fotografia Moacir Pimentel |
Moacir Pimentel
Ah, Portugal!
É sempre assim: vai terminando o verão por aqui e o inverno lá na
t’rrinha e depois da Semana Santa tenho que começar a driblar o banzo.
Me surpreendo navegando e salivando por sites – melhor dizer sítios - de
comidas portuguesas e fico com água na boca ao pensar em um arroz de lampreia,
em alheiras de caça – abençoados sejam os judeus! - e nas francesinhas gostosas
e suculentas e picantes lá no Santiago, no Porto.
Para não falar nas percebas recém capturadas por um pescador minhoto de
nome Jean Pierre - isso mesmo! - que as cozinha pra gente na água salgada do
mar de Santo André, onde entre as pedras colocamos algumas garrafinhas para
refrescar. A água é gelada!
Jean Pierre coze as bichinhas cuidadosamente. Quando estão no ponto, ele
prova uma, revira os olhos e suspira. Então pergunto:
“E então, estão mesmo boas?”
“Come-se, pá!”, e não nos fazemos de rogados.
– “Huumm...!”
Posso sentir o rico sabor da
chanfana - a cabra velha cozida no vinho tinto e no fogo lento - servida na
casa do noivo antes dos casórios nas aldeias.
Nos quais, depois do beijo na capela, e já na casa da noiva , come-se mariscos, camarões, picanha, patê de santola, queijos da Serra da Estrela, tanto o
curado quanto o apimentado de sabor intenso e que leva azeite do Vale do
Mondego.
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Terminou a festa, pá?
- “És tolo, meu!”
É claro que não! Após as entradas que para mim poderiam ser as saídas aparece
um prato de peixe – bacalhau à broa! – um prato intermediário – leitão assado –
um prato de carne – filé à mirandesa com batatas ao murro.
Depois tem os doces de nomes tão saborosos: fidalguinhos, natinhas,
barriguinhas de freira, minhotas queimadas, pederneiras, paciências, broinhas,
sonhos, brisas , sameiros, lêvedos, moletes, suplícios, mexidos, aletria, salames
de chocolate, travesseiros e guardanapos.
De saideira, na alta madrugada, nada como um caldo verde com aquela
chouriça especial para “aconchegar” o estômago.
Tudo isso a gente vai degustando com bons vinhos e Portos idosos e após
cada casório eu me pergunto como sobrevivi e juro que nunca mais... até o
próximo batizado.
Ainda morro... DISSO!
Ou então de uma doença contagiosa da qual padeço faz mais de trinta anos
e que se chama Ponte de Lima, a mais antiga vila de Portugal, local que
visitamos anualmente em romaria parando antes pela estrada para fotografar os
velhos solares do Alto Minho.
E a Ponte? Ela deu o nome a esta terra castiça e nasceu romana com
certeza e foi a única passagem segura para além do Rio Lima até o fim da Idade
Média. Milhões de peregrinos já a cruzaram e cruzam a caminho de Santiago de
Compostela, por exemplo.
Quem vai a Ponte de Lima quer mais é comer o seu famoso Arroz de
Sarrabulho, em qualquer um dos seus ótimos restaurantes, mas antes todos passam
lá na Rua do Rosário, bem no centro histórico da cidade, para petiscar nos
Telhadinhos, o mais pequeno, amado e desbocado boteco do pedaço.
Alguém aqui já viu o cardápio de uma tasca portuguesa? Não? Iremos
conferir em seguida mas antes devo informar que a próxima foto é proibida para
menores de dezoito anos e para “velhinhos em formação” com mais de sessenta.
E agora, já sem as crianças na sala, por favor, confira...
fotografia Moacir Pimentel |
Se faz necessária alguma tradução simultânea: trata-se de uma ementa exibida
orgulhosamente à porta da tasquinha ao lado quase da Igreja Matriz. Pense num
sagrado vizinho de um profano!
No brejeiro dialeto local a expressão “uma fodinha quente” significa uma
deliciosa patanisca de bacalhau à moda antiga. Daquelas que, segundo dizem , se
faziam, noutros tempos com muita salsa traçadinha e cebola picadinha e lascas
do peixe , para servir como merenda aos senhores padres, nos intervalos das
confissões. Já “com uma putinha” quer dizer uma malga de vinho verde tinto, de
autoria dos lavradores da região.
A tasquinha é sem dúvida um lugar festivo e no verão tem sempre uma
concertina tocando na calçada. Os pedidos provocam grandes risadas principalmente
quando são feitos pelo senhor padre da Igreja Matriz, um fiel freguês, que de
batina e feliz da vida, sempre aparece às dez horas da manhã querendo “duas
cociguinhas feitas à mão com uma putinha”.
