Fotografia: Petar Milošević (Wikimedia - Creative Commons Share Alike) |
Moacir Pimentel
Tenho profundo respeito pelas palavras que carinhosamente chamo de
pretinhas. Adolescente, eu ficava imaginando como surgira a linguagem humana.
Ainda hoje apenas se supõe que alguma coisa aconteceu no cérebro e no sistema
vocal do prezado Homus ancestral, em algum momento entre cem e cinquenta mil
anos atrás.
Certa vez escrevi uma redação sobre dois caçadores pré-históricos mui
amigos. Um deles, distraído, não percebia que um rinoceronte bravio vinha em
sua direção. O outro movia os braços desesperado para alertar o desavisado do
mortal perigo, mas, incapaz de estabelecer contato visual, não teve outro jeito
senão soltar o verbo:
ARRRRRGH!
Deu certo! Fora feita, na pré-história, a comunicação vocal! Tenho
certeza de que os nossos ancestrais antes daquele berro salvador se comunicavam
por gestos, usavam uma linguagem de sinais. Pois quando evoluímos para a
modalidade vocal, nela permaneceu o resíduo gesticular, a expressão corporal e
facial, uma intensa linguagem corporal.
Penso que muito lentamente o homem foi desenvolvendo um vocabulário
básico, códigos sonoros para os principais marcos e rotinas da sua geografia
cotidiana e que, gradativamente, seu cérebro foi evoluindo neurologicamente e
seu aparelho fonador fisicamente se adaptando à articulação.
Ou seja, os sons passaram a ser utilizados para representar uma
variedade cada vez maior de coisas. Depois deve ter sido assim um tal de…. me, tarzan
e you, jane…, uma protolíngua como aquela balbuciada pelas crianças. O certo é
que ao criar uma linguagem, nós abstraímos pela primeira vez.
Maravilha-me que a linguagem humana tenha se tornado tão sofisticada ao
ponto de expressar absolutamente todos os pensamentos da nossa espécie. Falamos
porque éramos especiais. E porque de sê-lo, desenvolvemos novas capacidades
cognitivas, a habilidade de imitar os sons e de memorizar informações, o desejo
de comunicar nosso entendimento, a necessidade de perceber as vontades alheias
e uma vocação para cooperar.
Em seguida, os homus da vez – confundo-me com os seus sobrenomes –
resolveram moer minerais como óxido de ferro, ocre e carvão vegetal. Ao pó
acrescentaram gordura animal e com as tinturas obtidas e usando as próprias
mãos como pincéis, foram pintando animais e humanos e estrelas e símbolos
esotéricos pelas paredes de suas cavernas, inclusive a de Lascaux que, para
mim, é a Sistina pré-histórica.
Ao fazer arte, representando o seu mundinho com cores, formas, linhas,
pontos, volumetria e até mesmo sobreposições, o homem abstraiu pela segunda
vez. As imagens eram uma nova língua, uma outra linguagem porque contavam uma
história, digamos, de uma expedição de caça, em vez de enfileirar simplesmente
imagens de animais e pessoas
E finalmente, no que foi para mim a mais revolucionária tecnologia
jamais inventada, os nossos ancestrais misturaram numa só, as suas duas
abstrações anteriores. Ou seja, deram cor aos sons, forma aos fonemas, linhas
às sílabas, ordem pictórica às vocalizações e criaram...
A PALAVRA ESCRITA!
A terceira abstração da espécie humana. O fim da pré-história.
Os nossos ancestrais rabiscaram garranchos cuneiformes em blocos de
barro, fazendo exatamente o que fazemos com os nossos laps nas caixas de
comentários do blog. A comunicação. Esta escrita, as marcas específicas em
argila molhada, feitas com um objeto pontiagudo, foi desenvolvida, a priori,
para elencar posses. E então passaram a descrever conflitos (rsrs)
A mais antiga forma de escrita foram pictogramas – símbolos que
representavam objetos – e serviram para ajudar a lembrar coisas como quantas
vacas pastavam lá fora ou quantas ovelhas seriam ofertadas como sacrifícios nos
templos, ou barris de cerveja nos celeiros.
Dos pictogramas pulamos para os fonogramas, que tinham uma forma
dinâmica para transmitir o movimento para ou a partir de uma localização. Daí
para o alfabeto, foi só uma piscada de olhos da Dona História, que teria sido
impossível sem a palavra escrita que contextualizou as evidencias físicas que
nos ficaram do passado e que logo tornou-se peregrina, um meio de comunicação à
distância necessária em virtude do comércio.
