Hoje damos as boas vindas a um novo colaborador, Domingos Ferreira, almirante reformado e contador de histórias do mar. Deixemos que ele mesmo se apresente:
Meu nome é Domingos Pacífico Castello Branco Ferreira; Sou Almirante (Reformado), casado, uma filha e três filhos adultos.
Nasci no Rio, em 1936, em Copacabana. Minha mãe, grávida, veio do Maranhão para cá, por razões de saúde. As viagens São Luiz/Rio/São Luiz foram em "navios do ITA", antes de os submarinos alemães começarem a afundá-los. Com certeza, esse contato com o mar foi decisivo para meu ingresso na Marinha, anos depois...
Passei boa parte da infância na Fazenda Santa Cruz, no município do Brejo, no Maranhão (onde as vacas já estavam...). Sem eletricidade, sem camisa e descalço.
Eu era o neto primogênito do Coronel Domingos Pacífico, educado na Europa e dono de várias fazendas nas margens do Parnaíba. Daí, eu tinha total liberdade, desde que vigiado por um "pagem" adolescente, chamado "Gambá".
Os "agregados" (peões), eram negros, descendentes de escravos, quase cem por cento analfabetos. Os poucos brancos eram cearenses, retirantes das secas, alguns sabendo ler e contar, pelo que ajudavam o Coronel e os filhos, na administração das fazendas.
A interação social era "Casa Grande e Senzala" pura.
Minha alfabetização se deu nas aulas de uma tia para a molecada, na varanda da "casa dos brancos", e do acesso aos livros e revistas existentes na fazenda.
Foi com essa bagagem que voei de Teresina para o Rio, ao encontro de meus pais e irmãs, em plena II Guerra Mundial, em um trimotor alemão(!!??), Junker, da Condor.
Logo depois, entrei para internato do Colégio Militar, pois minha família se mudara para Goiânia. Ali, meu pai, engenheiro ferroviário, desbravava o sertão, levando a estrada de ferro até Brasília, cuja inauguração assistimos emocionados.
Do Colégio Militar, fui para o Colégio Naval, recém-fundado, em uma decisão definitiva na minha vida. De lá, passei para a Escola Naval, cujo curso concluí em 1956. No total, eu passara dez anos em regime de internato.
Como Guarda-Marinha, fiz a viagem de final de curso para a Europa, Norte da África, Oriente Médio, Mar do Norte, América do Norte e Caribe, visitando mais de uma dúzia de países. A partir daí, fiz muitas viagens ao exterior, cobrindo os diversos oceanos e continentes, em visitas a mais de cinquenta países.
Como oficial menos graduado, tais viagens foram em navios de superfície e em submarinos. Já oficial superior, comandei uma corveta na Amazônia, quando vivi uma extraordinária experiência profissional e humana, ao prestar assistência médica e social às abandonadas populações ribeirinhas.
Também, tive a honra de comandar o primeiro submarino moderno da Marinha, com sistemas de combate digitais.
Escrevo desde o Colégio Militar, onde fundei uma revistinha mimeografada, chamada "O Moita", de vida curta. Ocorreu o mesmo no Colégio Naval, com a revista "A Fragata", esta duradoura. Como tenente, ganhei um concurso literário do Clube Naval, premiado com viagem ao exterior.
Na reserva, colaborei no Jornal do Brasil até ele fechar.
Fui Presidente do Clube Naval, de 1997 a 2001, instituição fundada em 1884, cujo Presidente de Honra é o Imperador Dom Pedro II, frequentador de suas reuniões. Na minha gestão, procurei dar ênfase a assuntos culturais, com o restabelecimento de concursos literários e a criação da revista "Mare Nostrum", dedicada à poesia, contos e crônicas.
Atualmente, escrevo artigos regulares para a centenária Revista do Clube Naval, versando, principalmente, sobre assuntos da vida no mar, minha paixão.
Domingos Ferreira
“Marinheiro tem uma mulher em cada porto”.
Esse axioma é universal, porém, infelizmente, não corresponde à realidade. Bem que a maioria dos homens do mar desejaria que assim fosse, mas há vários motivos para essa plenitude não ser alcançada. Dentre eles, podem ser destacados alguns, a saber:
- a cidade visitada é pequena e não oferece variedade e qualidade;
- a permanência do navio no porto é curta;
- o cais de atracação fica longe da área de interesse;
- as diferenças culturais são grandes;
- o clima é agressivo;
- o dinheiro é pouco;
- o marujo é tímido;
- o marujo é feio;
- as mulheres são feias;
- o marujo deixou uma paixão no porto de origem;
- etc, etc, etc...
Todos os portos urbanos no mundo, além dos cais onde atracam os navios, têm uma área de acesso à cidade, a ser percorrida pela marujada, ao desembarcar. Em geral, as ruas próximas são “guarnecidas” por restaurantes, botequins, bares, inferninhos, pensões e hotéis baratos. Em cidades maiores e mais ricas, há boas casas de espetáculo, teatros, hotéis caros, etc...
