Machu Picchu (fotografia Pedro Szekely em www.flickr.com/photos/pedrosz/) |
Heraldo Palmeira
Apesar de todos os conhecimentos
e instrumentos que adquirimos ao longo do tempo, vamos vivendo como se a vida
fosse um rito traçado e terminamos tragados por sua rotina – ou, talvez desatentos,
nos entregamos a ela por certa dose de comodidade.
Poderia ter sido mais um final de
semana comum, caso eu não tivesse aceitado o convite do amigo querido para ir a
um hotel fazenda no sul de Minas. A metrópole, especialmente irascível naquela
tarde, cobrou seu preço por não poder fugir dela mesma comigo: me manteve imobilizado
uma hora inteira naquele tipo de congestionamento medido em quilômetros.
Enfim na Via Dutra, por onde não
transitava há alguns anos, pude testemunhar a urgência da terceira pista, as irresponsabilidades
de motoristas e motociclistas e nenhuma fiscalização contra imprudências e
infrações.
Mais adiante, subindo a serra na
noite gelada, lembrei da velha canção em que as casas lá embaixo estão com frio
e mostram a mão do poste velho para descer o barranco desfeito na luz.
Noite alta, vencida a estrada simples
e sinuosa, surgiram os primeiros sinais de que a moeda da vida tem duas faces:
mesmo com o restaurante do hotel já fechado, havia jantar quentinho aguardando no
prato. Acolhimento de matar de inveja a metrópole agora distante, refém de si
mesma, que ficou comendo sua própria fumaça.
Abrimos as primeiras garrafas, conversamos
sobre quase tudo, trocamos ótimas experiências. Mais um pouco, teríamos resolvido
metade dos problemas do mundo.
Fizemos caminhadas pelo ambiente
espetacular da fazenda, encantados com a vida simples e saudável que habita o
lugar. Ouvimos o relógio da matriz da cidadezinha nos informando hora a hora que
o tempo ali passa um bocadinho mais devagar. E festeja o momento transcendental
da Hora do Angelus com o som da Ave-Maria se espalhando mansamente, como um
sopro de fé.
O enredo do encontro foi
revelando seus personagens: o dono do hotel, mestre da fidalguia sempre
inflamado na sua fraterna implicância com a espanhola de sangue quente. O
parente da cantora famosa abrindo sua prodigiosa memória que se confunde com a
história ferroviária do país, ampliada pelas viagens em busca de locomotivas ao
redor do mundo.
O homem criado nos encantos do
campo, que mudou para o mundo urbano e continua apaixonado pelas sabedorias
rurais. A mulher que insinua segredos picantes em frases que ninguém consegue compreender,
engraçadíssima na forma de não dizer coisa com coisa.
O anfitrião do encontro com sua
tradicional nobreza, juntando pontos comuns com precisão de mosqueteiro,
equilibrando tudo e compartilhando a delicadeza do seu amor de vida inteira com
a grande senhora de múltiplos talentos. O garçom de inesgotável alegria, dando dribles
de mestre nos nossos chistes mais inspirados.
A enxurrada de vinho também revelou
universos paralelos inacreditáveis, como o sistema de túneis que começa na
adega camuflada para desencaminhar garrafas nobres e interliga lugares tão
distintos como São Tomé das Letras, Visconde de Mauá, a Planície de Gizé e Machu
Picchu – exatamente na curva onde se chega depois de tomar o chá alucinógeno
que ajuda a enfrentar a altitude, e que descortina a cidade perdida dos incas.
Houve quem jurasse que é esse chá
que faz o viajante enxergar o tesouro arqueológico peruano, que ele não existe,
não passa de holografia ou milacria do tipo.
Outro, ainda mais estudioso, garantiu
que o tal sistema de túneis serviu para transportar as pedras que ergueram as
pirâmides do Egito e o monumento inca – inclusive o teodolito eletrônico que
mediu o alinhamento milimétrico das janelas da cidade. O que a bebida não faz,
meu Deus!
Rimos como há muito não fazíamos.
Rimos de tudo, principalmente de nós mesmos – o que é ótimo sob todos os
aspectos. Se cada gargalhada nos garante mesmo os tais quinze minutos a mais de
vida, devemos ter ganhado, no mínimo, mais um dia neste mundo. Dádiva que
pretendemos comemorar com um lendário Porto 40 anos que, segundo informações
sigilosas do serviço secreto português, está malocado no setor de vinhos
alheios da adega dos túneis.
