Vidas Impressas

Llibreria Sant Jordi - vista do interior (imagem llibreriasantjordi.com)

Heraldo Palmeira

Era uma vez um homem que trabalhava na indústria automobilística e perdeu o emprego numa das crises do setor.

Era uma vez um mundo metido a besta tentando ser moderno, que decretou o fim do livro impresso e a revolução dos e-books – repetindo a ilusão do fim do rádio, do cinema, da televisão, do vinil...

No início dos anos 80, a crise econômica e os ares de Barcelona deram um sopro de vida para a família do fotógrafo amador Jose Morales, que usou a indenização trabalhista para abrir uma livraria na região central e histórica da capital da Catalunha.

O homem que sempre foi grande amante da fotografia e das artes em geral criou a livraria Sant Jordi, especializada em livros de arte, fotografia, pintura, impossíveis de “traduzir” para os e-books, mais uma dessas bugigangas digitais inventadas para mentes acomodadas – nem todo mundo gosta de caminhar, entrar numa livraria, conversar com livreiros e com outros “antigos”, tomar um café, sentir o cheiro da tinta impressa no papel, ler fazendo anotações ao redor do texto.

Enfeitada por belos e raros móveis do final do século 19, a livraria é administrada por gente que entende profundamente de arte e de literatura, mantém atendimento personalizado e conservação histórica cada vez mais rara mesmo para os padrões europeus.

Na última crise econômica internacional, a história do patriarca se repetiu com os três filhos, que perderam seus empregos e terminaram atrás dos balcões da livraria ajudando a tocar o negócio da família.

Como crise parece estar definitivamente atrelada à história da Sant Jordi, a livraria enfrenta agora a questão do aumento do aluguel, pois houve grande valorização imobiliária do bairro Gótico – centro histórico de Barcelona – onde está instalada desde sua fundação. E essa matemática parece de difícil administração, já que os livros têm preços controlados na Espanha.

O que tem ocorrido no bairro é a mudança ou o simples fechamento de várias livrarias e lojas tradicionais, para dar lugar a redes comerciais internacionais, e praticamente já não existem livrarias na região.

Diante da séria ameaça à continuidade da empresa, eis que os moradores das cercanias iniciaram um grande movimento para a livraria não fechar suas portas, inclusive fazendo pressão sobre o proprietário do imóvel para que mantenha o valor do aluguel.

Uma sociedade com alto nível educacional compreende plenamente a importância de uma livraria como ambiente de troca de ideias, de intercâmbio cultural, de transmissão de conhecimento, e o papel fundamental do livreiro na formação intelectual dos cidadãos.

Ao se mobilizar para salvar uma livraria, a população se contrapõe à perda do patrimônio cultural, material e intangível que se observa em Barcelona nos últimos tempos, e entende que essa descaracterização histórica apenas serve para diminuir os atrativos particulares da cidade que, exatamente por serem particulares, formam o cabedal exclusivo que atrai e conquista gente de todo o mundo.

As livrarias fazem parte de um segmento de negócio sempre envolto em ligação emocional com as comunidades onde se instalam. Quase todas terminam impressas nas vidas das pessoas. Por isso, dói tanto quando sucumbem às modernidades e ao valor do dinheiro, porque a orfandade que sobra termina vitimando todos, sejam modernos, sejam senhores da economia. Ou mesmo os apenas amantes das artes.