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18/10/2016

O Portugal da Minha Alma

Azulejos - Jorge Colaço - imagem AlvesGaspar (Creative Commons)


Ofélia

Tudo que vem de Portugal me fala à alma.
Menina, uma de minhas melhores amigas era a Quina - Maria Joaquina, irmã do Aurélio. Duas figuras das mais belas que conheci.

Pra mim, saíram ao pai, Sr. Fernando. Não que a mãe, dona Maria fosse feia, não era. Era pequena, sumia perto do marido. Ele sim, um bonitão. Minha cabeça de menina lembra bem.

Morávamos no mesmo prédio. De vez em quando me chamavam para almoçar com eles. A magrelinha inapetente rejeitava aquela comida feita com sangue coagulado de galinha, cujo nome me foge agora. E que eu deixava no prato. Um pecado. Hoje eu não rejeitaria.

Quina trazia no pescoço, em dias festivos, um grosso cordão de ouro português. Você deve saber a diferença entre esse ouro e o nosso.

Não havia medalha de santo pendurada, mas a foto do pai dela, Fernando, em um medalhão. Não lembro se o medalhão era de abrir ou se a foto era vista de cara. Acho que abria.

Dona Maria não enchia a Quina de brinquedos no Natal, ela ganhava roupas, belas roupas. E brincava com meu excesso de brinquedos para os quais eu não ligava. Para tristeza da minha mãe, que me enchia de conjuntos de bules com xícaras, bonecas e que tais (das bonecas eu gostava, Martinha foi batizada na pia do banheiro pelo padre Tio Francisco e minha tia costurou pra ela).

Minha brincadeira predileta era imitar a Margarida com seus bolos salgados e usar as tampas de lata de cera, fazer o bolo com barro e cobrir com papel amarelo do Óleo de Peroba, para imitar a gema de ovo que lá em casa se pincelava nos salgados.

Quina e seu cordão com o medalhão do pai está na minha foto de primeira comunhão. É a única foto que tenho dela.

Do Aurélio ficou uma outra bela foto com a minha família, na Quinta da Boa Vista, ao lado do carro e do primo querido de minha mãe, padrinho de casório. Aurélio usava sapatos com a parte de cima branca. Eram muito elegantes os portugueses.

Um dia foram embora pro Grajaú. E deixaram o apartamento para a Dona Carmen, Sr. Antonio e a filha, outra lindeza!, Esmeralda. Que se casou com um português por procuração.

Dona Carmen fez meu vestido de quinze anos. Que capricho!

Esmeralda era paquerada por todos os jovens da rua. Ia muito limpar a varanda. Às vezes se demorava mais um pouco e logo se ouvia a voz de dona Carmen: “Ó Esmeralda, estás a limpar ou... (não lembro o quê)?”

A família da Quina tinha posses. A de Esmeralda não.

Esmeralda voltou pra Portugal sozinha e casada por procuração.

Demorou não sei quanto tempo, quantos anos, não muitos, para dona Carmen cair em prantos e gritos, que chamaram os vizinhos ao apartamento dela, no segundo andar. A razão do sofrimento era o telegrama, frio telegrama do genro: “Esmeralda faleceu”. Foi triste.

Durante muito tempo, ou todo o tempo de vida, dona Carmen manteve uma vela acesa no móvel da sala, em frente a um retrato da Esmeralda.

Do outro lado da rua, na casa de dois andares da Ana, eram muitas as brincadeiras. Foi lá que aprendi a jogar buraco sob a proteção do Sr. Nelson. Foi lá que bebi quentão e cuba-libre. Foi lá que dancei valsa de aniversário e participei da brincadeira familiar (todos muito alegres). No meio da dança, o primo delas parava de dançar e perguntava de repente: “Vocês já fez cocô hoje?”

Dona Carmen se afeiçoou à menina temporã. Pra ela, gritava do outro lado da rua: “Ó Míriam, fizeste cocô hoje?”

Minha mãe dizia que meu avô materno tinha um misto de sangue português e espanhol. Que está no meu sobrenome de solteira.

Meu irmão foi a Portugal mais de uma vez. Eu não fui. Poderia ter ido conferir o dono da abotoadura de ouro (que ainda guardo), do rapaz de Coimbra, que visitou minha escola com seus colegas de capa escura.

Gostaria de ter feito como Aguinaldo Silva, que tem casa em Portugal e anda de bonde por lá.

Entardeceu pra isso.




15 comentários:

  1. 1)O prato que a Ofélia se refere, penso que é "frango ao molho pardo". Tinha um restaurante em Lisboa, esqueci o nome, que serviam "galinha de cabidela" que é o mesmo molho pardo. Eu gostava muito.

    2)Ofélia, parabéns, escreves muito bem.Prossiga !

    3)Boa terça-feira para todos (as).