Foram dois dias inesquecíveis
naquele alto de serra, que parecem ter passado a jato para todos nós. Chegou
finalmente a tarde de domingo e a hora de ir embora. Conseguimos substituir a
tristeza das despedidas pelo compromisso de nos encontrar de novo.
Saímos em carreata descendo a
serra, até cair novamente na velha Dutra. Em alta velocidade, fomos nos separando
dos parceiros que iam entrando nas cidades onde moram. Por ter escolhido viver
em São Paulo, viajei mais e esbarrei nos milhares de carros do engarrafamento
monumental na moderna rodovia alternativa que usei para fugir da estrada
saturada.
Foram dezenas de quilômetros em
ritmo de tartaruga, tempo extra para pensar naquele encontro. Quinze pessoas;
eu conhecia apenas cinco. Já não somos tão jovens. Já enxergamos a finitude. Falamos
com orgulho de filhos e netos. Falamos de solidões e depressões que vivem à
espreita. Falamos da nossa relação inexorável com o tempo, dos medos que
assombram nosso futuro. Mas também revelamos planos e sonhos, ora bolas!
Tocou no rádio do carro a canção
popular que faz oração ao tempo, esse senhor de tudo, tambor de todos os
ritmos. Ousei desejar que aquele encontro ganhe brilho infinito, para que seja
possível reunirmo-nos em outro nível de vínculo. É o que vale da vida.
Tempo, tempo, tempo, tempo. Senhor
tão bonito que ajuda o meu coração a entender o compasso desse sentimento.
(Escrito em homenagem e agradecimento a Denise,
D’Artagnan, Valéria, Leslie, Marlene, Romulo, Neusa, Jorge, Pilar, Carlos, Cristina,
Alayde, Alessandra e Mateus)
Grande Heraldão (alguns dirão: isso é pleonasmo!!! respondo: eu sei),
ResponderExcluirAo descrever de forma magistral essa paisagem do sul de Minas, me transportei imediatamente para esse local. Em um passado não muito distante, mas que já se vão vinte anos, muitas vezes percorri esse caminho me dirigindo de São Paulo para Itajubá por motivos profissionais. O mais incrível de tudo isso é a forma simples e hábil como você descreve em palavras sentimentos que pude resgatar ao ler esse seu texto que toca a alma. Sempre que leio qualquer texto seu enfatizo o privilégio de poder fazê-lo, acrescentando e garantindo aqui para quem não lhe conhece como eu, que não foi o efeito desse maravilhoso vinho que trouxe a sua inspiração. FOI PURO TALENTO!!!!!!
Abraço fraterno,
Wagner Monteiro
1) Bela crônica. Me fez lembrar de Visconde de Mauá: calma, linda, o barulhinho da água do rio ...
ResponderExcluir2)E eu estudando Zen-Budismo nos livros do pensador japonês Suzuki, dizia ele que, na antiguidade, todo templo Zen, tinha perto uma queda d´água.
3) O som da água suave é altamente relaxante...
Amigo, já escrevestes um livro? Se não, já tens farto material para um livro de Crônicas não é?
ResponderExcluirTalvez a ala comercial não renda tanto sucesso (eu mesmo faz tempo que não os compro), mas certamente teremos mais uma opção de presentear amigos com um bom presente: teu livro! Fica aqui o desafio, se ainda não o fizestes ...
Mano Véio,
ResponderExcluirRenovo a cantilena: você pinta com palavras quadros fantásticos da humanidade. Difícil ler um texto seu, sem que ele se traduza em imagens passadas à retina, como se fosse um quadro de Rafael, Monet ou Van Gogh!!
Nota 10, como sempre!!
Xêro,
Marcus Guedes
Obrigada pelo passeio que seu texto me propiciou. Mais um!
ResponderExcluirLindo texto, e o paralelo com a música do Caetano deu um charme especial.
ResponderExcluirParabéns querido!Incrivel como consegue nos transportar, através de sua escrita, para a viagem que seus olhos registram. Concordo com o Emerson Medeiros, pois o "relógio da matriz" já sinaliza o tempo de copilar esse olhares em algo maior. Sucesso!
ResponderExcluirDetalhista, sentimental, encantador!
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