Moacir Pimentel
Antes de ir a Nápoles atrás da arte de Caravaggio, já conhecíamos de perto
outras obras do artista, como por exemplo aquela na qual o amor de Caravaggio
pelas armas letais - as várias espadas e facas que ele colecionava - é
confessado abertamente. Trata-se da pintura de Santa Catarina de Alexandria,
que está agora na coleção Thyssen, em Madrid.
Também era nossa velha conhecida a Madona e a Criança com
Santana, também chamada de Dei Palafrenieri – A Madona dos Cavaleiros, numa
livre tradução - porque foi pintada para a Igreja de Santana dei Palafrenieri,
na Via di Porta Angelica, perto do Vaticano, onde esteve por algum tempo antes
de ser comprada pelo Cardeal Scipione Borghese e se mudar para a Galleria dele,
hoje um dos melhores museus desse mundo.
Caravaggio - Santa Catarina / Madona dos Cavaleiros |
Quanto
à Santa Catarina... Pense em uma estranha santa. Ela usa um vestido negro e
azul magnífico, e olha casualmente para o lado de fora do quadro. Sua mão esquerda
segura, suavemente e com prazer sensual, a alça da longa e fina espada, que
será um dos instrumentos de seu martírio. Seu dedo indicador direito toca a
lâmina brilhante e eu quase posso ver algum sangue.
Já a pintura da Madona com a serpente chocou a todos,
menos ao Cardeal Borghese que de arte entendia e bem, é claro. Ela é
controversa por um motivo óbvio: é uma representação atípica das mulheres da
Sagrada Família. A alegoria, em sua essência, é simples: Maria e o seu filho,
que ela guia, pisam descalços uma serpente, o emblema do mal ou do pecado original,
observados por Santana.
Aí começaram os problemas: a senhora avó do menino, a
quem a pintura deveria honrar, foi pintada velha e enrugada. Aliás o rosto
dessa Santana é muito parecido com alguns desenhos de mulheres idosas feitos
por Leonardo da Vinci.
Jesus é um menino incircunciso totalmente nu. Figurati!
Tudo o mais é principalmente sombra e as figuras ganham monumentalidade por
causa da luz. Como se não bastasse ousar pintar a galera divina interagindo com
uma serpente, Caravaggio caprichou no decote revelador da Virgem Maria.
Era quase demais até mesmo para a
permissiva e decadente Roma!
Mas... no final do século XVI, Caravaggio teve a sorte de viver e pintar
durante a Contra-Reforma, quando praticamente toda a cidade de Roma foi
submetida a um projeto de renovação das igrejas antigas e de construção de
novos templos, em um esforço para atrair os protestantes de volta para a fé
católica. Todos estes novos espaços precisavam de decoração, e os artistas não
se fizeram de rogados. Não faltava trabalho para Caravaggio.
Os romanos podem até ter se alarmado com a sensualidade
explícita das obras caravaggianas, mas o que atraiu a condenação sobre a cabeça
do artista foi mesmo o realismo instransigente das suas obras religiosas.
Dentre elas a mais polêmica é, sem dúvida, A Morte da
Virgem.
Caravaggio - A Morte da Virgem |
Os carmelitas que haviam encomendado a obra recusaram-na, considerando-a
indecente. Correu o boato de que o modelo para a Virgem fora uma prostituta
afogada. É de fato um quadro chocante, em que a luz incinde com brutal
irreversibilidade no rosto comum e envelhecido do cadáver, esparramado na cama
com os pés descalços - e sujos! – a projetarem-se de modo nada romântico.
O que nos choca nessa tela é a sensação da verdadeira morte,de verdadeiro
luto, sem que coisa alguma seja asseada ou desodorizada.
Se Maria era humana, então realmente morreu e não faltou fé ao artista mas
aos clérigos horrorizados que rejeitaram essa obra prima. Até porque em termos
teológicos, uma Virgem pobre, velha e acabada faz absoluto sentido assim como o
luto profundo dos apóstolos.
Essa mulher era tudo o lhes restara do mestre. Veja que Madalena encolhe-se
de pesar e que os homens lamentam-se de maneira diversa, mas igualmente
dolorida.
Maria não nos é mostrada do modo
habitual, subindo gloriosamente para o Céu, rodeada por querubins que nada têm
a ver com os pobres mortais. Na tela encaramos um cadáver humano, reconhecemos
nele a nossa humanidade, e somos solidários com uma perda humana.
Veja como acima da cena, uma espécie de cortina teatral, esse
grande pano escarlate amontoado, aumenta o efeito dramático da cena,
aludindo silenciosamente ao mistério da mulher que pariu o divino, ao vermelho
sangue do seu amor materno, numa analogia com o martírio ou ao movimento
ascendente das almas.