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  2. Moacir Pimentel18/10/2016, 10:09

    Caríssima Ofélia,
    É sempre um prazer enorme ler um bom texto. Os seus me lembram da
    minha belíssima avó materna, sempre cheia de causos e estórias , que dizia que tudo na vida a é como um passarim pousado no dedo da gente : "tu podes até te apegar mas ele voará "(rsrs)
    No Minho de antigamente - não sei se a Quina é minhota - quando as "raparigas" passavam a usar o primeiro cordão com os "vestidos de domingar" , estavam já "fazendo lenços de amor" e prontas para namorar. Mais ou menos como era nas festinhas de quinze anos por aqui nas quais as garotas usavam vestidos tão especiais quanto aquele seu feito pela Dona Carmem e que depois quase nos levaram à loucura mansa de tanto que levamos e arrancamos delas, todos os sábados durante quatro longos anos, os nossos quatro aborrecentes.
    O mundo mudou, é verdade.
    Mas continua sendo " na vida miúda de cada dia" e do outro lado da porta, da rua, da praça, da cidade, do mar que mora a "nossa Humanidade" e se não abrirmos mão dela algum dia salvaremos esse mundão de velhos amores e tão cansado de guerras.
    Estás a ver?
    Obrigado por teclar tão lindamente
    Abraço

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  3. Dulce Regina18/10/2016, 11:46

    Querida Ofelia. É muito prazeroso ouvir e ler histórias de " antigamente ". Não é nostalgia ou saudosismo, é sim... contagiante, saudável e de uma magia incrível. Conte-nos mais...e sempre. PS: falo " antigamente " , pois minha neta qdo pequena pedia : " Vó conta historia de antigamente ? Aquelas que vcs, meu pai e tios viveram ?" o neto da mesma idade falava assim : " Vocês tiveram infância ! " . Abraços, Dulce

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  4. Olá, Ofélia, tanta ternura em lembranças preciosas! Só temos mesmo que agradecer. Ana

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  5. Ois pra vocês.

    Não sabia que o Mano editaria de forma tão bela esta minha memória dos bons tempos. Quando soube, vim logo ver. E parei meus olhos nesse tipo de composição em azulejos portugueses, que tanto amo. É uma coisa linda.

    No Alto da Boa Vista, Tijuca, onde enterrei meu melro de estimação, que ficou 18 anos conosco, cresceu com meu filho, há uma bica com esses azulejos. Não confundir com torneira. A bica não fecha, é um bico por onde verte a água que vem, entre outros lugares, da cachoeirinha.

    Faz tempo não vou lá, sequer sei se a cachoeirinha ainda tem água. Preciso voltar ao Alto.

    Depois, ver apenas Ofélia como assinatura, mexeu muito comigo.

    Faz muitos anos, num tempo onde não havia grades separando os prédios das calçadas, fui de livre e espontânea vontade conhecer um escritor após ter assistido a uma montagem que me marcou bastante.

    Fui sem avisar. A meu favor devo dizer que tentei telefonar, mas a secretária eletrônica sempre pedia um recado. Eu não sabia o que dizer.

    Uma tarde, fui visitar a tia do marido que estava doente e morava em Copacabana. Liguei de novo. Nada, a secretária atendeu. E foi ali que decidi: vou lá.

    Fui, ninguém me barrou. Subi. Toquei a campainha. O escritor abriu a porta.

    Perguntei se ele era ele. Não houve resposta a esta pergunta. Ele fez outras perguntas.

    _ Você é o Fulano?
    _ ...
    _ Sua secretária eletrônica não me deixou outra alternativa.
    _ Entra. Senta aí. Quer um pouco d'água? Tá nervosa?
    _ Não. Tõ emocionada.
    _ Quem é você?
    _ Eu não sou ninguém. Sou Ofélia.

    Ele não queria uma 'ficha', mas apenas saber como me identificar.

    Obrigada a todos vocês, pessoas tão sensíveis, inteligentes, gentis, por tudo isso.

    Sim, Antonio, você acertou. Era frango ao molho pardo, foi preciso você me lembrar o nome. (continua)

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  6. (continuação)

    Moacir, tive um melro (pássaro preto) que passou 18 anos conosco, cresceu com meu filho, eu já disse.

    Ele não ficava engaiolado todo o tempo. Nós o soltávamos dentro de casa e a preferência dele era o alto da cabeça da gente, que ele bicava em comum alegria conosco. E de vez em quando soltava um daqueles cantos inesquecíveis de um melro. Quem ouviu uma vez jamais esquece.

    E quando, Moacir, você cita sua avó, ao dizer que o passarinho voará do nosso dedo por mais que nos apeguemos a ele, sei bem do que ela fala.

    Chorei três dias consecutivos quando o melro morreu. Ele estava estranho, assustadiço, eu o trouxe pra sala, deitei no sofá e ele ficou na cadeira.

    Fui à missa. Ao retornar, chamei por ele, que havia voltado à sua morada, entre a cozinha e a área. Ele não respondeu, estava caído no chão da gaiola, com uma das patinhas presa ao pauzinho mais baixo, rente ao fundo, ali colocado para que ele não fizesse muito esforço.

    Sábia a sua avó, Moacir. As avós são sempre sábias.Tal como as mães.

    Dulce Regina, é verdade. Nós tivemos infância. Essas 'histórias de antigamente' são 'lembranças preciosas', como diz a Ana, por isso as envolvo em tanto carinho.

