-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

31/10/2016

Navios da Esperança

Samaumeira (imagem Creatiove Commons)

Domingos Ferreira

A samaumeira sustenta o céu.
                                (Lenda Ticuna)

Uma das mais belas e fiel descrição da Amazônia foi expressa por Euclides da Cunha, após ter passado parte do ano de 1905 explorando o rio Purus, como chefe de uma missão oficial destinada a estudar os limites entre o Brasil e Peru. Com notável poder de síntese, ele a resumiu em uma única frase: “A Amazônia é o último capítulo do “Livro do Gênesis”.

De fato, é impossível descrever, com alguma precisão, o que se passa naquele universo mutante. Nele, a vida é uma aventura diuturna, em eterno movimento, cujo compasso é ditado pela presença dominante do ritmo das suas águas infinitas.
A samaumeira representa essa síntese. Ela é uma árvore gigantesca atingindo alturas acima de cinquenta metros, sustentadas por troncos ciclópicos, com vastas galharias avistáveis a quilômetros de distância, sobressaindo das matas quase impenetráveis e dominantes no território amazônico.

Cada samaumeira é um mundo vegetal, frequentado por absurda variedade de habitantes da floresta, de onde é emitida uma cacofonia de ruídos e cantos diversos. Grosso modo, de suas raízes aparentes até o topo das folhagens, em “andares” superpostos, convivem o homem, vermes, roedores, répteis, mamíferos de diferentes portes, pássaros os mais variados, borboletas e besouros diversos e uma infinidade de mosquitos. Tudo isso, entremeado com cipós e plantas secundárias, formando entrelaçados que se compactam nos espaços inferiores.

A Flotilha do Amazonas (FlotAm) foi criada em 1868, por decreto imperial. Com sede em Belém, sua viabilidade decorreu do surgimento de navios movidos a vapor, possibilitando navegar regularmente pelo rio Amazonas e afluentes, o que era impraticável para navios a vela e a remo.
Dessa forma, ficava assegurada a presença do Estado brasileiro na imensidão daquela área, com mais de vinte mil quilômetros navegáveis no maior sistema fluvial na face da Terra.

Atualmente, a FlotAm está situada em Manaus e conta com nove navios, dos quais cinco são Navios-Patrulha Fluvial (NaPaFlu) e quatro são Navios de Assistência Hospitalar (NAsH). Tais unidades são de projeto e construção nacional, adequados a navegar em águas rasas, de modo a atingir a maior extensão possível dos rios e afluentes a serem navegados. São navios na faixa de quarenta a sessenta metros de comprimento, com tripulações de cinquenta a sessenta a homens, incluindo o pessoal da área médica.
Dois NaPaFlus são maiores, com armamento mais pesado e helicópteros operativos. Eles receberam os nomes de “Pedro Teixeira” e “Raposo Tavares”, os maiores desbravadores portugueses da Amazônia, na primeira metade do século XVII, possibilitando sua integração ao território brasileiro.
Dentre os NAsHs, por óbvio, destacam-se o “Oswaldo Cruz” e o “Carlos Chagas”, ambos projetados para atendimento médico e odontológico, incluindo cirurgias menores. Também operam helicópteros para evacuação de casos mais complexos.

Com esses navios, a Flotilha do Amazonas, na atualidade, executa uma atividade intensa e regular no apoio médico aos ribeirinhos, devidamente planejada e coordenada com as Secretarias de Saúde dos Estados, que fornecem medicamentos e pessoal médico para esse esforço.
É uma colaboração a mais, exercida desde sempre, no atendimento das carências incríveis e cruéis sofridas por cidadãos brasileiros muitas vezes isolados naquela fantástica e imensa região.
Por isso, tais embarcações são conhecidas, carinhosamente, como os “Navios da Esperança”.

Os fatos narrados a seguir ocorreram há décadas atrás, quando tive a sorte e a honra de comandar a Corveta “Solimões”(CV 24), dentre as quatro que então constituíam a FlotAm, ainda com sede em Belém. Elas são navios apropriados a navegar no mar, com cascos mais fundos, o que limita sua navegação em trechos mais rasos dos rios. Contudo, operavam nos rios maiores com poucas restrições.

A Corveta Solimões (imagem da Marinha do Brasil)


Na época, inexistiam os Navios de Assistência Hospitalar. Todo o apoio médico aos ribeirinhos era prestado, de forma esporádica, pelas Corvetas, nas quais embarcavam médicos, dentistas e enfermeiros e medicamentos avulsos.
 Eu tinha trinta e dois anos de idade. Um Suboficial era o único mais velho a bordo. A jovem tripulação vivia um desafio a cada dia. Tudo era possível. E tudo acontecia...

A corveta navegava rio acima, pela margem direita do alto Solimões, como é chamado o Amazonas entre Manaus e a fronteira Oeste com o Peru e a Colômbia. O sol nascera havia pouco, na manhã fresca. O vigia avisou que uma samaumeira aparecera sobre a mata da outra margem, a uma distância estimada em quatro quilômetros
Ordenei ao oficial- de-serviço que aproasse o navio na árvore gigante e atravessamos o rio em cerca de quinze minutos. Na aproximação, apareceu um casario com tetos de palha, de onde se destacava um telhado mais alto, encimado por um crucifixo, logo abaixo da copa da samaumeira.
Ao mesmo tempo, o barranco da margem começou a ficar cheio de gente, principalmente crianças, em grande agitação. Olhei na carta de navegação e não havia menção a esse lugarejo abandonado, pelo que resolvi que prestaríamos assistência aos seus moradores. Foi uma das maiores surpresas em meu comando naquela fantástica região.