Em um maravilhoso contraste, veja o
vaso de cobre à beira da Madalena, sugerindo-nos
que ela estivera lavando o corpo. A bacia me faz recordar uma doce voz feminina
da minha infância, a da minha avó advogando os choramingos das netinhas contra
a impaciência dos netos:
“Tenham paciência com as mulheres, pois são
elas que dão à luz e lavam os corpos”.
Cada detalhe
realista torna a obra mais e não menos religiosa e a faz ter sobre a gente um
impacto emocional maior. Como amar a deus
ignorando o homem? Não é a humanidade em nós que almeja o divino?
Essa tela é vanguardista, é espantosa e
livre das convenções da arte e da vida. Ela guarda a realidade, contém uma
verdade que, por si só, além de bela, para mim é
sagrada.
Pelas mãos de
Caravaggio, pela primeira vez, a arte encarou toda a realidade da existência
humana, com seus altos e baixos, seu esplendor e sua sórdida materialidade. Ele
foi sensível à veracidade humana, a todo o espectro da vida real e aceitou e
amou isso, criando grande arte.
Como dizia o grande Terentius:
“Homo
sum: humani nil a me alienum puto”
Ou por outra, se somos humanos, nada do
que é humano deveria nos ser estranho. E sim tudo
aquilo que não é.
A perfeição, inclusive.
Muito interessante o artigo, Moacir. Gosto dos trabalhos de Caravaggio e adoro os detalhes mostrados por você. Pena que as fotos sejam pequenas. Só pelo olhar parece que a Santa sabe se defender kkk O sensual decote da Nossa Senhora mostra que antes de ser mãe ela foi mulher e que amamenta seu bebê. No quadro da morte eu só vejo a dor diante da perda de alguém que se ama. Prefiro a realidade humana a obras 'asseadas e desodorizadas' distantes da terra. Obrigada!
ResponderExcluirMônica,
ExcluirEu também gosto das coisas caravaggianas. Ele chutou o pau da barraca renascentista e pintou a vida sem as firulas e maneirismos de praxe, como a via e experimentava pelas ruas da Itália: clara-escura , pobre, prostituída, de pés e unhas sujas e violenta e nem um pouco desodorizada.
Quanto aos detalhes....
Olhar e ver obras de arte são duas coisas diferentes. Olhar é um ato físico enquanto que VER é um processo mental de percepção, de reconhecimento a partir de nossas experiências anteriores , da observação de figuras e objetos que devem ser interpretados, que precisam se encaixar para contar uma história e para que a tela adquira significado. Temos que ler as imagens e isso requer tempo e atenção.
E sim Caravaggio revolucionou os temas religiosos pintando Marias que amamentavam seus bebês (rsrs) e eram amadas e morriam e deixavam saudades.
"Obrigado!"
1)Séculos depois, o filósofo Karl Marx (estou falando do filósofo) adaptou a frase do Terentius e disse: "Nada que vem do ser humano me surpreende".
ResponderExcluir2)Achei linda a tela de Nossa Senhora descalça, ser humana maravilhosa.
3)Falando em humanidade, belo decote da mulher Senhora Nossa. O Jesus pelado, tab deve ser para falar da condição humana dele.
4) Santa Catarina, Santa Maria Madalena, Santa Ana...santas, sãs, saudáveis. A Língua Portuguesa nos informa que Santidade tem a ver com Sanidade...
5) Parabéns Moacir !
Vizinho Antônio ,
ExcluirMarx sabia a Divina Comédia quase de cor e quem leu O Capital se deparou após a introdução, com as palavras orgulhosas do grande florentino:
"Siga o seu próprio caminho, e deixe que as pessoas digam o que quiserem!"
Quando aprenderemos? O problema jamais foi o pensamento de Marx - desde quando pensar é crime? - mas os genocídios cometidos em série pelos seus falsos profetas e adeptos e devotos loucos de pedra que até hoje se ajoelham em transe diante das escrituras dele - Revelação! - e recusam-se a enxergar que o mundo mudou e a ouvir a voz da razão. Como dizia São Tomás de Aquino:
"Cuidado com os homens de um livro só"
Quanto à galera santíssima estou , no momento, escrevendo sobre as torres apontando para o céu catalão daquela que será um dia a mais alta das igrejas da cristandade. Nelas algumas palavras foram gravadas na pedra: "Sanctus,Sanctus,Sanctus....
É da nossa natureza esse olhar para as estrelas, essa hosana nas alturas, essa interminável oração e, se isso é sanidade ou não, como tudo nessa vida, depende de quem a pratica.
Obrigado e abração
Moacir,
ResponderExcluirVejo que você não esqueceu a Madona. Também acho a Galeria Borghese encantadora e estive diante desta obra de arte maravilhosa sem perceber nada do que você descreveu tão bem. Apenas achei diferente de todas que eu já tinha visto. Amei as explicações. Muito obrigada! Acho que posso imaginar o escândalo provodado pela A Morte da Virgem mas o quadro só nos aproxima de Nossa Senhora em vez de afastar. Ao pintar a morte de uma mulher simples sendo chorada como qualquer outra por familiares devastados Caravaggio evoluiu na sua arte e fez um favor a minha religião. Ansiamos pela perfeição porque somos imperfeitos e finitos. Não será renegando a nossa humanidade e fingindo que não sabemos da realidade e das carências dos homens que chegaremos a Deus. Parabéns pelo bonito artigo e um abraço para você.
