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01/10/2016

A Velha Nápoles


Baía de Nápoles (imagem orangesmile.com)


Moacir Pimentel

Lá estava a cidade para além da janela do nosso hotel. Vista de cima Nápoles nos parecia perdida no azul do golfo pontilhado de ilhas. Na verdade o azul era uma das cores mais características daquele cenário. Azul era a cidade que nos seus primórdios fora um pequeno povoado na colina de Pizzofalcone no século VI AC batizada de: Partenope. Porém, assim que seus habitantes a fizeram crescer colina abaixo ela adotou o pseudônimo grego de Neapolis - a Nova Cidade.

Foi a baía, é claro, aquilo que primeiro nos fez suspirar pela cidade, encantados com esse panorama que se estendia desde a grande massa do Vesúvio, passando pela Península de Sorrento e abraçando Capri, sempre perseguindo o horizonte como a um fantasma.

Johann Wolfgang von Goethe, apaixonado tanto por Nápoles quanto por sua bela amante napolitana, popularizou a frase

"Ver Nápoles e depois morrer".

Mas Goethe não estava apenas falando sobre o mar. Ele amava a cidade, o caos entusiástico do seu centro histórico e a sua capacidade de ser extravagante em tudo, da tristeza à arquitetura, do amor às pastelarias.
No seu livro Jornada para a Itália ele descreveu uma Nápoles bela e terrível, tragicamente dividida por lutas internas e externas, entre as águas do Golfo e os humores do vulcão, amaldiçoada mas inimitável.

O poeta talvez confundisse as coisas, cometesse metonímia, trocasse o produto pelo lugar, falasse da cidade em vez da mulher amada, mas o certo é para ele Nápoles era como uma mulher “extrovertida e misteriosa, altiva e insegura, indecisa e soberba, que na sua totalidade mostrava a luz, mas que sempre se protegia na sombra”.

Depois dessa paisagem que ilustra o post, a segunda coisa napolitana que nos encantou foi o incrível spaghetti alle vongole que almoçamos numa cantina na costa mediterrânea, complementado por alguns mariscos preparados sobre um grelhador a carvão.
E o vinho da casa!
De sobremesa – além da onipresente sfogliatella - foi fascinante apenas observar as pessoas em meio à prática palpável do Carpe Diem, de viver o momento e chafurdar nos prazeres da vida, porque quem sabe o que vai acontecer amanhã?

Naquela tarde nos pareceram belos os rostos, os sorrisos, as conversas, o gestual - mesmo a saudação mais normal nos parecia encenada num palco! - a beleza da arte do povo, os feitiços e magias dos alimentos e produtos manufaturados, as ansiedades do bairro espanhol.
A cidade nos cantarolava sim, mas conservava uma reserva, uma duplicidade inescrutável, que era imensamente sedutora.
É disso, do caráter de um povo, do charme de suas contradições que falam tantos poetas e mesmo a Sofia Loren que em vez de italiana é napolitana.

Para conhecer Nápoles só há uma maneira: caminhar. Só assim, batendo pernas pelo seu coração, se pode capturar a essência da cidade. E como caminhamos naquela semana.

Chiaia (imagem placeaholic.com)

A falta de turistas foi, ao mesmo tempo, um mistério e a maior alegria que a cidade nos deu. Que maravilha não ter que enfrentar a eterna crise de gestão de multidões que caracteriza Florença, por exemplo. Imagine a Galeria Uffizi ou a Capela Sistina vazias!
Uma benção de Deus!

Porém... a abençoada Nápoles fazia as conservadoras Florença e Roma parecerem conventos. Em Nápoles as vozes eram altas, as discussões turbulentas, as comidas fabulosas, o transporte atroz, a arquitetura gloriosa, os rituais religiosos estranhos.

As descascadas paredes de Nápoles que nos diziam tanto sobre a cidade nos pareceram dedicadas à paixão e à morte, da qual falaremos depois. Para já, devo dizer que a paixão estava no ar, em todas as esquinas - casais namorando, beijos cinematográficos, paqueras rolando, olhares atrevidos, azaração correndo solta e declarações de tirar o folêgo escritas nas velhas paredes:
Te amo, Giovani, Você é meu destino, Luigi, Case-se comigo, Enrica, Eu sonho com seus beijos, Loredana, Espere por mim, Maximo, Morro sem ti, Carlo, Não me deixe, Emilia

Bem que dizia a canção da minha infância:

... Scuzza me, but you see, back in old Napoli... That's amore...