A corveta ancorou no meio do canal, ficando paralela à margem, a cerca de cem metros. Logo, arriou uma lancha que se dirigiu à uma prainha no barranco, levando o oficial de convés, dois médicos e um dentista, além de enfermeiros, auxiliares, soldados fuzileiros navais, e caixas de medicamentos. Eles fariam contato com as lideranças locais, para organizar o atendimento.
 No regresso para bordo, a lancha trouxe um cidadão que foi encaminhado à minha presença, na câmara do Comandante. Era um caboclo alto e forte, meio grisalho, queimado de sol, com um sorriso simpático e aperto de mão efusivo, que se apresentou como o Padre José. Em trajes civis...

A partir desse momento, surgiu uma empatia muito grande entre nós, desdobrando-se em cumplicidade gratificante nos próximos dois dias. Padre José, em seus cinqüenta e poucos anos, tinha uma notável história de vida, contada para mim com simplicidade, durante nosso curto convívio.
 Filho de vaqueiro, em uma fazenda da região, fora mandado estudar em Manaus pelo patrão, encantado com sua inteligência. Cedo, demonstrara interesse em ser padre e ingressara no seminário jesuíta na capital.
Lá, ele se destacara de tal maneira que fora enviado a Roma, para cursar a Pontifícia Universidade Gregoriana, onde concluíra um doutorado em Teologia, “cum laude”. Em consequência, o designaram para servir na Cúria Romana, onde ficara cerca de três anos, ao fim dos quais fizera “Voto de Pobreza” e pedira transferência para sua terra, como missionário. E ali estava havia mais de vinte anos.

Após nossa conversa inicial, Padre José e eu fomos para a aldeia ver como ia o atendimento da população. O lugarejo ficava em uma larga faixa de terra, entre o rio e um igarapé de água preta, com a boca grande perto de onde a corveta fundeara.
 A distribuição das casas se fazia em três ruas paralelas ao rio, estendendo-se para ambos os lados de uma pracinha, dominada pela samaumeira e a igreja. Esse arranjo indicava um planejamento urbano incomum nos muitos aldeamentos paupérrimos visitados pelo navio, o que foi confirmado pelo padre. Ali viviam cerca de trezentas almas, das quais um terço era de jovens e crianças.

A igreja tinha forte estrutura de madeira, paredes de tijolos e teto de telha bem alto, com a cumeeira em uma única peça de indestrutível maçaranduba, colocada ali “com a ajuda de Deus”, e sincero orgulho do prelado. Ao seu lado, duas edificações térreas, amplas e com várias janelas, onde funcionava uma escola, com o nome “Esperança”, em grandes letras de madeira, fixadas no frontal do telhado.

Do outro lado da praça, na beira do igarapé, havia três galpões, modestos, porém organizados, onde funcionavam a marcenaria, uma oficina de eletricidade e mecânica e uma olaria para fabricação de tijolos, azulejos e pisos. Outro galpão, mais afastado, abrigava o grupo motor-gerador de eletricidade da vila e tinha um pequeno píer. Ali atracavam uma lancha grande e rústica, com pequena cabine, um “regatão” (loja/quitanda flutuante) e, também, amarravam umas poucas igaras (canoas de um tronco).

Tudo isso, que Padre José mostrava com satisfação, funcionava em uma atividade contínua e proveitosa. A maioria das pessoas que vinham falar conosco era de jovens descontraídos, cujos nomes ele sabia e vidas conhecia, desde o batismo. Alguns deles usavam bonés azuis com os nomes bordados em branco. Eram seus “capatazes” e “ajudantes”, nas diversas atividades, com destaque para os jovens professores/as que ele mesmo preparara, ajudados por duas senhoras formadas em Manaus.

As aulas foram suspensas e as escolas abrigaram o atendimento médico e dentário, com filas nas portas. O clima era de festa. Os fuzileiros navais, em uniformes impecáveis e portando fuzis (sem munição), eram responsáveis pela organização externa do sistema. Além disso, causavam deslumbramento para as crianças e atraíam as moças, que os provocavam.

Essas atividades duraram o dia todo, uma vez que começaram a chegar embarcações com gente vinda das proximidades para ser atendida. Era uma oportunidade imperdível. Ao escurecer, o atendimento foi suspenso e as equipes voltaram extenuadas para bordo.

Eu e o Imediato fomos jantar com o Padre José, na igreja. Ele nos recebeu na sacristia, junto com alguns auxiliares mais próximos. O ambiente era espaçoso e tinha uma mesa grande onde seria servida famosa peixada de tucunaré.
 Antes de começarmos, Padre José nos mostrou o escritório, em uma extensão da sacristia. Nele havia a mesa de trabalho, uma escrivaninha grande, com máquina de escrever e uma estante de bom tamanho, desorganizada e cheia de livros, revistas e jornais velhos. Nas paredes, se destacavam uma fotografia emoldurada do Papa e um lindo crucifixo de madeira e bronze, presente recebido na despedida do Vaticano.
Ao fundo, havia duas portas, uma do banheiro e outra do quarto em que “morava” Padre José, aonde ele me levou. O pequeno cômodo, de simplicidade comovente, tinha uma cama de solteiro, com mesinha de cabeceira e abajur. Havia, também, o guarda-roupa e a escrivaninha, encimada por um porta-retrato com a fotografia da família. Uma prateleira sustentava a imagem de Nossa Senhora de Fátima, sua devoção, à frente da qual estava um genuflexório, onde ele se ajoelhava para rezar. Para completar, havia duas cadeiras comuns, onde nos sentamos. Padre José queria me fazer um pedido.

Ele abordou o assunto, sem preliminares, dizendo que a sede original do lugarejo não era onde estávamos. Na verdade, ela se situava nas margens daquele igarapé de água escura, a cerca de uma hora e meia de canoa para dentro, perto da lagoa emendada por ele com o Solimões.

No seu retorno de Roma, Padre José fora morar lá, visando a atender à população perdida, que vivia isolada por ser um foco de lepra, atingindo grande parte dos moradores. Durante alguns anos, ele se dedicara a minorar o sofrimento daquelas almas, em um esforço inaudito com poucos resultados. Inclusive, levara uma imagem de Santa Rita de Cássia, Padroeira das Causas Impossíveis, e a entronizara na capelinha da vila.

