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29/09/2016

Choro Noturno

fotografia Pedro Curi (TV Globo)


Heraldo Palmeira

Há alguns dias o país chorou com a perda inexplicável de um ator. Todos gostaríamos de entender por que essas coisas acontecem, como um homem em plena forma, na maturidade criativa, sucumbe a um rio, paralisado pelo pavor – como leva a crer o relato da colega que testemunhou tudo.

Há alguns dias o país descobriu que aquele ator com jeito tímido, sem vocação para o deslumbramento, era também um homem especial, adorado pelos colegas, reconhecido no meio como um dos grandes que realmente era. Elegante até na comoção final de despedida da vida.

Ontem eu pensei na tevê brasileira que conheci (ela) ainda adolescente, no meio dos anos 60. Claro que me apaixonei, mesmo limitado ao indiozinho da Tupi, naquele preto e branco chuviscado que chegava a pulso nos confins do Brasil onde eu vivia.

Ontem eu pensei em todo o encanto que aquele negócio foi causando na minha vida, trazendo o mundo para dentro de casa, me incentivando a ser um profissional do audiovisual.

Ontem eu fiz uma correspondência entre ficção e realidade, pensando na arte de transformar um calhamaço repleto de letras em uma história que envolve pessoas que fazem e pessoas que assistem.

Ontem eu testemunhei a ginástica espetacular de uma equipe ocupada em, pela primeira vez na história dessa nossa tevê agora madura, manter vivo um personagem cujo ator que lhe dava vida perdeu a própria vida.

Ontem eu torci pelos atores que se obrigavam a fingir alegria ao falar com uma câmera como se ela fosse o companheiro de elenco, o amigo querido que se foi tragado pelas águas de um rio imponente que eles todos louvavam na história que estão terminando de contar. Torci tendo plena consciência de que estava assistindo a um jogo em videoteipe inédito. Coisa mais esquisita!

Ontem eu chorei ao testemunhar um momento histórico dessa nossa tevê madura, que soube resolver com delicadeza inaudita a falta da presença protagonista, sem permitir que tudo virasse uma ausência capaz de pôr tudo a perder.

Ontem eu chorei copiosamente sofrendo a perda de um homem que não conheci. Ontem eu me apeguei a Santo dos Anjos para manter vivo Domingos Montagner e vencer uma saudade difícil de explicar.

Ontem eu entendi que tudo o que foi traçado para ser apenas um folhetim vai nos deixando lentamente com uma marca de realismo, que se acentuou naquela tarde em que todos nós fizemos parte de um drama dentro do drama.


8 comentários:

  1. Heraldo, bom dia.

    Não assisti a um capítulo sequer de Velho Chico. Como explicar isto, não sei. Mas assim que vi o Santoro (do qual gosto muito) na trama achei que a novela seria muito triste. Não me pergunte por que essas coisas acontecem. Simplesmente acontecem. E senti alívio por não ter visto.

    A primeira vez que botei os olhos em Montagner (não lembro quando), pensei: Quem é este ator tão belo e com tanta presença cênica, onde ele estava? Pesquisei e soube que ele vinha de longe, como dizia o Brizola. Tinha uma carreira construída no Teatro e no Circo.

    Outro dia vi uma entrevista dele no Jô e confirmei o quanto ele era simples, despojado de vaidades.

    Mas, ao mesmo tempo, percebi outra característica nele. Ao terminar sua pequena apresentação de circo com o parceiro de trabalho, um rapaz pequeno, Domingos ficou ofegante, bastante ofegante, não conseguia falar direito. E disse ao Jô, acho que apontando para o coração (não sei se criei isso, se é fruto da imaginação o apontar para o coração), "eu tenho um débito..." (como se fosse um débito cardíaco aumentado). Jô emendou em cima da fala de Domingos, e o pensamento dele se perdeu na entrevista.

    O que aconteceu naquele rio ninguém saberá de fato. Talvez uma mistura de muitos fatores inesperados, como redemoinhos, correnteza e cansaço.
    Se pavor houve, que o paralisou, foi quando ele se deu conta que estava difícil sair dali, não antes.

    Camila deu um depoimento sobre o afogamento do colega, mas achei bem interessante a 'análise não-verbal' de um tal Ricardo Ventura sobre o depoimento dela. Está na web para quem quiser ver. Fez sentido pra mim.
    Camila deve ter sofrido muito, ficado muito chocada com o ocorrido e também interpretou a cena, sem nenhuma maldade, diga-se, mas como forma de escape ao destino cruel do colega, amigo e parceiro na novela. Camila parece ser uma moça boa, da paz, meiga e deve ter sofrido por não ter como ajudar Domingos em sua última cena.

    Naquela noite eu me peguei rezando, fazendo o sinal da cruz, foi uma morte torturante, que, acho, ele não merecia.

    Mas quem sou eu para falar em merecimento?