Pois foi nessa atmosfera inebriante, que nós caímos de amores pela cidade. Tudo bem que ninguém acusaria o antigo centro histórico de ser bonito, mas ele é escuro, encantador, cru, apaixonado, secreto, generoso, dilapidado, glorioso, vibrante e descaradamente corrupto e corruptor.

Não podíamos nos esquecer da Camorra! Mas de nada nos valeram os receios. Nos apaixonamos pela teatralidade, o caos oriental das ruas, a arquitetura que misturava os gregos antigos com o barroco mais delirante. Adoramos as iguarias gordurosas – seriam poucos dias! - as vogais napolitanas tão sensuais, os bares lotados onde o café é servido zuccherato, as sobremesas delicadas estourando de creme, o barulho dos fornos de lenha, os espelhos bisotados e a beleza da atmosfera belle époque do Café Gambrinus, a extravagância da casa de Ópera - a mais antiga na Europa- onde Verdi foi diretor musical e um desconsolado napolitano chamado Caruso foi tão parcamente aplaudido que jurou nunca mais botar os pés e soltar o verbo por lá.

 Em 1990, o coração desta cidade, os antigos bairros do centro, os palácios em ruínas, as ruas anárquicas, não tinham sido ainda higienizados pelas lojas de marca e bares da moda. Nápoles era teimosamente gasta e desbotada quando isso ainda não era chique.
Em Nápoles, as jóias mais valiosas estão profundamente conectadas com a alma da cidade como o Castello Aragonese que visitamos naquela primeira tarde, dominando toda a Baía de Pozzuoli, ou o Lago D'Averno rodeado por ruínas romanas, ou o Palazzo Donn'Anna onde moram os fantasmas de dois pobres amantes cujo romance terminou em tragédia.
Porém, o estilo de vida mais essencialmente napolitano morava a noroeste do porto, no bairro espanhol da cidade, onde as ruas - abertas no século XVI para os quartéis militares espanhóis fora dos muros da cidade - eram incrivelmente estreitas e frescas no verão com seus edifícios de cinco andares e altas janelas e varandas onde tinha sempre alguém gritando alguma coisa.

Nessas vielas apertadas, a vida – flertes, brigas, conversas, discussões, jogos amorosos – acontecia. Todos caminhavam e pilotavam suas motos e carros e comiam croquetes e sanduíches e iam em frente, considerando os semáforos meras decorações e ignorando as faixas de pedestres, que serviam apenas como territórios anárquicos onde os caminhantes berravam... porca miseria!... e os motoristas que se aproximavam faziam contatos visuais furibundos e metiam a mão nas buzinas antes de avançar como se não houvesse amanhã.
Os taxistas napolitanos por sua vez, consideravam os sinais vermelhos como uma afronta à sua masculinidade. Eles tinham certeza de que não chegariam a lugar nenhum, a menos que dirigissem sobre as calçadas ou na contramão e buzinassem a cada garota bonita que invadia os seus campos de visão, inclusive a periférica.
A cena “familiar” mais comumente vista em Nápoles era uma moto zunindo por uma rua estreita dispersando os moradores ou fazendo-os beijar as paredes. Sobre as vespas tinha sempre um papai na frente, uma mamãe na traseira, um miúdo espremido entre os dois e todos eles sem capacetes mastigando alguma coisa.
Aliás comer um daqueles sanduíches era uma aventura imperdível. O dono da padaria – estabelecimentos maravilhosos influenciados por costumes franceses, espanhóis e austríacos - depois de nos forçar a provar a baba e uma sfogliatella – a quinta do dia! - nos demonstrava em detalhes o quanto era fresco o seu pão e sobre o mesmo ia empilhando os componentes: no primeiro pavimento, o salame, por cima uma bola de mozzarella, no terceiro piso um tomate cortado com precisão cirúrgica e, por fim, amorosamente, colocadas uma a uma, as azeitonas e uma avalanche do melhor azeite.
Muito pouca grana depois e um sorriso mais tarde num banco de rua adequado debaixo daqueles varais que pingavam em nossas cabeças, aqueles onde os ventos transformavam as roupas já secas em balões coloridos, qualquer um chegava ao paraíso desfrutando um almoço napolitano acessível e memorável.

