certa no momento errado e a errada no momento certo". É da vida, é a vida. Sorte sua que bate mundo com "a sua santa milagreira". Abração.
E viva o amor!
ResponderExcluirÀ 1a. vista, ou à 2a. ou 5a., efêmero ou duradouro, juvenil ou temporão, platônico ou pra valer, diversificado ou tradicional!
Parabéns Heraldo!
Até mais.
Ana,
ExcluirSim, essa coisa louca e sem forma que nos faz remoçar, recomeçar, nunca desistir. Que se mostra em milhares de formas e sem forma nenhuma. É como muito bem citou o comandante Wagner: "O amor, quando acontece, a gente esquece logo que sofreu um dia, esquece sim!". Obrigado. Até mais.
Como sempre meu amigo tem o condão de me transportar para os lugares que descreve e sentir as emoções que seus personagens sentem!! Abraços amigo!
ResponderExcluirEmerson,
ExcluirObrigado por seguir viagem. Abraço.