Até que, aconselhado por um médico amigo, que lá estivera, resolvera fazer a mudança da população sã para aquele local onde estávamos, nas margens do Solimões, conhecida como Vila Nova. Dessa forma, poderia tirá-los do contágio permanente com a terrível moléstia, sem afastá-los definitivamente dos doentes, especialmente as crianças.
 Entretanto, houvera bastante resistência à mudança, apesar dos argumentos favoráveis. Então, ele apelara para a grande religiosidade do povo, e trouxera a imagem de Santa Rita em uma procissão de canoas, para a qual conseguira a presença do Bispo de Manaus, seu amigo de seminário. A medida dera resultado e, naquele momento de nossa conversa. restava uma população de umas cem pessoas, a maioria de doentes, ainda vivendo no antigo vilarejo.

Dito isso, Padre José me fez o convite, irrecusável, de ir com ele, no dia seguinte, visitar a Vila Velha, como era chamada. Ele soubera que a partida da corveta fora marcada para as nove da manhã, e imaginara que isso obedecia a uma programação rígida. Ansioso, ainda argumentou que seria uma oportunidade única, se possível, para levarmos a equipe médica. Pois, a última vez em que lá estivera um médico, por poucas horas, fora quatro anos atrás.
 Nós dois nos emocionamos quando lhe respondi que seria possível ficarmos o dia todo lá, com a equipe completa, na qual um dos médicos era civil e da Secretaria de Saúde do Amazonas. A reação dele foi se ajoelhar no genuflexório e rezar em agradecimento a Deus. No que eu o acompanhei.

O tucunaré estava delicioso e a companhia do padre e seus colaboradores foi muito agradável. Ainda mais, quando souberam da ida da equipe médica à Vila Velha no dia seguinte. A conversa não se estendeu, pois eu e o Imediato teríamos de voltar logo para bordo, a fim de preparar a equipe médica para a faina pesada do dia seguinte.


As lanchas do navio e da vila, com as equipes médica e do padre, fizeram juntas o percurso até Vila Velha em pouco mais de uma hora, chegando lá cerca de nove e meia da manhã. Eu e os médicos fomos na lancha do Padre José, possibilitando a ele nos esclarecer mais sobre o que iríamos encontrar lá. A curta travessia, pelo igarapé cercado de mato, também nos mostrou a beleza da região, conforme penetrávamos nela.

Padre José costumava visitar a vila a cada duas semanas, levando mantimentos, remédios, material de higiene e limpeza, doados pelos moradores da Vila Nova, e alguma coisa avulsa que sabia necessária. Ele também transportava pessoas, indo e vindo, com o intuito, de manter os vínculos entre as vilas.

Daquela vez, a chegada de duas lanchas com muita gente, assustou os moradores, cuja reação foi se esconder nas trinta e poucas casas, recolhendo crianças e cachorros, trancando as portas e janelas.
Nosso grupo desembarcou das lanchas e caminhou para o centro de um arremedo de praça cercada por algumas casas. Ouvia-se um burburinho por detrás das janelas e portas fechadas, mas ninguém tomava coragem de aparecer. Até que Padre José começou a bater palmas, gritando o nome do líder da comunidade.

Súbito, um homem negro, grisalho, saiu por uma porta, veio mancando até o grupo e cumprimentou o padre, com um aperto de mão. Instruído pelo oficial médico que chefiava a equipe, eu também o cumprimentei com um aperto de mão. Ele se chamava Jesualdo e tinha o rosto deformado pela doença.

Em pouco tempo, estávamos cercados pelos moradores, muitos deles afetados pela hanseníase. As crianças, com aparência normal, corriam à nossa volta, muito excitadas, acompanhadas pelos cachorros. Senti uma emoção indescritível e inesquecível...

As próximas horas foram dedicadas ao atendimento daqueles pobres sofredores, cidadãos brasileiros completamente abandonados, não fora a dedicação de Padre José, um homem extraordinário.
Sob sua supervisão, todas as casas da vila foram visitadas por um dos médicos, com enfermeiro e um fuzileiro naval. Nelas, foram sugeridas medidas simples para melhorar a condições de higiene e consultadas as pessoas incapazes de locomoção. Enquanto isso, os outros médicos e um dentista atendiam às filas de pessoas, em um barracão com teto de palha.

Toda essa atividade foi objeto de um relatório, elaborado pelos médicos, a ser entregue, pelo médico civil embarcado, à Secretaria de Saúde do Amazonas, com cópia ao Prefeito do município com jurisdição sobre Vila Nova.

Da minha parte, acertei com Padre José que iria sugerir ao Comando da Flotilha do Amazonas que Vila Nova/Vila Velha fossem incluídas como parada obrigatória dos “Navios da Esperança”, quando por ali passassem, o que correspondia a duas vezes por ano,

O regresso dos participantes nessa verdadeira ação de caridade se fez com todos exaustos, porém felizes, com uma merecida sensação de dever cumprido. As lanchas chegaram à Vila Nova ao por do sol. Nós nos despedimos do pessoal da vila ali mesmo, no pequeno trapiche onde a lancha deles atracara.
O Padre José e eu nos abraçamos como velhos amigos. Ele me fez uma surpresa com o presente de um lindo papagaio bem novo, para “viver uns quarenta anos” comigo.

A corveta “suspendeu” (partiu) às dez horas da bela manha seguinte. Quando manobrávamos para “içar o ferro” (recolher a âncora), o barranco em frente foi invadido pelos moradores da vila com quase uma centena de jovens e crianças, em uniformes do colégio, agitando pequenas bandeiras verde e amarelo. Mais uma surpresa do Padre José.
 Fiz a corveta navegar bem perto do barranco, apitando várias vezes e com a tripulação acenando, em despedida.