(imagem siuvanaskayoblog.com)


Lembro do nosso espanto quando descobrimos que no Museu Arqueológico de Nápoles morava uma coleção de artefatos romanos de Pompéia, Stabiae e Herculano dez vezes maior do que se podia ver in situ naqueles destinos arqueológicos.
No mezzanino, dois dos mais belos mosaicos de Pompeia, por exemplo, estavam à nossa espera: aquele - fugido da Casa do Fauno - que retrata uma batalha entre os exércitos de Alexandre o Grande e Dario da Pérsia - e o estupendo Airone e a Serpente, retirado da Casa dos Epigramas.

Airone e a Serpente (imagem wikimedia)

 

Pudemos ainda dar uma olhada no tal do Gabinetto Segreto, a câmara controversa e proibida, que guardava literalmente sob sete chaves uma rica coleção de pornografia proveniente das escavações de Pompéia e Herculano.
Mamma mia! Tais itens eróticos quase que foram destruídos no século XIX por terem sido considerados demasiado obscenos para serem expostos ao grande público. Só tivemos acesso ao acervo porque minha senhora sempre carrega consigo uma carteirinha mágica que lhe garante franquias e descontos em museus: a de historiadora de arte.
Ficamos sabendo que nos anos de chumbo até as Vênus nuas, coitadas, haviam sido emparedadas. Sequer me atrevo a pensar no que podem ter sofrido todos aqueles alegres tintinnabuluns, objetos que nos explicaram, perfeitamente, a origem da expressão “c@r@lho de asas”.
Para os antigos gregos e romanos, o falo era um símbolo de prosperidade, fecundidade e boa sorte e portanto tinha lugar garantido em estátuas e lâmpadas de óleo, em vasos e pinturas, em pratos e nas paredes.
Antes que o mar de lava e a cortina de cinzas descessem sobre suas cabeças, nos pareceu, diante da inusitada coleção, que os habitantes das antigas cidades do sul da Itália eram gente muito brincalhona.
Representações de atividades sexuais faziam parte da decoração de forma geral e irrestrita e a arte erótica corria solta nos lares e jardins e bordéis de Pompeia e Herculano. Vimos trios, quartetos, quintetos do que nos pareceu ser um fervoroso culto panamoroso, nas esculturas, nas cerâmicas, nos afrescos, em cenas mitológicas protagonizadas por ninfas ágeis e acrobáticas, sátiros galopantes e detalhes anatômicos do corpo masculino de onde balançavam, meigamente, sininhos de vento.

E o tempo todo pouquíssimos turistas à nossa volta em pleno verão. Em Roma, Florença ou Veneza, multidões indecorosas ignorariam os avisos de “É Proibido Fotografar” e clicariam todas aquelas estranhezas e maravilhas. Mas ali em Nápoles, nos vimos praticamente sozinhos naquele Museu – à exceção de um casal jovem, de braços e, possivelmente, o futuro, intimamente entrelaçados.

No museu, de quebra, admiramos obras da mais alta qualidade produzidas em épocas gregas, romanas e renascentistas entre as quais se destacavam os impressionantes mármores Farnese, cópias romanas de esculturas gregas clássicas, na verdade as únicas pistas que temos hoje, as únicas indicações sobreviventes de como eram as maravilhas esculpidas pelos mestres gregos.
O piso térreo era dedicado aos mármores, incluindo o Hércules Farnese, uma estátua colossal de mais de três metros de altura encontrada nas Termas de Caracalla, em Roma, e o Touro Farnese, o maior grupo esculpido da antiguidade de que se tem notícia,

(imagem wikimedia)


que retrata o mito de Dirce sendo castigada pelos filhos de Antiope, a mulher que ela tratara cruelmente e condenara à morte.
No segundo andar, ao lado do Atlas Farnese, moravam os bronzes de Pompéia e de Herculano, que por qualquer motivo que nos escapou foram tratados de modo diverso pela pátina do tempo: nos primeiros a oxidação era verde, nos últimos ela fora escura.
Mas quem roubava o show – pedindo desculpas pela indelicadeza à enigmática Artemis - era mesmo a Venus Kallipygos.