Os nomes desses “estabelecimentos” se repetem no mundo inteiro, tais como: “Kit Kat”, “Broadway”, “America”, “La Tour”, Bistrô, etc... E, para os brios nacionais, há sempre “Rio”, “Copacabana”, “Ipanema”, “Samba”, Bossa Nova, etc...
Os navios de guerra têm tripulações grandes, ao contrário dos mercantes. Quando atracam vários em um porto, na hora do licenciamento, normalmente ao anoitecer, são “despejados” no cais dezenas de oficiais e centenas de marujos. Muitas vezes, após dias ou semanas no mar, debaixo de céus estrelados, em mar grosso ou, ainda, mergulhados em submarinos...
Essa saída se dá sempre em grupos, que vão “dar soco no sereno”, na busca de aventuras que nem sempre poderão contar para os netos. Tudo pode acontecer, mas o objetivo principal é conseguir uma companhia feminina, que alimente suas fantasias e carências. De qualquer maneira, no dia seguinte, haverá muito assunto para comentar.
Hamburgo é o principal porto alemão, no trecho final do rio Elba, ao desembocar no Mar do Norte. O Navio-Escola brasileiro ali atracara, pela manhã, com uma turma de duzentos e tantos guardas-marinha, em “Viagem de Instrução”, ao final do curso de cinco anos de formação de oficiais da Escola Naval.
Terminara a rotina de visitas protocolares de autoridades brasileiras e alemãs e haveria licenciamento a partir das dezoito horas. Os guardas-marinha, exceto os de serviço no porto, foram liberados, podendo retornar a bordo até as dezesseis horas do dia seguinte, em tempo para a recepção que o Comandante iria oferecer às autoridades e à sociedade hamburguesa.
Roberto, Álvaro, Assis e Geraldo, companheiros de camarote na Escola Naval, durante todo o curso e nos seus vinte e poucos anos, resolveram sair logo após o jantar. Roberto, o mais organizado, havia estudado o mapa da cidade e concluíra que o lugar “quente” era St. Pauli, o “bairro da luz vermelha”.
Saíram de bordo e, em meia hora, estavam lá, andando na “Reeperbahn”, uma larga avenida lotada de gente de todos os tipos e idades, inclusive famílias inteiras... De ambos os lados, havia bares, cafés, discotecas, “sex shops”, clubes, lanchonetes, teatros, músicos de rua, etc... E, ainda, os famosos bordéis, anunciando suas “colaboradoras” em vitrines finamente mobiliadas, coerentes com a cultura alemã.
Nossos quatro mosqueteiros percorreram toda a rua, até escolherem um bar, de bom padrão, anunciando um “striptease”, cujo cartaz mostrava uma bela mulher dentro de uma grande taça de champanhe. Eles conseguiram uma mesa próxima do palco circular, no centro do amplo ambiente, quase lotado.
Já haviam bebido o suficiente para estar felizes e acompanhados por duas mulheres, quando foi anunciada a atração principal da noite, e fixaram uma grande taça de metal dourado no palco, com uma escadinha leve, porém firme.
O som de um “pasodoble” dominava o ambiente, quando uma mulher morena, belíssima, vestida de toureiro, subiu ao palco, acompanhada por um “bandarillero”, trazendo uma cabeça de touro enfeitada. Um “striptease”, como se sabe, começa com muita roupa e termina sem, ou quase sem.
A cigana Esmeralda, destruidora de corações, manejando uma pequena espada e uma capa vermelha, combateu sensualmente com o touro manobrado pelo bandarilheiro. A cada ataque, uma chifrada lhe arrancava parte da roupa e a platéia reagia com um crescente OLÉ! Até que se foram todas as peças, exceto o biquini, em uma verdadeira apoteose.
A música mudou para um “flamenco”, em solo de um violão, enquanto a bela cigana subiu a escadinha e entrou na grande taça de champanhe, onde se sentou e começou a jogar o liquido nos ombros. Súbito, apagaram-se todas as luzes e surgiu um facho dirigido para a taça, onde Esmeralda estava de pé, completamente nua como uma estátua grega, em meio a uma chuva de aplausos.
Terminada a apresentação, ela desceu da taça vestida em um roupãozinho gracioso e passou pela platéia, por junto à mesa dos nossos heróis. Alguma razão do Destino, fez que ela tropeçasse, torcendo o pé e, com um gritinho, caisse nos braços do Geraldo, que a amparou. A partir daí, eles deram certo. O jovem e o belo guarda-marinha era, disparado, um dos mais cotados entre as mulheres.
Esmeralda tomou duas taças de vinho com ele e foi, mancando leve, trocar de roupa. Voltou mais linda que antes e se juntou ao grupo. Esticaram mais algum tempo por ali até que ela e Geraldo foram a outro bar, bem menor e mais intimista, e lá ficaram mais algum tempo se conhecendo e acariciando. Afogueados, ela o levou para seu pequeno apartamento, em um bairro próximo. Foi um fogaréu, uma noite de amor enlouquecido, a que dois jovens têm todo direito. Ficaram juntos até a tarde, quando Geraldo teve que voltar para bordo.