30/10/2016

A Busca das Estrelas

imagem nasa.gov


Wilson Baptista Junior

O post “As Nossas Estrelas” do Moacir me fez lembrar de coisas desde a minha infância.
Menino de grupo, minha aspiração era viajar no espaço. Alimentada pela Columbíada de Júlio Verne, ou pelo Volundro, o foguete lunar de um livro alemão de ficção científica que li da biblioteca do meu grupo escolar (naquele tempo a biblioteca do grupo, hoje Escola Municipal Pandiá Calógeras, tinha muitos livros que eram para gente grande, provavelmente doações de pais). O Volundro (ou Wieland) tirava seu nome do ferreiro mágico da mitologia nórdica, que forjou a espada do guerreiro Beowulf – até hoje procuro esse livro pelos sebos e livrarias mundo afora, mas como não me lembro nem do seu nome nem do do seu autor vai ser muito difícil que o encontre...

O homem sempre quis atingir as estrelas, desde que, como conta o Moacir, viu pela primeira vez uma cair do céu. Ou desde que sentiu no coração a imensa falta de saber que estavam além do seu alcance.

A morte de Ícaro, que voou perto demais do sol e foi precipitado no mar quando o calor derreteu a cera que segurava as penas de suas asas, já falava desse sonho irreprimível.

Dezessete séculos depois, Cyrano de Bergerac (o verdadeiro, não o personagem de Rostand), escritor, espadachim e panfletário escreveu, para criticar as instituições e os valores de sua época, um livro que se chamou originalmente Le Autre Monde ou Les États et Empires de la Lune, e que hoje é conhecida abreviadamente como Voyage Dans La Lune.
Cyrano foi o primeiro dos escritores modernos a usar a ficção científica como instrumento para, imaginando um mundo fora do nosso planeta ou do nosso tempo, poder discutir criticamente a nossa realidade, como se a olhasse de fora disfarçada de uma realidade distante. O seu livro, publicado postumamente, é interessantíssimo e sozinho já mereceria um longo estudo, mas só falo dele aqui para dizer que Cyrano imaginou ser transportado para a lua amarrando em seu corpo uma porção de garrafas cheias do orvalho da manhã, que o calor do sol, assim como evapora o orvalho, faria subir aos céus também o nosso autor.

Mais ou menos na mesma época, o bispo Francis Goodwin publicou na Inglaterra The Man in the Moone, onde um anão espanhol voa até a lua transportado por gansos.

Em 1865 Júlio Verne publicou a primeira versão, digamos, moderna da tentativa do homem vencer o espaço, chamada Da Terra à Lua, na qual um trio de exploradores viaja para a lua a bordo de uma bala disparada de um canhão gigantesco, a Columbíada, cujo cano tinha sido fundido dentro de um poço escavado na península americana da Flórida. Esta história é notável por algumas coincidências – Verne escolheu como local de partida um local próximo do Cabo Canaveral, de onde partiria, cento e quatro anos depois, o foguete Saturno que levaria a cápsula Apolo até a lua, e as dimensões da bala de canhão se aproximam das da Apolo. Este livro inspirou o filme de 1902 de Georges Meliès, Le Voyage dans la Lune, considerado o primeiro filme de science fiction e um dos introdutores dos efeitos especiais no cinema.

Em 1901 H. G. Wells publicou Os Primeiros Homens na Lua, onde um cientista inglês chamado Cavor vai à lua numa nave construída no fundo do quintal e revestida de um produto chamado Cavorite, que segundo ele isolaria a força da gravidade.

De lá para cá uma infinidade de contos, novelas e filmes falou desse sonho. Em 1950 um filme americano, Destination Moon (Destino à Lua) mostrou um foguete atômico fazendo a primeira viagem à lua (bons tempos, em que se acreditava que a energia atômica seria tão fácil de dominar). Esse foi o primeiro filme que me lembro de ter visto num cinema, quando passou aqui um ou dois anos depois, assisti junto com meu pai num cinema lindo, antigo teatro, parte da história da cidade e que não existe mais, vítima da especulação imobiliária (para quem conhece minha Belo Horizonte, era o Cine Metrópole).

E o sonho ganhou as histórias em quadrinhos, os desenhos maravilhosos de Alex Raymond para o Flash Gordon, as aventuras do Buck Rogers, os primeiros seriados do cinema e depois da televisão.

Enquanto isso tudo era contado como sonho, um punhado de cientistas, Tsiolkovski na Rússia, Oberth na Alemanha, Goddard nos Estados Unidos, trabalhavam para transformar estes sonhos em realidade. Com a Segunda Guerra Mundial estes esforços ganharam importância, e depois dela uma verdadeira corrida espacial se instalou entre os Estados Unidos e a Rússia.
Até que, em 1957, a Rússia colocou o Sputnik em órbita, foi um frisson no mundo inteiro, as pessoas olhavam para o céu para ver se viam sua passagem. Logo depois a cadelinha Laika, que comoveu o mundo que esperava acabar o seu oxigênio enquanto ela passava sobre nossas cabeças, em 1961 Iuri Gagarin foi o primeiro humano a ir ao espaço, e por fim, em 1969, Neil Armstrong e Buzz Aldrin pisaram na Lua pela primeira vez.

Pelo caminho ficaram mortos, russos e americanos, Vladimir Komarov em 1967, quando depois de um vôo cheio de problemas e falhas de equipamento o paraquedas de frenagem de sua cápsula Soyuz não abriu e ela se espatifou no solo, Virgil Grissom, Edward White, e Roger Chaffee também em 1967, quando uma faísca no sistema elétrico incendiou a atmosfera de oxigênio puro da cápsula Apollo I que estava sendo testada em terra.