(imagem zbrushcentral.com)


                 Do Museu, movidos a café expresso, saimos à procura do silêncio profundo e antigo de um mundo perdido no subsolo. Nápoles fora construída em cima de tufo, uma pedra macia e vulcânica, e durante os últimos 2.500 anos, dos gregos antigos até hoje, os seus moradores fizeram uso deste tufo, escavando câmaras e cavernas e passagens sob a cidade.
Nas catacumbas de Nápoles vimos de tudo, desde antigos anfiteatros gregos a aquedutos romanos, desde câmaras funerárias pagãs a estradas romanas, desde mercados medievais a catacumbas cristãs decoradas por afrescos desbotados, desde abrigos antiaéreos da Segunda Guerra Mundial a valas para os indigentes da peste e do cólera da Idade das Trevas. E vigiando as portas do submundo...

(imagem revolart.it)

 um Pulcinella fugido da commedia dell'arte do século XVII para se tornar popstar das marionetas napolitanas.

Como se fossem metáforas da complexidade de suas múltiplas camadas, sob as calçadas napolitanas existem vastos mundos subterrâneos. Embaixo de nossos pés havia outra cidade e para escorregar até lá e de volta no tempo só precisavamos dar alguns passos. Do nada eis que sugiam becos à direita e, sob arcos medievais, degraus à esquerda ou depois de uma tenebrosa esquina.
Descendo-os caminhávamos por ruelas romanas de dois mil anos mas nos víamos refletidos nos vidros de uma padaria, de uma loja de vinhos, de uma lavandaria e de um banco modernos. Nas paredes dos túneis subterrâneos vimos desenhos infantis de bombas e aviões, ao lado da palavra "Socorro". Nos antigos abrigos antiaéreos vimos souvenirs da guerra: carrinhos de brinquedo e camas, uma máquina de costura e um rádio. Enquanto Pompéia era inundada por bárbaros, era uma delícia estar ali quase sozinhos com o mundo antigo, ainda que, às vezes, ele fosse tão triste.

Voltando ao nível da rua e ao século XX, meninos chutavam uma bola de futebol de encontro a paredes do século XII, meninas lançavam olhares de desprezo aos rapazes que babavam enquanto carregavam os livros das malvadas e uma vespa era deixada solitária apoiada frente a uma parede pichada por arte, depois de ter transportado corajosamente um sofá, um piano ou qualquer outra coisa que ousassémos imaginar.

Depois desses mergulhos subterrâneos, era sempre um contraste bem vindo voltar para o século XX em Scaturchio, por exemplo, na Piazza San Domenico Maggiore, para os sons das buzinas impacientes, dos cães latindo e das motos barbarizando, para a paisagem solar e agitada, para sentar em uma mesa ao ar livre e tomar um sorvete, rodeados por gente que mantinha um olhar atento nos seus pertences, tagarelando sobre comida e política e futebol, mas sempre ligados, antes de descer a Via San Gregorio Armeno, famosa pelas lojinhas que fazem e vendem os lindos presépios napolitanos e uns bonequinhos feios que enlouquecem as mulheres e os cartões de crédito.

Uma banda de repente explodiu na esquina mais próxima com instrumentos de sopro estridentes e o rufar de tambores. Homens fortes banhados em suor carregavam estandartes da Madonna enquanto as senhoras distribuíam santinhos com fotos de alguém recentemente falecido. Finalmente caiu a nossa ficha: os músicos arrecadavam dinheiro para o morto. Parentes, amigos e passantes colocavam moedas em um chapéu.  

Era como se Nápoles padecesse de duas obsessões: eros e tanatos.Entre as declarações de amor eterno nas velhas paredes rebocadas a gente lia avisos de mortes recentes, fotos de desbotados defuntos, anúncios de sepultamentos, missas de sétimo e trigésimo dias.

No meio do caminho ao longo da Via dei Tribunali - a antiga rua romana que corta o centro histórico - nós finalmente achamos a igreja dos mortos. Hera brotava da fachada escura de Santa Maria delle Anime del Purgatorio ad Arco e crânios de bronze moravam empoleirados em plataformas abaixo de grades de ferro assustadoras. Enquanto subíamos os degraus, um frio nos descia pelas espinhas... aquilo mais nos parecia o castelo do Conde Drácula.
Na parte de trás da nave da Igreja, um religioso abriu um alçapão e nos levou por um lance de escadas. Na parte inferior encontramos outra igreja, uma réplica da de cima. Nesta igreja subterrânea as paredes eram cinza e sem adornos, é claro, afinal estávamos no domínio dos mortos.