Aliás uma “fodinha quente com uma putinha” sai mais barato que uma
“cociguinha sem a putinha” Quando a gente pergunta porquê, nos explicam
candidamente que a cociguinha - também conhecida como punhetinha em outras
regiões de Portugal - “dá mais trabalho,
por ser necessário desfiar o bacalhau à mão” (rsrs)
Deliciosos são também os bolinhos que são mentirosos pois têm mais
batata que bacalhau, as orelhinhas dos porcos que roncam, as cordonizes que são
escarrapachadas pois são cozidas abertas, os caracóis rebatizados de corninhos,
os corações de galinha alcunhados de tique-taques e servidos em terrinas
redondas, as iscas de fígado perigoso se movido a álcool e na racha porque
servidas sobre um pão aberto, o polvo à lagareira que é chupão pois mora no mar
a chupar as pedras e, finalmente, as sacolinhas de aposentado: pense em
maravilhosas e recheadas lulas.
E as quecas? Bem, antes de mais nada permita-me explicar que as
crianças, na t’rrinha, são chamadas carinhosamente de putos. Quanto as quecas, elas
são as tais malgas de vinho verde, as tigelinhas de barro ou louça - mais
parecem xícaras sem alças - que no norte de Portugal levam esta denominação. Lá
no Telhadinhos as mais pequenas são, é claro, as putinhas, as medianas são as
meias quecas e as maiores são as quecas cheias.
Caímos de boca e sem culpas na gastronomia local e terminamos enfartados
e tombadinhos e para clarear as ideias depois do regabofe eu sempre mergulho no
Lima enquanto alguém sempre me aconselha:
“Cuidado, pá , assim podes ter uma
congestão!”
Alguém resiste?
Não. Nem às águas claras do Lima nem aos doces portugueses que têm
procedência e pedigree mesmo quando não são conventuais. Um português da gema,
quando viaja , sai da autoestrada e pega estradinhas vicinais para provar os
doces das terras por onde passa.
Como não fazer um desvio na rota para se deliciar como o pão de ló
escangalhado da Póvoa do Varzim, a sericaia de Elvas, a queijada de Évora, o
creme-leite queimado de Mindelo, o Pudim da Batalha, as cavacas de Moreira, as
fatias doces e o Pudim Abade Priscos de Braga, os charutinhos de chila de Viana
do Castelo, os ovos moles do Aveiro, o bolo de noz de Leiria, os pastéis de
Tentugal, a Tarte de Amêndoa do Porto, os Fofos de Belas de Sintra e a Lampréia
de Ovos de Coimbra?
É por isso que os trezentos quilômetros entre o Porto e Lisboa – onde se
come Bolas de Berlim e os pastéis de Belém- a gente faz praí em três dias
parando para comer!!
De preferência lá na Mealhada onde ir é preciso para comer um leitão à
Bairrada. Não fazê-lo seria crime inafiançável. O sabor picante do molho e a
pele tostadinha do bichinho não saem da minha cabeça e muito menos o gosto
borbulhante do espumante bruto tinto da região que combina tão bem com o prato.
Quando chega junho aí a saudade vira obsessão e me imagino ofertando um
pote de alecrim à minha amada na noite de Santo Antônio. Em Vila do Conde,
sonho brincar o São João indo atrás dos ranchos – o do Monte e o da Praça - batendo
com um martelinho de plástico idiota nas costas dos miúdos e das cachopas e
fazendo uma parada técnica na Tânia Luz – A Princesa das Farturas! – cuja
carrinha de quitutes fica estacionada lá na ribeira do Ave - para comprar ou um
caladinho ou uma porra recheada.
E no São Pedro pra onde se vai? Para a Póvoa do Varzim cujo padroeiro é
o santo pescador. Na noite de 28 para 29 de Junho, a população reúne-se em
festa, dançando e comendo sardinhas assadas à luz das fogueiras.
Os bairros tradicionais competem entre si nas rusgas – blocos de
fantasiados atrás de carros alegóricos - e a grande rivalidade é entre o Sul e
o Norte. A população comporta-se como torcedores de futebol exaltados e com os
narizes tintos de vinho todos dançam como perdidos na defesa do bairro do seu
coração.
De volta à aldeia não se pode esquecer de deixar o saco de pano bordado
em ponto de cruz pela minha saudosa sogra pendurado do lado de fora da porta da
frente onde você pode apostar que , religiosamente , às seis horas da manhã
encontraremos o pão fresquinho e a broa de milho ali deixados pelo filho do
padeiro. Fiado!