    A família, financeiramente, vai ficar bem. A Globo tem seguro para seus atores (fala-se em um milhão e meio a três milhões de reais)e, além do seguro vai manter o contrato de Domingos até 2020, e cuidar do estudo das crianças até a maioridade. Não está fazendo caridade. A Globo sabe que era obrigação dela ter salva-vidas e médico naquela lonjura, se bem que Domingos e Camila não estivessem no set de gravação. Mas alguma palestra, alguma advertência deveria ter sido feita. Com rio não se brinca. E é preciso advertir adultos sim, os dois estavam felizes pelo término da gravação do dia e como crianças foram brincar na água, se distraíram.

    Não quero pensar no sobrenatural de almeida, como dizia Nelson Rodrigues. Ele existe sim, a gente só não sabe quando e se ele chegará às nossas vidas.

    Domingos, acho, teve apenas 8 anos de TV. Tinha 54 anos e era o mais novo galã e promessa da Globo para sei lá quantos novos trabalhos (além do Circo, filmes e Teatro). Deus não quis, não permitiu. Isso traz não uma revolta, mas a pergunta que sempre fazemos diante do imponderável: POR QUE?
    Abraço, Heraldo
    Ofelia

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    1. Heraldo Palmeira29/09/2016, 10:59

      Prezada Ofelia,

      Você abordou essa perda por todos os lados, com precisão. E por onde a gente tentar ir, haverá sempre o lamento por se perder gente assim, desse jeito. Esse tipo de perda gera sempre pergunta sem resposta. Abraço.

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  2. Prezado Heraldo,

    A TV é uma amiga íntima de todos nós!

    Ela nos traz emoções, alegrias, tristezas, nos conscientiza sobre muitos assuntos, nos informa, orienta, nos faz participar de competições as mais diversas, apresenta todas as modalidades de esportes, filmes, noticiosos, novelas, programas de auditórios ... a TV é inseparável de nossas vidas atualmente.

    E quando um dos nossos "conhecidos" - porque presentes em nossas casas diariamente - falece, e morre tragicamente como muitos nos deixaram, a dor que sentimos é natural, assim como um parente que se foi inesperadamente.

    O ator em questão estava no auge da sua carreira.

    Carismático, competente, boa estampa, cara de macho, fará falta à televisão em seus dramas, certamente, por interpretar e muito bem o ser humano quando envolvido em problemas ou feliz porque a vida é boa, versátil, e a sua morte nos constrangeu, indiscutivelmente, ainda mais pela forma inimaginável de seu desaparecimento.

    Enfim, eis a vida e suas nuances.

    Um abraço.
    Saúde e Paz!

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  3. Heraldo, texto atento e sensível que traduz bem sua emoção. Parabéns!

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  4. Parabéns meu caro Heraldo pela sensibilidade do texto (Não acompanhei a novela, mas conhecia o trabalho do Domingos), e também parabenizo a Ofelia pelo comentário, achei ambos complementos de uma série de sentimentos fora do comum que nos afloraram com o triste falecimento do talentoso Domingos. E que agora ele esteja nos vendo de um ponto de vista mais favorável do que o nosso. Grande abraço.

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  5. Eu não - e quem sou eu diante dos dois - quem melhor descreveu e me emocionou com sua escrita sobre Domingos Montagner. Vi e continuo vendo a novela por razões simples, por acreditar que ela fala da vida do nordestino com suas agruras, ressentimentos, busca por uma vida melhor numa linguagem bem nossa. E Montagner fazia isso muito bem, parecendo um nordestino nascido nas brenhas de Heraldo, nos confundós meus, nos rios que nos alegrou quando criança e, agora, adultos ficando olhando passarem sem um pingo de água, uma piada sequer. Obrigado a voces dois pelos belos textos.

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  6. 1)Fenômenos webianos interromnperam meu comentário anterior.

    2)Heraldo escreveu tema que mobiliza todos.

    3)Os comentários visíveis, a meu, disseram tudo.

    4)Budisticamente, que o Espírito do ator esteja bem na dimensão em que se encontra, pois a vida é infinita, mudam as dimensões. Ele continua vivo.

    5) Bênçãos para os familiares e amigos que ficaram.

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  7. Moacir Pimentel30/09/2016, 12:15

    Mestre Heraldo, mais um grande texto. Apesar de pensar que a Globo com seus noticiários insípidos e programas muitas vezes rídiculos e os seus plim-plims, contribui para anestesiar e padronizar o pensar de 90 milhões de brasileiros diariamente , concordo com você que sua dramaturgia é mais do que madura, talvez seja uma das melhores do mundo.
    Não assisti a novela , nem conhecia o trabalho do ator , mas me perguntei como seria contornada a ausência do protagonista. Assisti às cenas de um casamento dia destes e , talvez por não conhecer o enredo , em vez de me ligar no olhar dos atores para a câmara e no quanto deve ter sido difícil gravar sem o colega, pensei se por acaso não nos olhariam assim os nossos que já foram para o andar de cima.
    Pensei que diante da Velha Senhora a sensação de orfandade continua sem ter idade e embora já não me pergunte porquê a essa altura da vida, ainda estou muito distante de ter respostas e de me sentir mais rico de perdas e não mais pobre de esperança a cada luz que vai se apagando , como tão bem diz o Mestre, "no grid do nosso palco".
    Abraço

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