Os escritores puderam, então, passar a indicar o significado as coisas
tinham e, assim, começar a expressar ideias. Em meados do terceiro milênio AC,
as pretinhas já moravam em documentos econômicos, religiosos, políticos,
literários e acadêmicos.
Este novo meio de comunicação permitiu aos escribas criar uma forma de
arte que não era possível antes da palavra escrita: a literatura. Nasciam os
hinos aos deuses e os poemas aos homens e foram inventados os primeiros contos
e poesias épicas. Os mitos, as histórias de deuses e heróis, os métodos de
construção, o sepultamentos das gentes, os dias de festa dos povos ancestrais
puderam ser gravados para a posteridade.
A literatura primordial surgiu como cânticos clericais ou encantos
mágicos, recitada pelos sacerdotes. Carmina, como os romanos chamavam a poesia,
significava tanto verso quanto encanto. Uma ode, entre os gregos, significava
originalmente um feitiço mágico. Nelas o ritmo e a métrica, sugeridas, talvez,
pelos ritmos da natureza e pela vida corporal, foram aparentemente
desenvolvidos por mágicos ou xamãs para preservar, transmitir e reforçar a
magia de seus versos.
Fora destas origens sacerdotais, o poeta, o orador e o historiador foram
diferenciados e secularizados: o orador como o porta voz oficial do rei; o
historiador como o gravador das ações reais; o poeta como o formulador e
preservador das lendas. Não nos esqueçamos dos trovadores democráticos, que
colocavam nos contos ancestrais a música, para a instrução tanto do povo quanto
dos nobres.
O papel dos que têm as pretinhas como matéria foi um dos mais
importantes em culturas de todo o mundo antigo. Todas as grandes obras da
humanidade, só foram possíveis por meio do advento da escrita. Aqueles primeiros
escribas trogloditas estabeleceram um sistema que iria mudar completamente a
natureza do mundo em que viviam. O passado pode ser preservado através da
escrita.
Os materiais usados pelos escritores têm evoluído, a partir das canas
cortadas dos escribas da Mesopotâmia, para as canetas de junco e o papiro dos
egípcios, os pergaminhos dos gregos e romanos, a caligrafia dos chineses, as
iluminuras medievais, a imprensa de Johannes Gutenberg até os dias atuais
povoados por composições informatizadas e multimídia.
Em qualquer tempo, desde a sua criação, a escrita tem servido para
comunicar os pensamentos e sentimentos do indivíduo, a cultura na qual está
inserido, sua história coletiva, suas experiências humanas, e preservar essas
experiências para as gerações futuras. A transferência de informações mais
complexas, ideias e conceitos de um indivíduo para outro, ou a um grupo, foi a
adaptação evolutiva mais vantajosa para a preservação e a evolução da nossa
espécie.
Pergunto: como é que podemos, apesar de todas e tantíssimas razões em
contrário, não acreditar na evolução do homem que desceu das árvores, ficou de
pé e dominou seu habitat? Como não nos orgulharmos dessa história que começou
nas cavernas? Como não valorizar o nosso destino humano?
Genial, Moacir! Eu nunca tinha parado pra pensar nisso. Que a fala e a arte foram códigos nem que a escrita foi uma mistura delas. Me lembrei da Bíblia: 'No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus'. Ler seus artigos ajuda a ter orgulho do 'nosso destino humano'. Obrigada!
ResponderExcluirMônica,
ExcluirOs seus comentários têm o dom de me deixar contente. Obrigado, abração e um bom final de semana
Moacir,
ResponderExcluirEu gostei do artigo de hoje porque acredito que Deus trabalha através da evolução e que ela está longe de terminar. Você é um humanista e sua linda mensagem é de esperança quando afirma que o homem se comunica porque precisa compreender o mundo e os outros e tem ‘vocação para cooperar'. O nosso destino é contribuir na construção de um mundo melhor para todos.
Um abraço para você
Flávia,
ExcluirNão tenho as suas certezas quanto à galera santíssima mas acredito nesse homem que, nas cavernas, foi capaz de inventar a linguagem e a arte e a escrita. Quem conhece a história tem fé e acredita que a humanidade não se encontra exaurida da sua capacidade de inovar e de criar novas e mais iluminadas estradas rumo ao futuro e ao alto e que, como canta o Gil, ao findar vão "dar em nada do que se pensava encontrar".
