Samaumeira (imagem Creatiove Commons) |
Domingos Ferreira
A samaumeira sustenta o céu.
(Lenda Ticuna)
Uma das mais belas e fiel descrição da Amazônia foi expressa por Euclides
da Cunha, após ter passado parte do ano de 1905 explorando o rio Purus, como
chefe de uma missão oficial destinada a estudar os limites entre o Brasil e
Peru. Com notável poder de síntese, ele a resumiu em uma única frase: “A Amazônia é o último capítulo do “Livro do
Gênesis”.
De fato, é impossível descrever, com alguma precisão, o que se passa
naquele universo mutante. Nele, a vida é uma aventura diuturna, em eterno
movimento, cujo compasso é ditado pela presença dominante do ritmo das suas
águas infinitas.
A samaumeira representa essa síntese. Ela é uma árvore gigantesca
atingindo alturas acima de cinquenta metros, sustentadas por troncos
ciclópicos, com vastas galharias avistáveis a quilômetros de distância,
sobressaindo das matas quase impenetráveis e dominantes no território
amazônico.
Cada samaumeira é um mundo vegetal, frequentado por absurda variedade de
habitantes da floresta, de onde é emitida uma cacofonia de ruídos e cantos
diversos. Grosso modo, de suas raízes aparentes até o topo das folhagens, em
“andares” superpostos, convivem o homem, vermes, roedores, répteis, mamíferos
de diferentes portes, pássaros os mais variados, borboletas e besouros diversos
e uma infinidade de mosquitos. Tudo isso, entremeado com cipós e plantas
secundárias, formando entrelaçados que se compactam nos espaços inferiores.
A Flotilha do Amazonas (FlotAm) foi criada em 1868, por decreto
imperial. Com sede em Belém, sua viabilidade decorreu do surgimento de navios
movidos a vapor, possibilitando navegar regularmente pelo rio Amazonas e
afluentes, o que era impraticável para navios a vela e a remo.
Dessa forma, ficava assegurada a presença do Estado brasileiro na
imensidão daquela área, com mais de vinte mil quilômetros navegáveis no maior
sistema fluvial na face da Terra.
Atualmente, a FlotAm está situada em Manaus e conta com nove navios, dos
quais cinco são Navios-Patrulha Fluvial (NaPaFlu) e quatro são Navios de
Assistência Hospitalar (NAsH). Tais unidades são de projeto e construção
nacional, adequados a navegar em águas rasas, de modo a atingir a maior
extensão possível dos rios e afluentes a serem navegados. São navios na faixa
de quarenta a sessenta metros de comprimento, com tripulações de cinquenta a
sessenta a homens, incluindo o pessoal da área médica.
Dois NaPaFlus são maiores, com armamento mais pesado e helicópteros
operativos. Eles receberam os nomes de “Pedro Teixeira” e “Raposo Tavares”, os
maiores desbravadores portugueses da Amazônia, na primeira metade do século
XVII, possibilitando sua integração ao território brasileiro.
Dentre os NAsHs, por óbvio, destacam-se o “Oswaldo Cruz” e o “Carlos
Chagas”, ambos projetados para atendimento médico e odontológico, incluindo
cirurgias menores. Também operam helicópteros para evacuação de casos mais
complexos.
Com esses navios, a Flotilha do Amazonas, na atualidade, executa uma
atividade intensa e regular no apoio médico aos ribeirinhos, devidamente
planejada e coordenada com as Secretarias de Saúde dos Estados, que fornecem
medicamentos e pessoal médico para esse esforço.
É uma colaboração a mais, exercida desde sempre, no atendimento das
carências incríveis e cruéis sofridas por cidadãos brasileiros muitas vezes
isolados naquela fantástica e imensa região.
Por isso, tais embarcações são conhecidas, carinhosamente, como os
“Navios da Esperança”.
Os fatos narrados a seguir ocorreram há décadas atrás, quando tive a
sorte e a honra de comandar a Corveta “Solimões”(CV 24), dentre as quatro que
então constituíam a FlotAm, ainda com sede em Belém. Elas são navios
apropriados a navegar no mar, com cascos mais fundos, o que limita sua
navegação em trechos mais rasos dos rios. Contudo, operavam nos rios maiores
com poucas restrições.
Na época, inexistiam os Navios de Assistência Hospitalar. Todo o apoio
médico aos ribeirinhos era prestado, de forma esporádica, pelas Corvetas, nas
quais embarcavam médicos, dentistas e enfermeiros e medicamentos avulsos.