    Eu sei, Mano, que a lógica é o princípio da sabedoria. E, estejam certos, já cheguei lá. Não na sabedoria, mas no significado dela.

    Pensei que fosse pegadinha, Mano, vim ler e percebi que quem errou mesmo fui eu. No 13º parágrafo, quem pergunta pra Esmeralda 'estás a limpar ou.." foi dona Carmen, a mãe dela, e não a dona Maria, mãe da Joaquina.

    Agora, eu me pergunto como vou voltar à gaiola?
    Com o Melro, jogávamos um fino lençol sobre ele. Era engraçado ver aquele bichinho se movendo por baixo do lençol. Só assim o pegávamos.

    Obrigada, obrigada, obrigada, obrigada por me permitirem viajar no tempo. Muita generosidade a de vocês. Dos quais já gosto muito.
    Abraços pra todos(as).
    Ofelia

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    1. Dulce Regina19/10/2016, 11:45

      Querida Ofelia. Seus comentários saem de forma tão espontânea que viram poesia. Esse seu Melro daria um " bom caldo " num post seu, pois acho que vc deve ter muita história sobre ele. Continue... Beijos floridos, Dulce

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  7. (final)

    Enfim, essa coisa de Deus, que não se explica, percebi agora:
    O passarinho morreu no dia 20 de outubro de 1979, dia de São Lucas, que era médico e, por isso, Dia do Médico.

    Fim de um ciclo.

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    1. Ofélia, seus comentários são lindos. Aliás, tudo o que você escreve.
      E Dona Carmen já trocou de lugar com Dona Maria, no 13º parágrafo, agora cada uma está na casa certa.,

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  8. Francisco Bendl18/10/2016, 19:31

    Minha querida Ofélia,

    Deixaste-me feliz com este artigo de tua autoria publicado pelo nosso querido Wilson, um amigo e tanto!

    A presença da mulher é imprescindível, ainda mais em blogs como este, extraordinário, e dedicado à cultura, à disposição para que registremos nossos contos, casos e episódios que nos deixaram lembranças.

    Mesmo eu não sendo português ou tendo familiares deste belo país, Portugal nos encanta, e sua população se identifica muito conosco, a ponto de dificilmente não haver um brasileiro que não conheça um "portuga", seja dono de padaria ou de restaurante.

    Os modos e costumes, a religião, a simplicidade dos lusitanos nos aproximam, da mesma forma a gostosíssima culinária e seus doces estupendos!

    Para tu teres uma ideia, minha cara Ofélia, a FENADOCE, que é a festa nacional do doce, comemorada na cidade de Pelotas, RS, que leva milhares de pessoas do Brasil a visitá-la, a maioria das confeitarias instaladas pertence aos portugueses, pois foi a primeira cidade que os casais de açorianos que colonizaram Porto Alegre e lhe deram origem, residiram, em Pelotas.

    A cidade é famosa pelas suas padarias e confeitarias, herança dos lusitanos.

    Belo texto, Ofélia, e só tu mesma para me tirar do ostracismo que me encontro por causa dos meus problemas de saúde, que me exigem tempo e disposição para o tratamento que me submeto.

    Um forte abraço a ti e a todos os amigos deste blog extraordinário.
    Muita saúde e paz a todos, indistintamente.

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  9. Mano, a cabeça vai lá, vem cá. O médico disse que se eu a recupero, não tem problema. Demora um pouco, mas lembro de tudo como é de verdade, sem nenhuma confusão.

    O passarinho morreu dia 18 de outubro de 1997, um sábado. Já havia fax. Eu passei um fax importante levando a notícia no dia 20 de outubro. Daí a confusão. Por que 1979? Foi o ano em que eu conheci o escritor, xará do passarinho. Misturei tudo. Desculpa. Se der para consertar... mais uma vez obrigada.

    O passarinho morreu no dia 18 de outubro de 1997, dia de São Lucas, que era médico e, por isso, Dia do Médico.

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    1. Ofélia, eu posso mexer nos posts mas não nos comentários, o programa do Blogger não me deixa... Mas você já o consertou com o que disse acima. Foi só uma mistura de xarás, nós todos fazemos isso...

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  10. Ofélia, Navegando pela internet encotrei este blog de cultura. Maravilhoso, como gosto. No blog, encontrei você e o Bendl - que ele esteja se recuperando bem da saúde.
    Já sabia que você tem o dom de escrever bem - simples e bonito. Adorei suas recordações. REcordar é viver mesmo! Que xará simpática encontrei aqui! Um abs Se me for permitido, virei sempre aqui curtir a boa literatura.

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  11. Bye pra vocês.
    E obrigada mais uma vez.
    Bendl, estou certa de que você está bendl.
    Abraço
    Ofelia

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  12. Sou portuguesa, escritora, moro no Rio de Janeiro há 9 anos. Já tinha lido algumas publicações suas aqui no blog. Este "Portugal da minha alma" tocou-me profundamente. Parabéns! Um abraço lusitano.

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