(imagem francescorafaelle.com)


O Cimitero delle Fontanelle é uma caverna escavada na pedra onde moram centenas de crânios e ossos humanos que são organizados de forma particularmente pitoresca.
Este lugar nos contou a história de uma prática muito comum nos tempos antigos: o costume medieval de rezar para uma alma no purgatório em troca de um favor. Os crentes adotavam um crânio qualquer e rezavam pela alma do seu antigo proprietário até que as graças almejadas lhes fossem concedidas - maridos, fertilidade, boa sorte, saúde, dinheiro e por aí vai. As viagens do purgatório para o céu das pobres almas eram agilizadas graças às orações. Estavámos diante de uma barganha espiritual colossal!

Crânios olhavam para nós dos nichos nas paredes entre ninhadas de ossos. Em torno deles havia pedidos, cartas, santinhos, fotografias, flores e folhas mortas, jóias de plástico. Em um canto distante, uma jovem apertou a testa contra a parede de pedra murmurando os segredos do seu coração para o seu mortinho de estimação.

Tradicionalmente, descobrimos depois, esta sui generis catacumba fora um local reservado para o sepultamento dos indigentes anônimos, daqueles que morriam para sem família para sepultá-los.

O Vaticano interveio para pôr um fim a essa glorificação indecorosa dos pobres, salientando que os fiéis tinham mais é que frequentar a Igreja lá em cima, orando direitinho para os santos, os apóstolos, a Virgem e tal. O Papa chegou a proibir o escambo de favores em 1969. Mas estávamos em Nápoles, um bastião resistente à autoridade, e os fiéis continuaram rezando lá embaixo.
A jovem tinha terminado suas orações e começou a subir as escadas bem ao lado de minha mulher que lhe perguntou por que rezava com tamanha fé. “Por amor”, foi a resposta.

Depois da escuridão do submundo, o claustro octogonal do Mosteiro de Santa Chiara mais nos pareceu um parque de diversão do que um local de retiro para solenes freirinhas.

(imagem eventinapoli.com)



 Os azulejos majólicos feitos nas oficinas de Capodimonte, com cores vivas e desenhos de frutas e flores e folhas, cobriam alegremente as muitas dezenas de colunas que cercavam o claustro e revestiam seus longos e convidativos bancos. Em contraste com as cenas do Velho Testamento, nos afrescos pintados no século XVII que decoravam todas as paredes.

E depois? Os castelos, o Porto, um Vesúvio em Erupção pintado por Andy Warhol e a Danäe de Ticiano, e mais obras de Raphael, Botticelli, El Greco, Bellini, tudo isso noutro Museu, o de Capodimonte.
O Palazzo Reale di Capodimonte tem uma pequena joia que sempre encanta os corações femininos, pelo menos aqueles que conheço: a sala - o Salottino di Porcellana -  da Rainha Amália, completamente coberta por ornamentos de porcelana que, segundo as minhas especialistas é bem mais bonita do que uma prima mais simplória que mora no Palácio Real de Madri.

Não dava para conhecer Nápoles às pressas até porque o ritmo da cidade é lento. Poucas lojas abrem antes das dez horas da manhã, tudo fecha novamente ao meio-dia e reabre às três ou às quatro horas e va bene. Além disso fomos à bela Capri e a Sorrento porque gostamos do mar e...

Chi ha girato tutto 'o munno, nun l'ha visto comm'a ccà

Então no último dia, tivemos que escolher entre visitar uma tela de Caravaggio ou a Capella Sansevero. Penso que fizemos a escolha errada mas a capela é interessante – muitos diriam bizarra! - repleta de esculturas do período barroco tardio, entre as quais a mais famosa, de Giuseppe Sanmartino, é o Cristo Velado uma obra-prima de expressão - mesmo através do véu que cobre o rosto.


Giuseppe Samartino - O Cristo Velado (imagem Liberonapoli - Wikimedia)



Ao redor da capela moram estátuas representando as virtudes. Não pudemos deixar de notar a de uma jovem que se chaha A Castidade, assinada em 1750 pelo escultor Antonio Corradini sobre o túmulo de Cecilia Gaetani dell’Aquila d’Aragona, a mãe do príncipe idealizador e dono do inusitado espaço.

A bem da verdade a moça não nos pareceu nada casta debaixo dos diáfanos véus e sim muito mais erótica do que qualquer artefato escondido no tal do gabinetto.