Eu tinha trinta e dois anos de
idade. Um Suboficial era o único mais velho a bordo. A jovem tripulação vivia
um desafio a cada dia. Tudo era possível. E tudo acontecia...
A corveta navegava rio acima, pela margem direita do alto Solimões, como
é chamado o Amazonas entre Manaus e a fronteira Oeste com o Peru e a Colômbia. O
sol nascera havia pouco, na manhã fresca. O vigia avisou que uma samaumeira
aparecera sobre a mata da outra margem, a uma distância estimada em quatro
quilômetros
Ordenei ao oficial- de-serviço que aproasse o navio na árvore gigante e
atravessamos o rio em cerca de quinze minutos. Na aproximação, apareceu um
casario com tetos de palha, de onde se destacava um telhado mais alto, encimado
por um crucifixo, logo abaixo da copa da samaumeira.
Ao mesmo tempo, o barranco da margem começou a ficar cheio de gente,
principalmente crianças, em grande agitação. Olhei na carta de navegação e não
havia menção a esse lugarejo abandonado, pelo que resolvi que prestaríamos
assistência aos seus moradores. Foi uma das maiores surpresas em meu comando
naquela fantástica região.
A corveta ancorou no meio do canal, ficando paralela à margem, a cerca
de cem metros. Logo, arriou uma lancha que se dirigiu à uma prainha no
barranco, levando o oficial de convés, dois médicos e um dentista, além de
enfermeiros, auxiliares, soldados fuzileiros navais, e caixas de medicamentos.
Eles fariam contato com as lideranças locais, para organizar o atendimento.
No regresso para bordo, a lancha
trouxe um cidadão que foi encaminhado à minha presença, na câmara do
Comandante. Era um caboclo alto e forte, meio grisalho, queimado de sol, com um
sorriso simpático e aperto de mão efusivo, que se apresentou como o Padre José.
Em trajes civis...
A partir desse momento, surgiu uma empatia muito grande entre nós, desdobrando-se
em cumplicidade gratificante nos próximos dois dias. Padre José, em seus
cinqüenta e poucos anos, tinha uma notável história de vida, contada para mim
com simplicidade, durante nosso curto convívio.
Filho de vaqueiro, em uma fazenda
da região, fora mandado estudar em Manaus pelo patrão, encantado com sua
inteligência. Cedo, demonstrara interesse em ser padre e ingressara no
seminário jesuíta na capital.
Lá, ele se destacara de tal maneira que fora enviado a Roma, para cursar
a Pontifícia Universidade Gregoriana, onde concluíra um doutorado em Teologia,
“cum laude”. Em consequência, o designaram para servir na Cúria Romana, onde
ficara cerca de três anos, ao fim dos quais fizera “Voto de Pobreza” e pedira
transferência para sua terra, como missionário. E ali estava havia mais de
vinte anos.
Após nossa conversa inicial, Padre José e eu fomos para a aldeia ver
como ia o atendimento da população. O lugarejo ficava em uma larga faixa de terra,
entre o rio e um igarapé de água preta, com a boca grande perto de onde a
corveta fundeara.
A distribuição das casas se fazia
em três ruas paralelas ao rio, estendendo-se para ambos os lados de uma
pracinha, dominada pela samaumeira e a igreja. Esse arranjo indicava um
planejamento urbano incomum nos muitos aldeamentos paupérrimos visitados pelo
navio, o que foi confirmado pelo padre. Ali viviam cerca de trezentas almas,
das quais um terço era de jovens e crianças.
A igreja tinha forte estrutura de madeira, paredes de tijolos e teto de
telha bem alto, com a cumeeira em uma única peça de indestrutível maçaranduba,
colocada ali “com a ajuda de Deus”, e sincero orgulho do prelado. Ao seu lado,
duas edificações térreas, amplas e com várias janelas, onde funcionava uma
escola, com o nome “Esperança”, em grandes letras de madeira, fixadas no
frontal do telhado.
Do outro lado da praça, na beira do igarapé, havia três galpões,
modestos, porém organizados, onde funcionavam a marcenaria, uma oficina de
eletricidade e mecânica e uma olaria para fabricação de tijolos, azulejos e
pisos. Outro galpão, mais afastado, abrigava o grupo motor-gerador de
eletricidade da vila e tinha um pequeno píer. Ali atracavam uma lancha grande e
rústica, com pequena cabine, um “regatão” (loja/quitanda flutuante) e, também,
amarravam umas poucas igaras (canoas de um tronco).