Ele saiu da recepção no navio logo que pôde e voltou ao apartamento de Esmeralda, que já o esperava. Foi um amor mais calmo, repetido várias vezes, com buscas e descobrimentos recíprocos, encaixando-se de forma apaixonante. Geraldo estava licenciado por mais dois dias, após o que o navio iria “suspender”, com destino a Copenhague, onde permaneceria por quatro dias. De lá, iria para Oslo, por seis dias. Em seguida, aproaria para Oeste, em direção a Nova York, despedindo-se da Europa.
Esmeralda pedira duas noites de folga, sendo substituída por outra bailarina. O casal passou esse tempo visitando os principais pontos turísticos da cidade, durante os dias, e vivendo intensamente as noites de amor. Essa liberdade e esse aconchego deram-lhes uma grande intimidade, que os transformou em dois apaixonados.
E resultaram em que a bela espanhola, no último dia, propôs a Geraldo, encontrarem-se em Copenhague e Oslo. Ela poderia tirar duas semanas de férias e as viagens entre esses portos, próximos uns dos outros, seriam em rápidos e baratos “ferryboats”, levando seu carrinho Citroen 4cv. Além disso, Esmeralda tinha uma amiga em Oslo, com quem já dividira apartamento em Hamburgo.
Não deu outra. Na partida de Hamburgo, a monumental Esmeralda estava no cais, com seu carrinho e uma rosa vermelha nos cabelos negros, acenando para seu amado e causando um frisson de inveja entre seus colegas. Na chegada a Copenhague, lá estava ela de novo no cais, com o Citroen e outra rosa, dando boas vindas a ele, cada vez mais linda. Essa cena se repetiu em Oslo, alguns dias depois, para desespero de toda a tripulação do navio. Esse fato chegou ao conhecimento do Comandante , que deu parabéns a Geraldo “por estar representando muito bem o Brasil, em terras nórdicas”...e autorizou licenciá-lo durante as estadias nesses portos.
Essa história tem muito de verdade e não estava chegando ao fim. Nos últimos dias em Oslo, totalmente apaixonados, o casal, angustiado, via chegar a hora da separação. Naquela época, não havia internet e os telefonemas internacionais eram difíceis e caríssimos. O último recurso seriam as cartas. Esmeralda queria vir para o Brasil, a qualquer preço e risco. Partia o coração. Geraldo deixara uma noiva no Rio. O que fazer?
Isso prova como é complicada essa balela de marinheiro ter uma mulher em cada porto.
A gente sofre muito...
1) Ora viva. Mais um cronista para alegria dos leitores.Seja bem-vindo Domingos Ferreira.
ResponderExcluir2)E o bom blog do Mano vai singrando os mares virtuais, já passou dos 32 mil visitantes.
3)Bom fim de semana a todos !
Estimado ANTONIO CARLOS
ExcluirMuito obrigado por suas palavras. Estou gostando da experiência. Pretendo continuar "singrando os mares virtuais",com você a bordo.
Um forte abraço.
Pois na condição de colaborador deste espaço extraordinário, as minhas boas vindas ao Almirante, que se apresenta através de um texto espetacular sobre cada marinheiro ter uma namorada onde aporta!
ResponderExcluirEm meu nome, digo que será uma honra dividir o blog com alguém tão experiente e militar das nossas FFAA, da gloriosa Marinha do Brasil, que deve ter inúmeras histórias para relatar, diante das viagens mundo afora.
Interessante, mas eu servi no Exército, na Polícia do Exército, e dei baixa como Cabo, após quase quatro anos. Pois agora o blog conta com um Oficial do Alto Escalão, um general 4 estrelas, se fosse do Exército, significando que deverei me comportar à altura desse superior hierárquico.
Parabéns, Wilson, por trazeres a este espaço extraordinário uma pessoa do quilate do Almirante Domingos, que abrilhantará o blog com a sua cultura, conhecimentos, e narrativas que nos deixarão admirados a respeito dom que coletou em suas andanças pelo mundo!
Almirante, um forte abraço, e minha continência respeitosa.
Saúde e Paz!
Estimado companheiro FRANCISCO
ExcluirMuito grato por suas boas vindas. Honrado estou eu em navegar num navio com tripulação dessa categoria.
Vamos explorar juntos esse oceano infinito.
Respondo à sua continência com grande alegria.Um grande e fraterno abraço.
Domingos
Prezado Domingos,
ResponderExcluirSim, a gente sofre, mas sofre mais é da saudade do que não fez. Agora ... quantos amores fugazes temos e em quantos portos efêmeros desembarcamos, acho que depende do "pasodoble".(rsrs)
De resto, se deixou lembranças tão vivas e se inspirou essa bela crônica tão bem escrita, a paixão de Geraldo e Esmeralda já terá valido a pena.
Parabéns, seja muito bem vindo e nos conte mais.
Abraço
Estimado Pimentel
ExcluirNa verdade, prefiro um "flamenco" a um "pasodoble". E em dueto. Sempre que possível, em alto mar, com uma brisa suave pela proa,em noite sem lua, debaixo de um céu cravejado de uma miríade de estrelas brilhando como
diamantes.
Creio ser a melhor forma de se aproximar de Deus.
Obrigado pelas boas vindas.
Abraço
Domingos