Antonio Corradini - A Castidade (imagem pinterest.com)

Não podíamos sair de Nápoles sem comer uma pizza, pois fora bem ali que o quitute tivera origem e desde o século XIX os nativos o transformaram em arte, principalmente nas suas fabulosas pizzas Margherita criada para homenagear a rainha Margherita di Savoia com ingredientes que tinham as cores da bandeira da Itália: o branco da mozarela, o verde do manjericão, e o vermelho do tomate.

Algumas das melhores pizzarias do vasto mundo moravam na Via dei Tribunali, uma espécie de Santo Graal para os amantes das pizzas.

Qualquer napolitano lhe explicará por horas as sutis diferenças entre a pizza local e as estrangeiras pois as deles vão direto para o estômago, sem necessidade de mastigação.
Talvez seja verdade, pois, usando fornos a lenha tradicionais, as pizzarias napolitanas assam e vendem a metro apenas a combinação certa de tomates, mozzarella, e massa fresca, macia e alta e não fina e crocante como aquelas “nojeiras romanas” e a gente ri e come e pensa que, como a pizza, Nápoles é uma experiência deliciosa. Quem não gosta de lugares como Nápoles, está cansado da vida.

Nos despedimos de Nápoles rumo à Costa Amalfitana, onde o mar era verde esmeralda, a água era transparente e nela as crianças pulavam dos rochedos. Mas nada de praias brancas de areias finas.
Na Praia di Castiglione, em uma cidadezinha de pescadores próxima a Ravello, povoada por enseadas e prainhas acessíveis apenas via mare, dormíamos a sesta ao som das ondas e sob o sol mas sobre milhões de... pedrinhas. Nada é perfeito!
Só voltaríamos àquelas paragens passados vinte e dois anos, para ver finalmente o que ficara faltando: a obra prima de Caravaggio.

Mas essa já vai ser outra conversa.




16 comentários:

  1. Francisco Bendl01/10/2016, 09:33

    Meu caro amigo Pimentel,

    O notável talento que tens como escritor, que se confirma nos relatos de tuas viagens, e que o Wilson publica em seu blog extraordinário, possibilita-me viajar também para essas localidades, razão pela qual arquivo tais crônicas como informações preciosas sobre locais que nunca visitarei, mas que passei a conhecê-los graças ao teus textos!

    Detalhes, peculiaridades, cozinha, artes, características do povo, usos e costumes da região, os pormenores mencionados são ricos, e reitero que deverias escrever um livro sobre os países que andaste e conheceste tão bem!

    Agradeço pelo artigo, Pimentel, pois mais um registro primoroso de uma nação que se identifica muito com o brasileiro, e uma cidade única, própria, com seu dialeto, sua música belíssima, seu time de futebol famoso, sua comida deliciosa, a PIZZA INIGUALÁVEL, e seu porto importantíssimo à economia italiana!

    Um abraço, meu caro.
    Saúde e Paz!

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  2. Monica Silva01/10/2016, 10:41

    Amei, Moacir, esse artigo alegre e maravilhoso! Me senti em Nápoles comendo o sanduiche e a pizza, fugindo das motos, subindo ladeiras, descendo pro esse mundo tétrico de ossos, curtindo as pedrinhas da praia, apreciando pinturas e esculturas e os c@r@lh@s de asas 😊 Obrigada por tantas maravilhas beijo no coração e bom final de semana!

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  3. Flávia de Barros01/10/2016, 11:20

    Moacir,

    Não gostei de Nápoles mas essa sua apaixonada descrição da cidade conseguiria entusiasmar até um coração de pedra. Ela me comoveu e me fez sorrir me surpreendeu e horrorizou me encantou e me confundiu. Vou reler o texto com cuidado pois ele fala de coisas que nunca ouvi falar e se algum algum dia voltar a cidade prometo que olharei para seus contrastes com os seus olhos.

    Um abraço para você

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  4. Márcio P. Rocha01/10/2016, 14:50

    Moacir, não poderia deixar de lhe dar um abraço por este memorável e delicioso texto que me deixou de quatro por uma cidade que não conheço.Parabéns!

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  5. 1) Obrigado pela aula de sábado Moacir, muito boa.

    2) Essa história do falo cerimonial é interessante, vc que esteve na Índia deve ter visto a religiosidade em torno do deus Shiva, o segundo na Trindade Hindu: Brahma, Shiva e Vixnu.