Tudo isso, que Padre José mostrava com satisfação, funcionava em uma
atividade contínua e proveitosa. A maioria das pessoas que vinham falar conosco
era de jovens descontraídos, cujos nomes ele sabia e vidas conhecia, desde o
batismo. Alguns deles usavam bonés azuis com os nomes bordados em branco. Eram
seus “capatazes” e “ajudantes”, nas diversas atividades, com destaque para os
jovens professores/as que ele mesmo preparara, ajudados por duas senhoras
formadas em Manaus.
As aulas foram suspensas e as escolas abrigaram o atendimento médico e
dentário, com filas nas portas. O clima era de festa. Os fuzileiros navais, em
uniformes impecáveis e portando fuzis (sem munição), eram responsáveis pela
organização externa do sistema. Além disso, causavam deslumbramento para as
crianças e atraíam as moças, que os provocavam.
Essas atividades duraram o dia todo, uma vez que começaram a chegar
embarcações com gente vinda das proximidades para ser atendida. Era uma
oportunidade imperdível. Ao escurecer, o atendimento foi suspenso e as equipes
voltaram extenuadas para bordo.
Eu e o Imediato fomos jantar com o Padre José, na igreja. Ele nos
recebeu na sacristia, junto com alguns auxiliares mais próximos. O ambiente era
espaçoso e tinha uma mesa grande onde seria servida famosa peixada de tucunaré.
Antes de começarmos, Padre José
nos mostrou o escritório, em uma extensão da sacristia. Nele havia a mesa de
trabalho, uma escrivaninha grande, com máquina de escrever e uma estante de bom
tamanho, desorganizada e cheia de livros, revistas e jornais velhos. Nas
paredes, se destacavam uma fotografia emoldurada do Papa e um lindo crucifixo
de madeira e bronze, presente recebido na despedida do Vaticano.
Ao fundo, havia duas portas, uma do banheiro e outra do quarto em que
“morava” Padre José, aonde ele me levou. O pequeno cômodo, de simplicidade
comovente, tinha uma cama de solteiro, com mesinha de cabeceira e abajur.
Havia, também, o guarda-roupa e a escrivaninha, encimada por um porta-retrato
com a fotografia da família. Uma prateleira sustentava a imagem de Nossa
Senhora de Fátima, sua devoção, à frente da qual estava um genuflexório, onde
ele se ajoelhava para rezar. Para completar, havia duas cadeiras comuns, onde
nos sentamos. Padre José queria me fazer um pedido.
Ele abordou o assunto, sem preliminares, dizendo que a sede original do
lugarejo não era onde estávamos. Na verdade, ela se situava nas margens daquele
igarapé de água escura, a cerca de uma hora e meia de canoa para dentro, perto
da lagoa emendada por ele com o Solimões.
No seu retorno de Roma, Padre José fora morar lá, visando a atender à população
perdida, que vivia isolada por ser um foco de lepra, atingindo grande parte dos
moradores. Durante alguns anos, ele se dedicara a minorar o sofrimento daquelas
almas, em um esforço inaudito com poucos resultados. Inclusive, levara uma
imagem de Santa Rita de Cássia, Padroeira das Causas Impossíveis, e a
entronizara na capelinha da vila.
Até que, aconselhado por um médico amigo, que lá estivera, resolvera
fazer a mudança da população sã para aquele local onde estávamos, nas margens
do Solimões, conhecida como Vila Nova. Dessa forma, poderia tirá-los do
contágio permanente com a terrível moléstia, sem afastá-los definitivamente dos
doentes, especialmente as crianças.
Entretanto, houvera bastante
resistência à mudança, apesar dos argumentos favoráveis. Então, ele apelara
para a grande religiosidade do povo, e trouxera a imagem de Santa Rita em uma
procissão de canoas, para a qual conseguira a presença do Bispo de Manaus, seu
amigo de seminário. A medida dera resultado e, naquele momento de nossa
conversa. restava uma população de umas cem pessoas, a maioria de doentes,
ainda vivendo no antigo vilarejo.
Dito isso, Padre José me fez o convite, irrecusável, de ir com ele, no
dia seguinte, visitar a Vila Velha, como era chamada. Ele soubera que a partida
da corveta fora marcada para as nove da manhã, e imaginara que isso obedecia a
uma programação rígida. Ansioso, ainda argumentou que seria uma oportunidade
única, se possível, para levarmos a equipe médica. Pois, a última vez em que lá
estivera um médico, por poucas horas, fora quatro anos atrás.