E outros depois da chegada à lua, três astronautas russos que foram encontrados mortos em 1971 em sua cápsula Soyuz depois de uma aterrissagem perfeita voltando da Estação Espacial, por um defeito no sistema de pressurização da cápsula, as tripulações americanas da Challenger, em 1986, explodida na decolagem, e da Columbia, em 2003, desintegrada na volta à atmosfera.

Lembranças duras de que os sonhos custam tanto mais quanto mais altos são.

Agora, depois de muitos anos quase parada, a busca pelas estrelas continua. Espaçonaves robôs têm chegado até os confins do sistema solar, e mais além. Talvez, quem sabe, ainda cheguemos a assistir à chegada dos primeiros homens em Marte.

O impacto espetacular de um cometa contra o planeta Júpiter, em 1994, mostrou ao mundo de maneira muito vívida o risco que corre a civilização humana enquanto estiver confinada apenas à nossa pequena Terra. Uma trombada dessas destruiria a vida na Terra e não deixaria ninguém para se lembrar de que existimos um dia, como disse Carl Sagan, nesse “pálido pontinho azul perdido no espaço”.
A colonização de outros planetas é então uma questão de sobrevivência da espécie. E hoje vários países do mundo estão trabalhando nisso. Mas o nosso sonho é maior do que esse. A raça humana só estará mais ou menos segura quando chegar a pelo menos mais uma estrela. Porque as estrelas também podem morrer. E o nosso Sol também.

Só que chegar às estrelas é um pouco mais difícil do que chegar aos nossos planetas vizinhos. Aliás, de acordo com a ciência de hoje, é quase impossível.
Desde que Einstein nos disse que não podemos andar mais depressa do que a luz, percebemos o quanto as estrelas estão longe de nós. Viajando à velocidade da luz, a estrela mais próxima está a mais de quatro anos de viagem. As outras, muito mais longe.

Fala-se em usar uma versão espacial dos antigos navios a vela, onde canhões de laser apontados da Terra incidiriam sobre as velas das espaçonaves, acelerando-as cada vez mais um pouco até atingir velocidades altíssimas. Isso é possível com a tecnologia de hoje.
Mas ainda que conseguíssemos a quantidade de energia para acelerar uma nave até, digamos, metade da velocidade da luz, gastaríamos pelo menos a mesma quantidade de energia e o mesmo tempo para freá-la na hora de chegar. Só que lá não teríamos os canhões...

Há quem diga que a solução para esse êxodo seriam as naves-colônias, espaçonaves gigantescas onde tripulações em hibernação profunda levariam futuros colonizadores sob a forma de embriões congelados, viajando dezenas, centenas de anos até seu destino.
Só que, ainda supondo que conseguíssemos construir naves capazes de funcionar sozinhas por todo esse tempo, de reanimar as tripulações ao fim da viagem, nada nos garante que chegando lá encontraremos um lugar para ficar.

Nos filmes e nas histórias a solução para a viagem mais rápida do que a luz já foi encontrada. Viaja-se pelas “dobras do espaço”, caminhos teoricamente possíveis onde a curvatura do espaço se dobra sobre si mesma, como se fossem atalhos entre as distâncias infinitas do universo. Os amigos do meu amigo Spock estão acostumados a ouvir o Capitão Kirk ordenar ao imediato entrar em “warp speed” – velocidade de dobra – as estrelas no visor parecem se esticar e pronto – logo se chega à estrela distante – “where no man has gone before”.

Por incrível que pareça, há gente pesquisando exatamente isso. E começam a aparecer algumas pequenas, muito pequenas, evidências de que isso pode ser possível. No nível subatômico, alguns cientistas já acham que conseguiram acelerar partículas acima da velocidade da luz criando um “campo de dobra” móvel à frente da partícula.

Problema resolvido? Por enquanto não, porque os cálculos desses mesmos cientistas indicam que uma nave que fizesse isso carregaria consigo uma quantidade de energia tal que a sua chegada a um planeta destruiria o sistema estelar desse planeta. Para não falar dela própria. E não é bem isso o que queremos...

Então podemos desistir?

A coisa boa da humanidade é que ela não desiste nunca... E o nosso destino, por bem ou por mal, será sempre

“To dream
the impossible dream
.......
To reach
for the unreachable star…”

Graças a Deus, nunca deixaremos de sonhar o sonho impossível nem de tentar alcançar a estrela inalcançável.


Tanta coisa que era impossível já foi feita...


29/10/2016

O Padeiro Etrusco

Padeiro - Mosaico Romano - imagem pizzanapoletanismo.,com


Antonio Rocha

Copacabana, Rio de Janeiro, uma tarde ensolarada, anos 1990. Saio do Metrô Siqueira Campos e procuro, na rua de mesmo nome, o número do edifício que vai me levar à antiguidade etrusca, aí por volta de 1200 antes de Cristo.

Em uma sala com ambiente esotérico, anuncio-me e sento-me, aguardando a hora marcada. Folheei algumas publicações disponíveis, a secretária que é a esposa do astrólogo me oferece chá, café ou água. Sorvo alguns goles de H2O, a água e não o refrigerante.

Logo ele sai lá de dentro, vestido de branco, calça e camisa, eu já sabia que ele é espírita kardecista, na vida civil engenheiro e equaciona bem as ciências exatas com as ciências ocultas.

Era o dia da leitura do meu mapa astral cármico. Eu já havia, quinze dias antes, passado lá e entregue a minha data de nascimento, horário e local.

A leitura e interpretação do mapa astral foi longa, quase uma hora e meia, mas o que me chamou a atenção é ele ter dito que, no período da civilização etrusca eu tinha sido um comerciante: “amado por muitos e odiado por muitos”.

Não sei o que fiz ou deixei de fazer na época, não me lembro. Budistas afirmam, quando atingirmos a completa iluminação, nos lembraremos de tudo. Vou então saber as coisas boas que fiz e as ruins também... coisas da vida ...