Mas a broa de milho da minha vida foi degustada numa cozinha sombria e
esfumaçada numa velha aldeia de nome Ansião, feita pelas mãos de pergaminho de
uma senhora de oitenta e sete anos e colocada para esfriar envolta num pano de
linho defumado também bordado por ela, onde os Bês moravam no lugar dos Vês e
vice versa:
“Bai berso amigo no bento e leva veijinhos
para o meu amor”.
Em julho desejo pedalar pelas aldeias, fazer a pé as trilhas das
hortênsias à beira do Ave comendo diospiros e – quem sabe? – colhendo ervilhas
de cheiro.
Me dá água na boca recordar uma feijoada trasmontana, um cozido, um
ensopado de coelho, um arroz à cabidela, ou que tal outro favorito, servido beeem
malandrinho e de polvo?
Quero ir à Praia da Amorosa provar umas amêijoas a Bulhões Pato e
simplesmente tenho que voltar ao Jardim.
Ah, o Jardim!
É um restaurantezinho português da gema , em Melgaço, na fronteira com a
Espanha, que nós adoramos. Lá não tem ementa: ela depende do que o casal de
proprietários encontra na horta e no pomar da quinta, de manhã bem cedinho.
Eles fabricam o próprio Alvarinho- uma maravilha! - e a melhor bagaceira
desse mundo.
As portas do restaurante são abertas pontualmente ao meio dia e há mais
de trinta anos eu pergunto ao cara antes de entrar:
“E aí pá, o que vamos comer?”
E ele sempre me responde sorrindo manso:
“Alguma coisa há de ser”.
E eu como chorando seja o arroz de lampreia, o maravilhoso cozido, o
bacalhau com feijões vermelhos, o que vier e haja Alvarinho e tome bagaceira e,
proibido de conduzir, volto para casa no banco de trás, cantando todas as
canções da minha vida.
Borracho!
Em agosto tudo o que quero é ir para a Maia pescar. É bom demais sentir
o cheirinho dos pinheiros e dos eucaliptos enquanto se tenta pegar uns
peixinhos. Melhor ainda, é ouvir as histórias de pescador do jovem filho de oitenta
anos do velho Senhor Alferes, fazendo um piquenique português à beira do riacho
do antigo moinho.
fotografia Moacir Pimentel |
Em sentido horário começando do canto esquerdo: broa de milho, empanados
de porco, frutas secas, pataniscas de bacalhau, filetes de pescada, delícias do
mar, pastéis de chouriça, folheados de queijo. No centro: empadão de frango,
salada de feijão verde com atum, melão com presunto da Serra e croquetes de
carne. Só faltou fotografar a sobremesa: cerejas, doce de abóbora que fica um
“mimo” com requeijão e aqueles biscoitinhos de nome matrafões e a água‑ardente de zimbro.
A sesta é melhor ainda!
Desejo no final dos dias cortar a lenha grossa em pedacinhos, para o
estoque de inverno dos meus cunhados. Com eles aparar as sebes dos jardins e
depois, ao ar livre, morrendo de calor, tomar o verde vinho do Minho, comer
rissóis de camarão e gargalhar de toda e qualquer asneira humana, especialmente
das minhas.
“Vamos brindar com vinho verde
Que
é do meu Portugal
E o
vinho verde me fará recordar
A
aldeia branca que deixei atrás do mar...”
Amei! Uau, que delícias e como você escreve bem, Moacir. Dá vontade de estar lá mastigando as comidas e doces. Eu estou rindo das suas 'asneiras' até agora. É linda a alegria que você divide com a gente falando de coisas simples que não tem preço. Perfeito o seu artigo e fique certo que vou descobrir que gostinho tem o seu verde vinho. Um brinde a vida!
ResponderExcluirMoacir,
ResponderExcluirO que os seus artigos sobre outros países tem de maravilhoso é que em vez de visitar você viveu os lugares e as culturas por onde passou. Então a sua escrita é vivaz e cheia de cor. São informações que não se lê em lugar nenhum porque são suas. E o que chama a atenção é a generosidade com a qual você as compartilha. Por favor nunca deixe de escrever.
Um abraço para você
Fantástico o arrazoado. Meus sinceros parabéns pelo bom humor
ResponderExcluirOlá, Moacir. Não posso comentar, fui excluída por ser uma velhinha em formação com mais de 60! Até mais.