Flávia,
ExcluirNão esqueci nem da Madona nem do Salvator Mundi (rsrs) que está quase pronto.Peço-lhe mais um tantinho de paciência.
E quanto às suas palavras " não será renegando a nossa humanidade e fingindo que não sabemos da realidade e das carências dos homens que chegaremos a Deus", assino embaixo. Para mim Deus é o que nos espera no final de uma loooonga estrada chamada de evolução que mal começamos a trilhar. Outro abraço para você.
Olá Moacir,
ResponderExcluirComo sempre, é muito bom ler você esmiuçando um artista ou uma obra. Leva a nossa atenção para detalhes que passariam despercebidos.
Como a conceituação de Caravaggio como um realista abusado, nas roupas ricas e na sensualidade de Sta Catarina, na velhice de Santana ( não era velha mesmo? E com os outros artistas , principalmente todas , parecem ter a mesma idade), e o decote ousado de Maria. Lindo o pèzinho do menino em cima do da mãe.
E ainda o realismo na Morte da Virgem, onde o que mais me impressionou foi a dor de Madalena sem ao menos mostrar o rosto. Pura expressão corporal!
Sua avó era uma feminista!
E " se somos humanos, nada do que é humano nos deveria ser estranho". Lição.
Tem mais?
Até então.
Caríssima Donana,
ExcluirSó uma mãe/avó apaixonada da gema prestaria atenção ao detalhe do pésinho(rsrs) E, embora a de Madalena seja mais notada , já que em primeiro plano, a dor nessa cena é geral e palpável - veja os homens escondendo o pranto nas mãos - e o quadro é sim uma aula magna de expressão corporal.
Quanto à senhora minha avó - abraço de vó é uma delícia! - não tenho certeza se ela era muito "feminista" mas essa já seria outra conversa.
E sim "tem mais"(rsrs)
Abraço
Olá,
ExcluirTem que achar abraço de vó uma delícia mesmo, afinal mora com uma!
Até mais.
Pimentel,
ResponderExcluirUm post muito bem escrito e informativo sobre o menos conhecido entre os grandes mestres da pintura.
Sampaio,
ExcluirGrato pelo comentário. Porém vou me permitir discordar. Menos conhecidos e mais injustiçados que Caravaggio, entre os pintores que mudaram a história da pintura, estão dois gênios renascentistas: Masaccio e Piero della Francesca.
Estimado Moacir
ResponderExcluirTenho me deliciado com seus textos desde quando tive a sorte de participar deste grupo de pessoas sensíveis e cultas, graças aos amigos Heraldo e Mano.
A sua maneira de abordar os diversos temas transmite um encantamento ou uma alegria desde as obras dos grandes mestres até a degustação de um vinho ou o simples caminhar em uma vila.
É uma bela maneira de encarar a vida.
Sinceros parabéns
Um forte abraço
Domingos
Grande Domingos,
ExcluirÉ uma honra ler você por aqui. Também sou seu fiel leitor. Quanto ao nosso encantamento pelas coisas grandes e pequenas e boas da vida - o mar, o vasto mundo,a estrada, as "Esmeraldas" , a música, a arte, a mesa e nela os copos - não consigo lembrar de mim sem sentir tudo isso. Dizem que nasci com o "riso frouxo" e, segundo uma das sábias mulheres da minha vida , isso impediu que eu " me perdesse com a cabeça enfiada nos livros". Será?
Queria lhe dizer atrasado que o Matucão da minha infância, de nome Cumpadi Maurício, quando perguntado pelos netos urbanos e abestados do dono dos pastos sobre o que os Pezões e as Pezinhas estavam fazendo lá uns por cima das outras, ele pitava o cachimbo, sorria com os olhos e respondia:
"Brincano de passarás, esse mininu"(rsrs)
Parabéns lhe digo eu além de muito obrigado.
Pimentel,
ResponderExcluirMeu perdão pelo atraso em comentar sobre este teu trabalho, mais um digno de nota máxima pela qualidade do texto e fotos.
Outro artigo que copio para juntar a outros que abordam os pintores, onde gradativamente o meu acervo se amplia e de forma impressionante pelos detalhes e informações que adicionas aos teus registros.
Obrigado por essas aulas tão importantes, e graças também ao Mano porque nos disponibiliza um espaço cultural extraordinário.
Um forte abraço.
Saúde e paz, meu caro.
Bendl,
ExcluirO atraso não tem importância nenhuma! Obrigado pela leitura, por ter passado por aqui e pelo abraço que retribuo.
"SAÚDE E PAZ"