Via intuição mediúnica, deduzi mais adiante que fui um padeiro, lá na saudosa Etrúria. Alguns motivos familiares me confirmaram a intuição, desculpem, mas não vou entrar em detalhes, senão os parentes vão reclamar comigo e vão alegar que é algo pessoal.

Contente, constatei que já enrolei muito as massas (alimentícias). Também já bati muito. Lembro que lá no meu querido Gama, DF, a padaria próxima tinha um tipo de pão que se chamava “sovado”. O trigo apanhava que não era brincadeira, até chegar ao ponto. E daí descobri que sovar a massa, socar a farinha de trigo no preparo é um bom exercício psicoterápico. Se você está na bronca com alguém, em vez de bater no dito cujo, que pode ser complicada a reação da outra pessoa, você pode bater na massa que prepara o pão e, como vai ao forno, a quentura queima qualquer negatividade nesse descarrego.

Na minha década dos vinte anos, andei estudando macrobiótica, naturalismo e afins e assim aprendi a fazer pão integral, fiz alguns. Uma coisa boa é pão dormido, você pode aquecer, passar manteiga ou algo que queira e saborear este belo alimento.

Praticamente se pode fazer pão de tudo, pão com tudo, pão contudo, estou falando no sentido positivo, construtivo, nutritivo.

E o “pão de minuto da Princesa”, você conhece? Que até foi motivo de referência no livro “O Trapicheiro”, do escritor Marques Rebelo (1907-1973). Na página 462, o autor nos diz: “pão de minuto da Princesa” aparecia à mesa do café no caso de visitas imprevistas”.

Muitos falam em “pão que o diabo amassou”, mas tendo em vista que sou um místico, prefiro o “pão do anjos”, “pão da alma”, “pão das crianças”, “pãozinho de Santo Antonio”.

Outro dia, aprendi que os famosos biscoitos recheados, redondinhos e doces – que o médico me proibiu – tem como origem as hóstias consagradas... expliquei ao doutor à minha frente:

- É que eu vejo os recheados de chocolates, como se fossem hóstias ... e assim o ato de saborear a “bolachinha casadinha” é um momento solene, divinal !

-É, mas você faça outro momento solene com o Sagrado, sem o açúcar e o recheio.


Por sorte, aqui em Santa Teresa, onde moro, uma lojinha criou um quadradinho orgânico, sem sal e sem açúcar, mas com aipim que é muito bom!

28/10/2016

As Nossas Estrelas

imagem skylanders-fan.wikia.com


Moacir Pimentel

O meu Mestre Ariano Suassuna tinha grandes curiosidade e carinho pelos loucos. Dizia ele que

“Na minha família quem não é doido junta pedra pros loucos jogarem no povo”.

Segundo o grande pernambucano os loucos e os escritores têm algo em comum: a mania de olhar para o mundo além das suas superfícies e, em consequência, a capacidade de interpretá-lo de uma maneira original.
Vivemos às voltas com o real e o imaginário, a lucidez e a loucura, o sonho e o chão, a carne e o espírito. É a sinergia dessas forças antagônicas o que nos move, aquilo que nos fez escrever a evolução humana.
Enganam-se os que imaginam que vivemos em um mundo rígido de razão pura. Ele é curvilíneo, é humano e de sê-lo, é que é divino. Não existe coisa alguma nesse vasto mundo, entre o céu e a terra, que sendo hoje realidade, não tenha sido antes imaginada.

E na mesma linha de raciocínio, aposto que tudo quanto vier a ser imaginado hoje, um dia poderá se transformar em realidade. Sócrates, se bem me lembro, morreu feliz pois entendera que não sabia de NADA.
Equivocados estão, portanto, os que acreditam que o seu é o único caminho que leva à espiritualidade. Ela sempre existiu, desde que o primeiro homem em vez de olhar para o chão olhou para cima, para o alto, para além de si mesmo.

Dizem que o homem ao perceber a sua finitude, inventou Deus. Que o divino teria sido a primeira mentira humana, aquela que nos fez enterrar nossos mortos vestidos e rodeados pelos seus instrumentos de trabalho e pintados de ocre vermelho sangue, por imaginar que nasceriam em uma vida no além. Dizem que por isso os xamãs eram enterrados com as suas ferramentas de ofício: as flores, e que dessa prática talvez tenha se originado a tradição do uso de flores nos sepultamentos.
Os adeptos dessa teoria desmerecem lá atrás um detalhe importante: as inexplicáveis fagulhas da consciência e da inteligência da nossa espécie., o advento lento do nervo emergente da mente humana.
Eu sou daqueles que prefere acreditar que buscamos Deus não por conta da nossa finitude, mas por força da nossa incompletude.

A intimidade entre o homem e a natureza sempre esteve impregnada da sua vida espiritual e então não é surpreendente que as primeiras expressões artísticas humanas sejam um reflexo dessa ancestral espiritualidade.

manos en la Cueva de Santa Cruz (imagem wikimedia)


Olhando para estas mãos rupestres a gente entende porque até hoje de faz a leitura das palmas pelo vasto mundo.

Os ritmos da natureza, os seus aspectos mais óbvios, sempre atingiram a imaginação do homem, desde as nossas origens, nas quais os seres vivos estavam sujeitos a uma dança dos nascimentos, desenvolvimentos e mortes muito mais avassaladora do que a atual.

Assim que o homem ficou de pé e mais facilmente pôde olhar para cima, ele levantou os olhos para o céu nas noites escuras, e viu a lua ciclicamente a mudar, mas sempre reaparecendo sobre a terra refletida pelas águas límpidas que iluminava.
Que surpresa misturada ao medo não devem ter sentido os nossos avôs ao ver a flutuar, no mais puro azul cobalto líquido da atmosfera intocada, o disco prateado da lua, entre miríades de pequenas luzes brilhantes lhes piscando. As estrelas!

