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10/04/2017

Olhar Perdido

Maria Madalena - Igreja de Saint-Martin d'Arc-en-Barrois - 1672 (fotografia Vassil)

Heraldo Palmeira
O paulistano convive com seus brigadeiros famosos sem confusão. Só chama de brigadeiro a avenida Brigadeiro Luís Antônio, a rua comprida que um dia, junto com a avenida Santo Amaro, formava a antiga estrada de Santo Amaro. Hoje, liga a região da praça da Sé às franjas do Parque do Ibirapuera, dando de cara com o Monumento dos Bandeirantes e seguindo adiante por mais um trecho. E homenageia o brigadeiro que foi um dos maiores latifundiários do estado.
A outra Brigadeiro, chamada apenas de Faria Lima em homenagem ao prefeito que iniciou sua construção nos anos 60, hoje rivaliza com a avenida Paulista como centro de negócios repleto de edifícios imponentes, ligando os bairros de Pinheiros e Vila Olímpia.
O trânsito na Brigadeiro estava pesado como de costume. Fiquei retido num farol – como os paulistanos denominam seus semáforos – do ladeirão, comprovando que os motoristas evitam mesmo fechar os cruzamentos para não piorar ainda mais o trânsito caótico.
Do outro lado da rua, na pista de descida, um daqueles enormes ônibus biarticulados, lotado, absolutamente inerte como tudo ao redor. Dentro dele, colado numa das janelas meio embaçadas pela diferença das temperaturas de dentro e de fora, um rosto paralisado fitando o nada.
Não havia qualquer mensagem naquele rosto; não havia nenhuma! Apenas o retrato de uma metrópole que obriga seus moradores a acordar de madrugada, enfrentar deslocamentos imensos e lentos todos os dias, no caminho da sobrevivência. Que cria aquele tipo de máscara impressionante, quase comovente. A face de vidas sem sentido, sem esperança, sem futuro. A face do vazio.
O carro finalmente andou. Logo adiante, uma Alameda Santos dobrada à direita e menos congestionada serviria de rota de fuga para o meu compromisso no Paraíso. Pensei em mim dentro daquele táxi guiado por um senhorzinho de conversa agradável, ar condicionado, boa música, conforto. Pude perceber que tenho atravessado a vida com um pouco mais de razões para a motivação que não havia no rosto daquela mulher do ônibus que seguiu ladeira abaixo.
Fiquei atento aos cruzamentos que se seguiram no meu trajeto, imaginando o que aquelas tantas pessoas que se moviam apressadas buscavam em seus motos-contínuos cotidianos. O meu silêncio foi ficando incômodo, pois também me peguei pensando a respeito do sentido do meu próprio moto-contínuo.
Quando surgiu na minha cabeça a velha pergunta “Quem somos, de onde viemos, para onde vamos?”, vi que estava na hora de reestimular a prosa com o taxista. Nada melhor do que jogar conversa fora! O resto é destino. Ou não.


11 comentários:

  1. Moacir Pimentel10/04/2017, 13:01

    “Quem somos, de onde viemos, para onde vamos?”
    Não faço a menor ideia, Mestre Heraldo. Mas sei que vou sempre "achar tempo dentro do meu tempo" para ouvir os Beatles, por exemplo, e dar um freio de mão no meu "moto-contínuo" todas as vezes que, por aqui, o senhor nos brindar com a renovada alegria que é a leitura dessa sua alma de cronista e do talento da sua BIC.
    Abração

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    1. Heraldo Palmeira10/04/2017, 15:26

      Caríssimo Moacir,
      Eu só estou aqui no Mano por seu convite irrecusável - como são irrecusáveis todos os seus convites. Afinal, é uma forma de estar perto de tanta gente espetacular que escreve aqui.

      Suas palavras superlativas ultrapassam muito o texto que realmente mereço, mas seguirei gastando minha BIC como forma de agradecimento a você e aos leitores que me honram toda semana. Abração.

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  2. 1)Boa crônica do Heraldo.

    2)"Quem somos" = eu aprendiz de várias coisas.

    3)"De onde viemos" = dizem os Espíritas que viemos do planeta Capela, os Anuários de Astronomia informam a localização do tal planeta. Concordo plenamente.

    4)"Para onde vamos" = continuam os Espíritas. Depois de um monte de reencarnações vamos para um planeta melhor.

    5) Fui.

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  3. Olá Heraldo,
    Já me senti assim algumas vezes, dirigindo bem cedo no dia,mas jamais saberia descreve-lo como você.
    Muito bom!
    Até mais.

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    1. Heraldo Palmeira11/04/2017, 12:14

      Ana,
      A rua é, talvez, a "grande televisão", mostrando sem filtros o que somos e, quem sabe, um pista para onde vamos. Até mais (como você costuma dizer).

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  4. Quando pequenina respondi: eu e meu irmão somos irmãos. Nós viemos da casa da nossa avó. E agora eu vou para a cama. Mas antes eu vou tomar banho. Ele eu não sei aonde ele vai.

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  5. Flávio José Bortolotto10/04/2017, 22:53

    Belo ensaio do Autor HERALDO PALMEIRA sobre o sentido da Vida. Eu apenas intuo que: Estamos aqui para aprender. No mais é tudo mistério, e mistérios não são fáceis de decifrar. Abrs.

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    1. Heraldo Palmeira15/04/2017, 11:40

      Sim, Flávio, os mistérios são complexos como a vida que vemos passar todos os dias diante dos olhos.

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  6. Wagner Monteiro12/04/2017, 08:06

    Meu jovem HP,
    Já dizia o poeta contemporâneo Belchior: "Somente o tempo vai poder provar a eternidade das canções". Nesse seu belo (mais uma vez) texto você prova que a eternidade é agora!!!
    Grande abraço!

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  7. Heraldo, gosto deste blog. Leio, mas nem sempre comento. Não sou escrevinhadora. Gostei do seu texto, porque vivo me perguntando o que vim fazer aqui, sem ter pedido para vir. Assim mesmo, nasci, cresci,vivi, sofri e vou morrer! E quantos como eu passam pela vida, como diz o poeta, "em brancas nuvens". Outros vem unicamente para sofrer, vivendo uma vida sem sentido. É um mistério. Parabéns, seu texto deixa a gente refletindo.

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