Nós dois nos emocionamos quando
lhe respondi que seria possível ficarmos o dia todo lá, com a equipe completa,
na qual um dos médicos era civil e da Secretaria de Saúde do Amazonas. A reação
dele foi se ajoelhar no genuflexório e rezar em agradecimento a Deus. No que eu
o acompanhei.
O tucunaré estava delicioso e a companhia do padre e seus colaboradores
foi muito agradável. Ainda mais, quando souberam da ida da equipe médica à Vila
Velha no dia seguinte. A conversa não se estendeu, pois eu e o Imediato
teríamos de voltar logo para bordo, a fim de preparar a equipe médica para a
faina pesada do dia seguinte.
As lanchas do navio e da vila, com as equipes médica e do padre, fizeram
juntas o percurso até Vila Velha em pouco mais de uma hora, chegando lá cerca
de nove e meia da manhã. Eu e os médicos fomos na lancha do Padre José,
possibilitando a ele nos esclarecer mais sobre o que iríamos encontrar lá. A
curta travessia, pelo igarapé cercado de mato, também nos mostrou a beleza da
região, conforme penetrávamos nela.
Padre José costumava visitar a vila a cada duas semanas, levando
mantimentos, remédios, material de higiene e limpeza, doados pelos moradores da
Vila Nova, e alguma coisa avulsa que sabia necessária. Ele também transportava
pessoas, indo e vindo, com o intuito, de manter os vínculos entre as vilas.
Daquela vez, a chegada de duas lanchas com muita gente, assustou os
moradores, cuja reação foi se esconder nas trinta e poucas casas, recolhendo
crianças e cachorros, trancando as portas e janelas.
Nosso grupo desembarcou das lanchas e caminhou para o centro de um
arremedo de praça cercada por algumas casas. Ouvia-se um burburinho por detrás
das janelas e portas fechadas, mas ninguém tomava coragem de aparecer. Até que
Padre José começou a bater palmas, gritando o nome do líder da comunidade.
Súbito, um homem negro, grisalho, saiu por uma porta, veio mancando até
o grupo e cumprimentou o padre, com um aperto de mão. Instruído pelo oficial
médico que chefiava a equipe, eu também o cumprimentei com um aperto de mão.
Ele se chamava Jesualdo e tinha o rosto deformado pela doença.
Em pouco tempo, estávamos cercados pelos moradores, muitos deles
afetados pela hanseníase. As crianças, com aparência normal, corriam à nossa
volta, muito excitadas, acompanhadas pelos cachorros. Senti uma emoção
indescritível e inesquecível...
As próximas horas foram dedicadas ao atendimento daqueles pobres sofredores,
cidadãos brasileiros completamente abandonados, não fora a dedicação de Padre
José, um homem extraordinário.
Sob sua supervisão, todas as casas da vila foram visitadas por um dos
médicos, com enfermeiro e um fuzileiro naval. Nelas, foram sugeridas medidas
simples para melhorar a condições de higiene e consultadas as pessoas incapazes
de locomoção. Enquanto isso, os outros médicos e um dentista atendiam às filas
de pessoas, em um barracão com teto de palha.
Toda essa atividade foi objeto de um relatório, elaborado pelos médicos,
a ser entregue, pelo médico civil embarcado, à Secretaria de Saúde do Amazonas,
com cópia ao Prefeito do município com jurisdição sobre Vila Nova.
Da minha parte, acertei com Padre José que iria sugerir ao Comando da
Flotilha do Amazonas que Vila Nova/Vila Velha fossem incluídas como parada
obrigatória dos “Navios da Esperança”, quando por ali passassem, o que
correspondia a duas vezes por ano,
O regresso dos participantes nessa verdadeira ação de caridade se fez
com todos exaustos, porém felizes, com uma merecida sensação de dever cumprido.
As lanchas chegaram à Vila Nova ao por do sol. Nós nos despedimos do pessoal da
vila ali mesmo, no pequeno trapiche onde a lancha deles atracara.
O Padre José e eu nos abraçamos como velhos amigos. Ele me fez uma
surpresa com o presente de um lindo papagaio bem novo, para “viver uns quarenta
anos” comigo.
A corveta “suspendeu” (partiu) às dez horas da bela manha seguinte.
Quando manobrávamos para “içar o ferro” (recolher a âncora), o barranco em
frente foi invadido pelos moradores da vila com quase uma centena de jovens e
crianças, em uniformes do colégio, agitando pequenas bandeiras verde e amarelo.
Mais uma surpresa do Padre José.
Fiz a corveta navegar bem perto
do barranco, apitando várias vezes e com a tripulação acenando, em despedida.