É claro que esta visão inesperada passou a ser contemplada pelos olhos de humanos pensantes com nova sensibilidade, afetividade e conhecimento.
E – quem sabe? – com uma nova angústia: o medo de encontrar-se sem aviso na presença de algo absolutamente inesperado, inexplicável, algo incontrolável e a certeza de um enorme poder, muito maior do que jamais possuiria qualquer indivíduo sobre a terra.

Porém, ao mesmo tempo, o disco de prata lunar que escondia armadilhas inesperadas e terríveis, foi também capaz de acalmar os da nossa espécie pois, em seguida, teve suas fases associadas às das mulheres - mãe, irmã, companheira – cujas carícias ora estavam presentes ora desapareciam quando elas sangravam, juntamente com a lua.
Então podemos entender como, na escuridão primordial e desde a aurora dos tempos sapiens, a lua tornou-se no imaginário humano símbolo de renascimento e portanto divina pelas suas variações periódicas observadas, como nos mostra a sua representação em forma de corno na Vênus de Laussel.

Desde a pré-história o homem percebeu que enquanto a lua mudava de forma a mulher mudava de comportamento e que a mulher-mãe ecoava os humores do astro no ritmo dos seus ciclos menstruais e que como a lua ela também tinha “fases de andar escondida e fases de vir para a rua”.

As festividades da lua na Antiguidade, além de celebrarem os cultivos e as colheitas, honravam a fecundidade que presidia a renovação periódica nos reinos animal, vegetal do mundo humano. Surgia o culto da Grande Mãe Terra.

Quanto à representação em baixo-relevo da famosa Vênus de Laussel, trata-se de uma paleolítica senhorinha de dezesseis mil anos, gravada em pedra e recentemente encontrada na entrada de uma caverna de um penhasco perto em Les Eyzies-de-Tayac, na França.



A figura feminina segura na mão direita um chifre de bisão, talvez um símbolo fálico de plenitude e da riqueza de vida, mas também uma meia-lua crescente, esculpida com sinais referentes ao mês lunar.
Com a mão esquerda a Vênus indica seu ventre porém o seu olhar se desvia para a lua crescente, talvez querendo indicar a possibilidade de estar grávida.
Tem mais: o ocre vermelho com o qual foi tingida essa Vênus provavelmente alude aos sangues do nascimento e o menstrual e o chifre tem duas séries de treze traços intercalados por uma lua nova, numa alusão às treze luas anuais e ao ciclo menstrual feminino. Assim, esta figura confirma a lua-mulher em seus aspectos de transmutação e geração de vida.

Recentemente, pesquisadores europeus têm publicado sólidos trabalhos sobre como em pinturas rupestres - como as da caverna de Lascaux, por exemplo - se encontram registrados complexos mapas celestiais que mapeiam a observação das estrelas realizada pelos nossos ancestrais.

Tem sido descrita uma pintura em especial, na qual se encontra um bisão, um homem com a cabeça de um pássaro – presumivelmente um xamã - uma segunda cabeça de pássaro e finalmente, juntando-se aos três personagens, aquilo que foi identificado como um triângulo do verão, feito a partir de constelações muito precisas, em torno da estrela polar.
Noutro ponto das paredes pintadas da caverna de Lascaux há um outro mapa das Plêiades e de outras estrelas dos céus paleolíticos. Na caverna espanhola de nome Cueva de El Castillo, mora um outro mapa celestial de quatorze mil anos atrás, com representações puntiformes.

As pegadas da espiritualidade humana estão por todos os lados. Há uma delas, forte e bela, na linguagem. Para ser mais exato na origem das palavras ESTRELA e DESEJO que, como veremos, se tornaram uma só.

DESEJO tem origem latina. Mesmo a palavra inglesa DESIRE teve a mesma origem. Assim como DESEO em espanhol, DÉSIR em francês e DESIDERIO em italiano. Todas essas pretinhas nasceram da matriz latina DESIDERIVM.
A partícula DES – bem aí no começo da palavra – designa movimento de cima para baixo. Por exemplo: DECAPITAR. O resto da palavra – SIDERIVM – significava ESTRELA. Como por exemplo no espaço SIDERAL.
Então se a gente soma DES + SIDERIVM ou DES + ESTRELA a gente tem, na moderna língua italiana, a palavra DESIDERIO a qual significa DESEJO.
Como assim? Ora, ela não deveria significar, em vez, e literalmente – ESTRELA CADENTE? Qual a razão dessa confusão nos significados?

O que é que tanta gente faz quando vê uma estrela cadente riscar os céus? Pois é. UM DESEJO. Acredito que os nossos antepassados, contemplando aquelas estrelas suicidando-se pelos céus, acreditavam estar diante do divino.
E a ele confessavam as suas penas, rogavam por misericórdia e faziam seus desejos. Portanto uma palavra nascida apenas para nominar um fenômeno da natureza passou a ter um significado muito maior e humano: os nossos anseios.
A ponto de ter obliterado quase completamente, nas línguas latinas e naquela anglo-saxônica, a memória do seu significado antigo. É como se tivesse prevalecido na linguagem humana uma impressão digital da espiritualidade, um registro verbal da crença ancestral do ser humano nos deuses!

Certa vez o Mano Wilson ponderou que “talvez pudéssemos discutir ainda mais profundamente a etimologia da palavra DESEJO, dizendo que a partícula DE, em latim, também significa FALTA, e então DESIDERIVM quereria dizer A FALTA DA ESTRELA, ou o vazio no coração quando o homem olha para o céu e vê que as estrelas estão além do seu alcance. Outra bela definição do desejo”.

É nessa história aí, na nossa vocação espiritual, na história da evolução humana, das abstrações da linguagem, da arte, da escrita, no advento de todas as tecnologias da ciência, nas conquistas de todos os nossos direitos fundamentais e liberdades, que eu consigo ver o dedo de Deus.
E, no meio do caminho, o Cristo, o Buda e tantos tocados por Deus.