ResponderExcluirAaaaaaiiiiiii...quase não posso escrever de tanto rir. Sério...meu amigo. Entrei na farra com você. Senti o sabor de todas as delícias portuguesas com destaque para patanisca de bacalhau acompanhada com vinho verde e a cociquinha- que dá trabalho prá fazer e se bem feita é deliciosa. E os doces ? Mãe do céu ! Me acuda ! São divinos ! O leitão à Bairrada também tem destaque na nossa degustação. Imagino as festas de casamento e batizados dos putinhos, a alegria deve ser contagiante, e você narra de um tal jeito- com direito até ao sotaque - que eu viajo, como, bebo, brinco, divirto-me como se lá estivesse. Isso é VIVER ! " Comer, Rezar e Amar ". Como o título do romance de Elisabeth Gilbert. E se conseguirmos " MORRER DISSO ! " seria a melhor morte. Continue amigo a brindar-nos com vinhos verdes SEMPRE, acompanhando suas pretinhas. Abraços sorridentes e felizes, Dulce Regina
ResponderExcluir1)Excelente artigo, nota 10, Moacir é um grande escritor/cronista/jornalista/fotógrafo.
ResponderExcluir2)Eu e Heloisa moramos alguns dias na quinta de uns amigos em Ponte de Lima, até hoje eu lembro daquele local. Heloísa grávida e o cuidado que eles tinham com o "casalinho" (casalzinho), um carinho impressionante.
3)Por essas e por outras amamos Portugal eternamente.
Oi Moacir,
ResponderExcluirTodo mundo que gosta de comer tem alegria de viver. É o que você deixa claro no seu texto. E sabe disto.
Obrigada, porque eu sorri com as 'fodinhas quentes' e outras gostosuras portuguesas.
Abraço
Ofelia
De volta...Moacir esqueci de falar sobre a canção e vídeo do link postado. Uma verdadeira jóia da música lusa, que transmite toda saudade sentida de Portugal e fez-me lembrar da minha mãezinha - filha de português - e que adorava ouvir canções da t'rrinha. Escolheste muito bem. Abraços, Dulce
ResponderExcluirSensacional o relato do Moacir!
ResponderExcluirCaríssimos,
ResponderExcluirDevo confessar que tive sérias dúvidas sobre esse post que terminou sendo publicado graças ao incentivo de minha mulher que me dizia que Os Telhadinhos são parte da nossa querida Ponte de Lima e que seria hipocrisia conversar sobre a cidade pulando o notório cardápio. Com ela concordou o nosso Editor cujas coragem e honestidade - a intelectual inclusive - como sabemos, são inabaláveis. O texto mostra um Moacir que talvez vocês não tivessem ainda lido nas entrelinhas de outros posts notadamente de arte. Dizia a sábia mulher que ajudou minha saudosa mãe a criar a prole , se referindo a mim:
"Graçasadeus, esse minino nasceu com o riso frouxo. Senão daria muito trabalho com a cabeça sempre enfiada nesses livros."
Então como a Mônica observa gosto de asneiras , de jogar conversa fora , de rir , das coisas simples e pequenas compartilhadas.Por onde passei me sentei à mesa , dividi o vinho e me misturei com a paisagem , como teclou a Flávia. Sempre precisei de gente, gostei de gente e quanto mais estranha fosse melhor porque fazia parecer menos estranhas as minhas caraminholas. É claro que tem dia que é noite e tem noite cumprida mas aprendi que tudo passa e portanto tento não perder a humildade , a perspectiva e o bom humor mencionado pelo Márcio. Gosto muuuito de comer sim mas bem maior que esse bendito apetite é a curiosidade , a fome de aprender, de conhecer novas paisagens - inclusive as minhas - a fissura de ver, tocar, cheirar e comer a vida. Sempre em formação mesmo do alto dos meus valentes 61 anos e já familiarizado com as minhas estranhezas continuo comentando-as , decerto por ter muuuuito menos juízo do que a nossa tão estimada Donana(rsrs) Não, minha amiga Dulce, não morremos DISSO mas espero que possamos viver ISSO até o fim da linha onde chegaremos caindo aos pedaços , desgastados , tombadinhos mas dizendo a quem já nos espera : Galera! Pense numa viagem!
Da qual o que fica eternamente são os bons momentos como os vividos pelo meu vizinho Antonio e a sua Heloísa - o casalinho grávido - e os sorrisos da Ofélia tão bem vindos e a música grande ou pequena e o bem que fazemos como aquele protagonizado pelo velho Luís no vídeo minhoto apreciado pela Dulce,que deixou para trás a sua aldeia branca para fazer feliz o pai, a mãe e a noiva e o CÃO também (rsrs)
Agradeço a todos vocês pelos tempo, leitura ,comentários, carinho, e até pelos exageros - menos Carlos! - e termino brindando-os com o verde vinho das palavras de um bom português
"Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama e bebe
O mais é nada".
Ricardo Reis, in "Odes"
Abraço geral
Menino Pueril sua resposta para os comentaristas dá quase um post, de tão poética que é, Você tem razão quanto a VIVER lindamente, apreciando e nos deliciando com tudo isso. Meu italianinho adorou ! Olhe : já enviei-lhe os desenhos de Michelangelo que você pediu. OK ?
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