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26/10/2016

A Arte de Morrer

Jacek Malczewski - A Morte (Wikimedia Commons)


Antonio Rocha

Morrer para mim sempre foi uma incógnita, um mistério a ser desvendado. Um certo fascínio do desconhecido.

Ainda criança, lá em Realengo, RJ, um senhor idoso faleceu, vizinho nosso. Nessa época o pessoal fazia o velório em casa e era uma cena esquisita, o caixão na mesa da sala e os vizinhos e visitantes nas cadeiras em volta comentando baixinho entre choros e lágrimas.

Um vizinho da minha idade, mais ou menos oito anos me disse:

- Puxa, morreu, ele era tão legal !

Fui sincero:

- Não acho não, ele não dava goiaba pra gente, as goiabas caíam no chão, se a gente subia no muro ele soltava o cachorro em cima...

Então entendi e passei a observar que, em geral, fala-se muito bem de quem já morreu, ainda que não tenha sido tão bom quando vivo.

Mas, uma das mortes mais lindas que eu já vi foi de uma senhora, também idosa, já nos seus oitenta anos e pouco mais. Foi nos anos 1990. Ela e sua família eram presbiterianos históricos, um pessoal maravilhoso que tive oportunidade de conhecer e conviver parcialmente.

Eles sabiam que eu era budista e tínhamos um bom diálogo. Eram ecumênicos, a tal ponto que, um dos filhos sendo Diácono, ele e a esposa fizeram retiro de meditação no Mosteiro Zen Budista de Ouro Preto, vieram me contar a façanha todos sorridentes. Hoje, o casal mora em Washington.

Belo dia esta senhora idosa chegou para a filha e disse:

- Olha, eles vieram me avisar que eu vou morrer no próximo domingo, depois do Fantástico.

- Deixa de besteira mamãe, parece gagá ... – respondeu a filha.

Ao longo da semana, a citada senhora despediu-se de todos os parentes e amigos. Telefonava para os mais longínquos, abraçava os de perto. Um neto até brincou.

- Pelo menos eles vão deixar a senhora assistir o Fantástico...

- Mas quem são eles mamãe? – inquiriu a filha.

- Eu não sei, podem ser anjos. Eram muitos, bem altos e bonitos e exalavam perfumes e pareciam alegres pois iam me levar para eu reencontrar meus pais e o marido que já se foi há muito tempo.

Ela morava com a filha e três netos, sendo que um desses era o Diácono que foi para os EUA com a esposa.

Todos pensavam que a senhora estava de fato ficando como a filha classificou: “gagá”... e não deram mais importância.

No tal domingo, pela manhã, todos foram ao culto. Mais despedidas, beijos e abraços. Almoçaram costumeiramente no self-service e depois foram para casa.

Às dezoito horas, a tal senhora tomou banho feliz da vida como se fosse viajar. Colocou uma roupa bonita, um perfume habitual e deitou-se na cama. Não quis ver o Fantástico, eles podiam chegar antes. Os netos saíram para o cinema e encontro com os amigos.

Lá pelas tantas, mais de vinte e uma horas, a filha que estava na sala, foi até o quarto e chamou:

- Mamãe, está tudo bem?

- Está minha filha, eles estão demorando...

- Deixa de bobagem mamãe, vai dormir.

E a filha voltou para a sala para ver TV. Terminado o Fantástico foi dormir e observou que a mãe estava bonitinha deitada na cama, respirando normal...

Desligou-se do assunto e foi dormir em seu quarto, era separada do marido há muitos anos.

Pela madrugada a filha levantou-se para ir ao banheiro. Foi, em seguida dirigiu-se ao quarto da mãe... estava morta.

Acredite se quiser.

Desculpem abordar este tema, mas considero-o importante para as nossas vidas, e principalmente como se desenrolou os instantes finais. A meu ver, uma morte belíssima.

Já que é inevitável, podemos pedir aos nossos amigos invisíveis que tenhamos mortes suaves.

Sempre considerei esta senhora idosa uma pessoa muito espiritualizada. E o Buda fala isso, se você teve uma vida construtiva, a partida também será bonita.



10 comentários:

  1. Oi Antonio,

    Meu pai sempre teve seus próprios negócios, nunca gostou de ser empregado. E a Norma foi uma de suas funcionárias. Morava perto da nossa casa, quero dizer, na mesma rua.

    A notícia correu, a mãe da Norma tinha morrido. Fui ver, quase na última casa de uma vila, dona Adelaide em cima da mesa. De 'quimoninho' caseiro. Andei ao redor da mesa uma, duas, três, não sei quantas vezes. Nada havia de interessante pra ver, fui logo pra casa.

    Continuo a não achar interessante.

    A morte é tosca.

    Costumo comparar a nossa 'hora' a uma carta a ser postada no correio. Algumas cartas estão dentro de uma gaveta, em cima da mesinha, outras já foram postadas.

    Acho que já fui postada.
    Abraço
    Ofelia

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    1. 1)Oi Ofélia, respeito o seu ponto de vista, mas em função do meu lado religioso e treinamento budista, vejo a morte de forma natural, como se fosse trocar de roupa.

      2) Pode ser que na hora H eu tenha o maior medão, mas por enquanto eu penso assim.

      3)Arrisco dizer, pelo que já li e estudei, que a morte é linda...

      4)Oportunamente escreverei mais.

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  2. Monica Silva26/10/2016, 13:57

    Costumo dizer em casa que não quero ser enterrada, façam uma fogueirinha e depois uma festa. Isso mesmo, uma festa para lembrarem de mim, com muita cerveja e comida, nada de choro e vela... assim deveria ser a vida... e a morte...

