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17/04/2017

Inclinações Musicais

Milton Nascimento  (imagem www.livepict.com)


Heraldo Palmeira
Antes de embarcar para Brasília encontrei Beto, um velho amigo que iria do Rio para o Nordeste. Fazia tempo que não tínhamos notícias mútuas e começamos nosso encontro por um abraço demorado.
Estudamos juntos quando jovens, e naqueles tempos nossas conversas varavam boas madrugadas. Contei minhas novidades primeiro e logo chegou a vez dele, pois era evidente sua ansiedade. Tivera um casamento que durou pouco e apostara, desde a separação de quase vinte anos, no caminho teoricamente mais simples dos relacionamentos furtivos. Tinha uma vida parecida com a minha, de viagens constantes, e virara um solteirão convicto.
Ele me falou da dificuldade de levar relacionamentos a sério. Contou de várias namoradas, namoradas ao mesmo tempo no melhor estilo marinheiro, um amor em cada porto, até que Júlia – que também era minha amiga daqueles tempos – apareceu e jogou todas essas teorias e práticas pelos ares, empurrou o navegador para terra firme.
Por algum motivo insondável, Beto quis estar sozinho quando percebeu que a chegada dela era inevitável e com ares de porto seguro, e foi se afastando das outras mulheres. Agora andava radiante porque, pela primeira vez em tantos anos, estava vivendo uma relação clara, limpa, monogâmica e deslumbrante – palavras dele.
O meu amigo trazia naquele momento um brilho no olhar que saltava aos olhos, me contou do novo amor numa conversa deliciosa que nos distanciou da confusão e do desconforto comuns das salas de embarque. Logo me dei conta de que formavam um casal óbvio que algum capricho do destino e das correntes demorou a juntar.
– Você pode rir de mim, se quiser, pois sei que estou meio bobo mesmo. Mas algo me diz que vou amar muito essa mulher, que finalmente vou ter um relacionamento como sempre sonhei.
Anunciaram o embarque do meu voo. Dei um abraço afetuoso no meu amigo, fiz um afago em sua bochecha. Desejei que o clima de renascimento tomasse conta deles dois e fui embora feliz.
– Dê um beijo na Júlia, diga que estou torcendo!
Desembarquei, peguei o carro no estacionamento do aeroporto e segui sem pressa, observando a cidade vazia pelo feriado de Páscoa.
Talvez a Páscoa passe distante dessa conversa mole de coelhos machos botando ovos de chocolate enormes – isso deve explicar aqueles olhinhos esbugalhados! Talvez a Páscoa esteja nesse compasso descompassado dos corações apaixonados, como pandeiros que se apressam quando toca a música certa, que arrepia, que dá frio na barriga.
Ele havia deixado claro que mexera nos seus demônios, que andou morrendo de medo nos primeiros momentos, mas algum tipo de certeza começou a apressar seu coração, a desmantelar suas incertezas convictas de tantos anos.
Afinal, só porque os tempos atuais nos exigem apressados, fugazes, superficiais, alheios, infelizes, invejosos, traiçoeiros, obsessivos, mentirosos, não é razoável todo mundo estar obrigado a se mostrar praticante da negação dos afetos.
É claro que preferi acreditar naqueles dois e desejar a mesma sorte, pois meu amigo estava convincente demais. No rádio do carro a voz celestial de Milton fazia perguntas infernais. Beto e Júlia voltaram à minha mente. Desejei vida longa a tudo que estava representado naquela felicidade escancarada horas antes pelo meu amigo.
O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito, me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita
O rádio do carro continuou sem deixar por menos. Geraldo Azevedo, que conheço há tantos anos com muito bem-querer, seguiu apontando a rota do porto com a delicadeza costumeira.
Coração, essa mesma batida
Que bate tão diferente
Quando acontece na gente
O mesmo amor
É um amor diferente demais
Quem inventou o amor
Teve certamente inclinações musicais
Não entendi por que me veio à mente olhos cor de mel, covinhas, cabelo ao vento, marcas de sol... daquela que desacata, que é revelia, Dona Flor que Jorge Amado nos colocou latente à flor da pele, rediviva naquela trilha sonora linda!
Ainda estou sem resposta para a mesma batida do coração, que bate tão diferente. Inclinações musicais de quem inventou o amor? Acontece na gente, feito impressão digital, como canções parecidas e tão desiguais.