Outro abraço para você
Pimentel,
ResponderExcluirÓtimo texto.
A importância da escrita é tanta, que seria uma das criações da humanidade que aconteceria ao natural, onde um belo dia alguém registraria uns rabiscos de uma forma ou outra, e causaria espanto e surpresa porque aquele sinal daria início a uma das maneiras de nos comunicarmos, a mais significativa e decisiva ao futuro dos seres humanos.
Outra maravilhosa criação foi depois a tradução dos idiomas, que possibilitou diálogos os mais diversos e em linguagens que passaram a ser conhecidas, estreitando a comunicação verbal, escrita, e também entre falas diferentes, unindo mais ainda a humanidade.
Inegavelmente a trajetória do homem até os dias de hoje é muito rica nesse seu esforço de se entender e de se compreender, de ser aceito e de aceitar outros povos, reconhecendo como fundamental e imprescindível a comunicação, pois onde ela não existir, recorre-se às velhas e inócuas soluções, as guerras, que nos remetem ao passado mais longínquo, mais distante possível deste estreitamento que conseguimos com o verbo, a escrita e as traduções, o uso de armas!
Nesse aspecto, o ser humano não deixa de ser curioso e contraditório, confuso e intolerante, pois uma vez tendo atingido o ápice da comunicação, ao mesmo tempo a rejeita e lança mão de artefatos bélicos para resolver os assuntos que o desenvolvimento e o progresso indicam como os menos efetivos, eficientes e eficazes na solução de impasses, o combate, o enfrentamento, as mortes.
Enfim, assim caminha a humanidade, ora enaltecendo a si própria ora degradando-se a si mesma!
Outro belo artigo, Pimentel, pelo qual agradeço por aprimorar o nosso diálogo neste espaço cultural, onde valorizamos nossos escritos e reconhecemos mais ainda aqueles postados com talento e vocação, que têm sido as tuas postagens, meu caro.
Um forte abraço.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirObrigado pelo importante comentário.
Embora não possamos perder de vista a dualidade humana , é claro, há que evitar uma visão estática da nossa espécie.
Em momentos difíceis, para os quais aparentemente parece não haver saída, é sempre bom olhar para trás e constatar o quanto já caminhamos em vez de acreditar que a humanidade chegou ao ápice de sua capacidade de gerar boas idéias e justas soluções.
Abração
1) Belo artigo Pimentel.
ResponderExcluir2) Lembrei que no Xintoísmo japonês (Pesquisas informam que nasceu na Idade das Cavernas)a palavra é "viva", a palavra é uma pessoa, a palavra é um Ser, a palavra tem espírito.
3)E Buda comentava: "Palavra correta constrói".
4)Licença: hoje é o "Dia da Sogra" parabéns a todas as sogras, encarnadas e desencarnadas.
5)"Dia do Sogro" ainda não inventaram...que eu saiba ...
Antônio,
ExcluirAs palavras têm energia e poder, podem ajudar, curar, incentivar e ensinar ou ferir, prejudicar, humilhar e destruir. Podemos optar por usar palavras de encorajamento ou aquelas de desespero. Uma vez ditas elas não têm volta e portanto é preciso escolher bem. E, como dizia a Cecília, tão nossa amiga:"um dia sei que estarei mudo - mais nada!"
Abração
Moacir, quando, no seu belo artigo, você coloca os desenhos nas paredes das cavernas como um modo de contar histórias, eu lembraria também que há quem diga que os primeiros desses desenhos contavam uma história que ainda não tinha acontecido; que eram um ritual preparatório, uma maneira dos caçadores pedirem aos animais, através dos desenhos de como imaginavam que seria a caçada, que permitissem serem caçados para a sobrevivência da tribo.
ResponderExcluirSó coloco isso para lembrar que, desde o seu nascimento, os homens acreditaram que as pretinhas tinham o poder de influenciar o futuro. Que, como disse aí em cima o Mestre Antonio, elas têm vida. O que, ao fim e ao cabo, é a razão mais funda, se bem que nem sempre declarada, pela qual a gente continua a fazer força para que elas brotem das nossas canetas ou dos nossos teclados.