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    1. 1) Olá Mônica, faço parte da PL - Perfeita Liberdade e o fundador
      pediu que, no dia de sua morte os adeptos comemorassem com fogos de artifício. E tem sido até hoje em todas as igrejas PL ao redor do mundo, no dia 1º de agosto. No Japão comemoram no Templo sede, parece a virada do ano em Copacabana.

      2) Tem também um filme do cineasta japonês Akira Kurosawa, "Sonhos" em que as pessoas dançam na morte de um parente.

      3) Quem fica pode até ficar triste, quem passa para o outro lado descortina um "mundo novo".

      4) No filme "O Último Samurai", qdo ele está morrendo na batalha final ele descreve a sensação, uma beleza impressionante, como se uma chuva de pétalas de flores encantando o momento.

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  3. Olá Antônio, O assunto é interessante,tanto mais quanto a certeza de que vamos tratar dele mais cedo ou mais tarde. E vamos pagar caro ! O que mais me aterroriza não é quando, é o como. E o que me deixa aborrecida é a impossibilidade de partilhar a experiência. Conte mais. E queria um monte de amigos invisíveis. Até mais.

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  4. 1) Oi Ana, taí um tema que gosto muito e olha que sou bem brincalhão, bem positivo, pois encaro a morte como um fato corriqueiro.

    2) Não sou melhor do que ninguém, mas ao longo das décadas fui trabalhando o assunto.

    3) Nós temos amigos invisíveis e se vc duvida peça que eles te concedam uma resposta da presença e amizade deles, e assim será feito (não precisa crença nenhuma, só aceitar o fato da invisibilidade de alguns amigos e parentes)

    4) Peça a eles para que na reta final, eles estejam por perto, e estarão, te assessorando. Não precisa acreditar, é só sentir.

    5)Na hora H então a passagem será suave... não vamos sentir dor nenhuma, pois quem sente dor é o corpo vivo, o corpo morto não sente mais dor.

    6)E aí, do outro lado, é tranquilo.

    7)Meu amigo Buda dizia que precisamos aprender a morrer para vivermos melhor.

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  5. Moacir Pimentel26/10/2016, 18:27

    Antônio,
    Não temo a Velha Senhora e desconfio que a hora definitiva seja mesmo indolor. Temo é o período sem dignidade no qual se deixa de salvar as vidas para prolongar as mortes. E concordo com o seu amigo Buda: precisamos aprender a morrer para viver melhor. Acho que a vida é uma sucessão de perdas: da formidável infância , dos nossos sonhos adolescentes, da vontade de mudar o mundo, dos jovens e confiantes planos , da juventude, das referências, das velhas árvores , de amigos, situações e lugares. Temos que aprender a deixar ir e a respirar e a olhar para frente e a abrir espaço no HD. Senão em vez de seguir vivendo construiremos um grande cemitério dentro de nós no qual passaremos a ser nossos próprios carpideiros, meros colecionadores de filmezinhos - como aquelas listas de vídeos no Youtube das quais como uso pouco sempre esqueço a senha - arquivos do que já foi que ,de repente,alguma coisa deflagra, dando-lhes um play -@#$&@&#!
    E só então se acorda do pesadelo e rola amor, gentileza, empatia , paz , dias de sol , risos e realização. Não dá para morrer de acreditar que bonito e bom mesmo só o passado. Antes de estar pronto para a morte há que estar pronto para a vida, para o tempo presente, do jeito que for.
    Como disse alguém tentando se entender com a própria mortalidade...
    "Se tiver que ser agora, não está para vir; se não estiver para vir , será agora; e se não for agora mesmo assim virá. O estar pronto é tudo. “
    E a sábia protagonista desse seu belo texto estava.
    Abraço

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    1. 1) Salve Moacir, muito bem citado, muito bem falado, muito bem escrito.

      2)Façamos votos que todos nós, na hora H estejamos preparados.

      3) Boa semana !

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  6. A morte, segundo Machado de Assis, seria a Aposentadoria da Vida
    "Qualquer um de nós teria organizado este mundo melhor do que saiu.
    A morte, por exemplo, bem podia ser tão somente a aposentadoria da vida, com prazo certo. Ninguém iria por moléstia ou desastre, mas por natural invalidez; a velhice, tornando a pessoa incapaz, não a poria a cargo dos seus ou dos outro, Como isto andaria assim desde o principio das coisas, ninguém sentiria dor nem temor, nem os que se fossem, nem os que ficassem. Podia ser uma cerimônia doméstica ou pública; entraria nos costumes uma refeição de despedida, frugal, não triste, em que os que iam morrer dissessem as saudades que levavam, fizessem recomendações, dessem conselhos e, se fosse alegres, contassem anedotas alegres. Muitas flores, não perpétuas,nem dessas outras de corres carregadas, mas claras e vivas, como de núpcias. E melhor seria não haver nada, além das despedidas verbais e amigas...." Machado de Assis, Gazeta de Notícias, 6 set. 1896. Publicado em 100 anos de uma cartografia inacabada. Rio de Janeiro, Fundação Biblioteca Nacional, p.58-59.
    Concordo com o Mestre Machado de Assis, apenas acrescentando, que já que morrer é preciso, seguiríamos tranquilos, se deixássemos os nossos que ficam encaminhados nesta Terra de meu Deus.

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    1. 1) Olá Carlins, muito boa a referência ao nosso escritor maior.

      2)Até onde aprendi, nós podemos, do outro lado, ajudar os nossos que ficam deste lado aqui. Viraremos uma espécie de anjos da guarda !

      3)Abraços !

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