(*) Rebatizei meus amigos como Beto e Júlia para deixá-los incógnitos em seus beijos e abraços inteiramente apaixonados. Vida longa ao amor deles! O mesmo amor, um amor diferente demais!
(**) Trechos de O que será (À flor da pele), (Chico Buarque) / Inclinações musicais (Geraldo Azevedo-Renato Rocha).


12 comentários:

  1. Hileia Marques da Cunha17/04/2017, 09:55

    Que texto lindo, brilhante e comovente! Você está se superando quando achei que não era mais possível, que já estava no ápice! Maravilhosa surpresa! Obrigada por me dar o prazer de conhecer seus escritos.Beijos!

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    1. Heraldo Palmeira17/04/2017, 11:06

      Hileia,
      Enorme prazer tê-la aqui, minha amiga. Ainda mais merecendo palavras tão gentis. Obrigado, beijos.

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  2. 1) Heraldo falou de encontros, de amizade, de amor, esperanças...

    2) Parabéns, falou de Arte, falou de vida... de poesia, de letras e canções ... nos falou de corações ...

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  3. Wagner Monteiro18/04/2017, 07:51

    Mais um, né meu velho? Você não tem jeito. Nunca vai se superar. É uma coisa infinita!!! Coincidentemente estava com uma música do João Bosco na cabeça quando para minha surpresa, leio o seu estupendo texto. Olha o que eu estava cantarolando...

    "O meu coração marcado tinha um nome tatuado que ainda
    doía, pulsava só a solidão...

    O amor quando acontece a gente esquece logo que sofreu
    um dia, esquece sim"

    Pois é, coisas da vida! Forte abraço,

    Wagner Monteiro

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    1. Heraldo Palmeira18/04/2017, 17:32

      Grande comandante,
      Essa música de Bosco não é brincadeira, navega nas mesmas alturas em que você transita. Abraço.

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  4. Moacir Pimentel18/04/2017, 07:56

    Mestre Heraldo,
    Eu bem sei que o leitorado vai dizer que não está valendo , é claro, já que a minha senhora lê o Conversas. Mas eu sou um casado convicto. Não consigo me imaginar aos 62 anos sem a minha companheira de vida , curtindo a "liberdade" e empenhado diuturnamente na prática cansativa da caça primitiva pelos portos da vida. Envelhecer sozinho é para os fortes(rsrs)
    Depois de uma boa gargalhada por conta dos "coelhos machos botando ovos de chocolate enormes de olhinhos esbugalhados", lendo o seu excelente post chego à conclusão que não há receita , nem cartilha, nem trilha sonora, nem manual de instruções para a mulher certa, o casamento certo, o amor certo. Corremos o risco de encontrar a parceira certa no momento errado e a errada no momento certo. Complicado! Então registro apenas uma dica para os navegantes: se ela for metade do que você sempre quis, se lhe fizer bem, se você estiver livre para viver esse sentimento por inteiro, segure a sua santa milagreira pela mão e vá em frente e chega de "negação de afeto" e de conversa.
    Abração

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    1. Heraldo Palmeira18/04/2017, 17:37

      Caríssimo,
      Você resume tudo numa frase: "Corremos o risco de encontrar a parceira certa no momento errado e a errada no momento certo". É da vida, é a vida. Sorte sua que bate mundo com "a sua santa milagreira". Abração.

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  5. E viva o amor!
    À 1a. vista, ou à 2a. ou 5a., efêmero ou duradouro, juvenil ou temporão, platônico ou pra valer, diversificado ou tradicional!
    Parabéns Heraldo!
    Até mais.

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    1. Heraldo Palmeira18/04/2017, 17:45

      Ana,
      Sim, essa coisa louca e sem forma que nos faz remoçar, recomeçar, nunca desistir. Que se mostra em milhares de formas e sem forma nenhuma. É como muito bem citou o comandante Wagner: "O amor, quando acontece, a gente esquece logo que sofreu um dia, esquece sim!". Obrigado. Até mais.

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  6. Como sempre meu amigo tem o condão de me transportar para os lugares que descreve e sentir as emoções que seus personagens sentem!! Abraços amigo!

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    1. Heraldo Palmeira20/04/2017, 01:51

      Emerson,
      Obrigado por seguir viagem. Abraço.

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