Mas um Deus que, tenho certeza, se recusaria veementemente, a ser uma unanimidade, uma placa estática de direção na nossa estrada rumo à espiritualidade, nessa eterna fome que temos do divino, no impulso do homem para voar e no seu desejo de chegar às estrelas.

“O perdido caminho, a perdida estrela
que ficou lá longe, que ficou no alto,
surgiu novamente, brilhou novamente
como o caminho único, a solitária estrela.
                                (...)
De novo a estrela brilhará, mostrando
o perdido caminho da perdida inocência.
E eu irei pequenino, irei luminoso
conversando anjos que ninguém conversa”.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Brejo das almas, 1934



27/10/2016

O Legionário Desgostoso

imagem wikimedia commons


Wilson Baptista Junior

Nos meus tempos de escola de engenharia, eu tinha um amigo (digo tinha porque com o passar dos anos acabei infelizmente perdendo contato com ele), irmão poucos anos mais velho de dois colegas meus de curso e de escaladas, que gostava de colecionar coisas antigas.

Morava numa casa do bairro então tranquilo do Santo Antônio, com a mãe, os dois irmãos e a irmã. Na sala da frente havia uma estante cheia de coisas interessantes, entre as quais um antigo relógio de sol de bolso, o primeiro que eu vi, nem sabia que existia, um trabalho lindo da fábrica Casella, do final do século dezoito ou começo do século dezenove, era uma caixinha redonda de ébano, parecida com um antigo relógio de bolso daqueles de nossos avós, que quando se abria revelava um mostrador giratório de marfim montado em cima da agulha de uma bússola, com um gnomon finíssimo que se levantava com uma molinha. Em qualquer lugar que você estivesse, bastava abrir a caixinha e esperar que a agulha se estabilizasse e pronto, se houvesse sol você ficava sabendo as horas...

No barracão do fundo, centenas e centenas de livros antigos, garimpados em sebos, herdados ou ganhos de presente, uma verdadeira caverna de tesouros.

Um dia esse meu amigo me telefonou e me disse que tinha uma coisa interessante para me mostrar e queria minha opinião. Peguei o velho jipe verde sem capota, fiel companheiro de aventuras, fui até sua casa, e ele me contou que um conhecido da família dele, operador de máquinas de terraplenagem, estava fazendo um trabalho no lugar conhecido por Olhos D’Água, na saída da estrada para o Rio, que então se chamava BR-3, a mesma BR-3 da canção daquele tempo do Tony Tornado –

A gente vive, a gente morre, na BR Três...”

e esse conhecido tinha achado, a dois ou três metros de profundidade na escavação que estava fazendo no terreno, um pedaço de metal escuro e enferrujado que parecia muito velho. Sabendo do interesse do meu amigo, deu o artefato para ele.

Examinamos o objeto e percebemos que debaixo da terra e da sujeira era mesmo de metal, e parecia muito antigo. Fomos para minha casa e, na oficina de meu pai, lavamos a terra superficial e, com ferramentas de joalheiro, com muito cuidado removemos a crosta que se tinha formado. E encontramos em baixo... um sestércio romano, antiga moeda em liga de latão, que os romanos chamavam de orichalcum.

Com a ajuda da Encyclopaedia Britannica conseguimos identificar a figura do imperador gravada nele, o que nos deu a data aproximada, um ou dois séculos antes de Cristo. Hoje, perto de meio século depois, não me lembro mais da data nem de quem era o imperador, a moeda era do meu amigo e ficou com ele.

No dia seguinte, na escola, confirmamos nossa identificação com uma pesquisa mais aprofundada na biblioteca, com a ajuda do nosso amigo  "Seu" Geraldo, auxiliar de bibliotecário.
O "Seu" Geraldo era uma figura interessantíssima, um senhor ainda novo apaixonado por livros e que passava a vida feliz, mergulhado no meio deles. Os alunos costumavam brincar que qualquer assunto que se perguntasse a ele responderia com – prateleira tal, livro tal, e, muitas vezes, capítulo tal. E estava sempre pronto a ter uma boa conversa com quem estivesse na biblioteca.

A biblioteca da escola, como muita coisa vinha das bibliotecas de antigos engenheiros cujos herdeiros às vezes doavam suas bibliotecas inteiras, tinha livros sobre uma multiplicidade de assuntos muito além da engenharia. Então a formação do nosso amigo era muito mais ampla do que se poderia esperar.
A sua glória pessoal era uma vez ter encontrado um erro em um verbete na Britannica, ter escrito para lá e ter recebido uma carta de agradecimento, que guardava preciosamente, dos editores ingleses.

A notícia da descoberta da moeda, propagada por ele, causou um certo reboliço na escola.
Levamos o sestércio ao pessoal que trabalhava no reator nuclear, e eles realizaram alguns testes que, pelos elementos residuais no metal, confirmaram que deveria muito provavelmente ter sido fundida num cadinho empregado para a fundição de moedas na época, de cobre, prata e ouro.

A única coisa que nunca pudemos descobrir foi como a moeda foi parar naquele local e naquela profundidade. Certamente tinha sido perdida por alguém, muito tempo atrás.

Então, quando contávamos a história a alguém, terminávamos dizendo que uns dois mil anos atrás uma galera romana tinha se extraviado e naufragado nas costas do Brasil, e um legionário sobrevivente chegou até a Serra do Curral. Cansado, sedento, assentou-se para descansar na encosta do morro, olhou para baixo e resmungou:

“Por Júpiter, se eu tivesse chegado dois mil anos mais tarde poderia descer até Belo Horizonte e comprar dois sextários de vinho...” (pouco mais de um litro de hoje, que era mais ou menos o que se comprava com um sestércio), “mas agora de nada me serve isso”.

Levantou-se, desgostoso, jogou a moeda no chão, virou as costas e se foi.