Ou que a gente conta histórias para nossos filhos e nossos netos :)
Wilson,
ExcluirTenho rascunhado muito sobre essa ligação entre a arte ancestral e o divino que um pouco se perdeu pelos séculos afora e que, de certa forma, artistas como Francisco Brennand resgatam. Tenho certeza que os primeiros pintores, escultores, oleiros , escrivinhadores e matemáticos foram ou xamãs ou iniciados. Quanto às pinturas rupestres concordo com você : elas devem ter sido concebidas para fazer parte de um ritual , de uma homenagem à Mãe Natureza, para que os animais aparecessem e as caçadas fossem bem sucedidas. São uma espécie de oração.
E viva a vida e as histórias e os filhos e os filhos deles e vamos às pretinhas!
Abração
Eu sei que não é o objetivo do artigo mas você passou de raspão. Sim, somos especiais. Porque temos consciência, Moacir. Não me surpreenderia se em 100 anos a neurociência possuir um mapa completo do cérebro. E ainda assim a questão vai continuar. Como pode um pedaço de 1,4 kg de tecido úmido e cor de rosa dentro de um crânio dar origem a algo tão misterioso quanto a experiência de ser esta massa e o corpo ao qual está ligada?
ResponderExcluirMárcio,
ExcluirComo responder à maior das questões sem resposta da humanidade? Os nossos netos com 1 ano incompleto, quando colocados defronte de um espelho, já tentavam tirar as manchas vermelhas de batom deixadas por beijos não das suas imagens refletidas mas dos próprios narizes ou bochechas. Ele já sabiam onde morava a Dona Consciência. Seria profundamente frustrante se ao fim e ao cabo, a mente humana fosse incapaz de compreender a si mesma, já que tudo o que importa nessa vida só o faz como consequência de seu impacto no cérebro consciente. Quero acreditar que algum dia "there will be an answer" em alguma praia onde a neurociência se encontre com a filosofia para conversar.
Olá Moacir,
ResponderExcluirBravíssimo! Adorei!
Poderíamos estabelecer uma mesma linha de tempo para arte e escrita?
Dos primeiros rabiscos no barro e ideogramas às primeiras palavras escritas. Do orador que é porta voz do rei ao artista a serviço da nobreza e da Igreja. Da arte minimal e conceitual à escrita da multimídia.
E volto aos símbolos que têm o mesmo significado em todas as línguas. Substitui a escrita ou é a escrita? Ou tudo é linha no final das contas? Deu nó!
Até mais
Bravíssima Donana,
ExcluirBingo! É claro que podemos linkar a arte e a escrita, os símbolos universais e a alma funda, o barro e o infinito e prosseguir traçando as nossas linhas no teclado ou em chapas de metal. Faz tempo que eu segredei à senhora em outra caixa de comentários - como mantra e não poesia - que a arte deveria ser verbo e não substantivo e que um dia conseguiremos fruir tudo o que precisamos e o que já perdemos e o que não fomos e alcançamos e a beleza que não criamos e que então e finalmente seremos arte (rsrs)
"Até mais"
Pimentel,
ResponderExcluirUm texto formidável! Jamais chegaremos ao ápice da criatividade humana. O mundo continuará evoluindo em suas invenções, criações e descobertas num crescendo que é privilégio de nossa espécie.
Sampaio,
ExcluirObrigado pelo comentário que assino embaixo. Quando ficamos de pé sobre nossos pés, as recém adquiridas mãos humanas passaram a se dedicar ao ócio criativo (rsrs) Desde as cavernas nossos cérebros foram treinados à encontrar soluções. Primeiro aquelas que nos permitissem a adaptação e a sobrevivência no embate contra Mãe Natureza - armas para a caça, roupas para o frio, a agricultura e a domesticação dos animais. Em seguida já mais seguros em comunidades, com o trabalho sendo compartilhado e fartura de alimentos mais uma vez o ócio nos permitiu pensar e inventamos a roda, a filosofia, a lógica, a poesia, a sociedade, o Estado, o governo, a economia, a democracia, a imprensa, o voto e o direito. Continuaremos inventando. E se e quando as invenções deixam de nos servir a contento, tratamos de aprimorá-las. Esta é a realidade e a viagem da espécie humana e, na minha opinião, a maravilha dela. A vocação para aproveitar as oportunidades, inclusive as tragédias, para instigar a evolução e arquitetar novos e melhores destinos.