    3)E no Japão, até hoje, anualmente tem a Procissão do Falo, Festa do Falo, data anual do Xintoísmo. Na internet e youtube podemos ver o Festival.

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  6. Dulce Regina01/10/2016, 18:45

    Oi, Moacir. Seus textos são extraordinários. É preciso estar muito atenta para viajar por essas veredas tão encantadoras. Seu relato é real trazendo sensações vividas por você, transportando-nos para a verdadeira Nápoles. Um turista comum não apreende muita coisa, temos que nos tornar parte do povo para perceber o cheiro, as nuances, o sabor, o sentimento, o amor e tudo que envolve o napoletano. Vou esmiuçar tudo, fiquei curiosa por cada filigrana descrita. A escultura de Antônio Corradini - A Castidade, merece ser muito explorada. Obrigada sempre. Abraços, Dulce

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  7. Olá, Moacir, cheguei atrasada e já tinham dito tudo... Mais uma vez: sua escrita tem cor,cheiro e som. É muito bom viajar com voce! Obrigada por todas essas Nápoles. Até mais.

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  8. Moacir Pimentel02/10/2016, 18:43

    Bendl, que bom que você aprovou o texto. Mônica, se você se você se sentiu em Nápoles e sorriu , para mim está de bom tamanho. Flávia , tenho certeza que não precisará trocar de olhos para sentir o quanto a cidade é apaixonante.Márcio, quem sabe você não se anima para ir conferir a cidade ? Antônio, pelo que vi na Índia, Shiva é cultuado sim na forma de lingam. Não me deixa mentir a própria cidade de Varanasi, bastião da divindade, onde em cada cúpula de templo, em cada pátio,em cada esquina a gente percebe onipresentes, as mais diversas formas fálicas. Mas essa "fé " também foi contada , de outro jeito , por Drukpa Kunley, o famoso monge budista que dizia que a felicidade estava debaixo do umbigo e que, nos seus 115 anos de vida, iluminou através do sexo cerca de 5 mil mulheres (rsrs) Dulce, minha boa amiga,estude sim as misteriosas filigranas napolitanas e depois nos conte as descobertas e novidades. Donana, segundo um português muito famoso, "não se evolui, se viaja". Volte sempre, por favor, aos comentários!
    Abraços para todos e muito obrigado pela leitura e comentários.

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  9. Oi Moacir,

    não li uma linha sequer do seu texto. Estou de ressaca, de tanto ver TV sobre as eleições. Mas vi as fotos. E amo essas varandas de varais. Eu volto. Até.
    Ofelia

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  10. Oi Moacir,
    a cada história que você nos conta sobre a Itália - agora é sobre Nápoles - fico sempre com a impressão de 'já visto', nem que tenha sido em filmes.
    Amo a Itália de longe.

    'Poucas lojas abrem antes das dez horas da manhã, tudo fecha novamente ao meio-dia e reabre às três ou às quatro horas e va bene."

    Moacir, será que vem daí o fato do bisa Benjamin abrir seu conserto de relógios apenas à tarde? Como saber?

    Peguei a foto dele com seu terninho de xadrez miúdo e também da harmônica. Pensei em enviar pro Mano, pro e-mail dele (que já esqueci). Mas aqui poucas coisas funcionam bem. E o scanner, além da minha cabeça, é uma dessas coisas.

    Tô com sono, Moacir. Vou me deitar.
    Abraço
    Ofelia

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    1. Ofélia,
      se você quiser, escreva um texto sobre o seu bisa e me mande junto com a fotografia, terei prazer em publicar. Meu email é:

      maninhowilson@gmail.com

      Um abraço do
      Mano

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  11. Obrigada, Moacir.
    Vou ver, ok?
    Abraço
    Ofelia

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  12. Moacir Pimentel03/10/2016, 14:51

    Ofélia, sei que você teclou Moacir pensando Wilson , apressada que estava entre tantas notícias . Mas vou pedir licença aos dois para , de enxerido , me meter nessa conversa. Também gostaria de ler artigos seus por aqui e lhe dou meus motivos. É que sou seu leitor. Só que ler você como dizem os nordestinos é...problemático (rsrs) Às vezes os comentários apenas me abrem o apetite e eu fico no quero mais.
    Também tenho uma foto muito querida de um bisa e rodeado pelos 12 filhos(as) e genros/noras , um dos casais os meus avos maternos. Um dos objetos mais queridos na nossa casa , é uma foto em tons sépia dos meus avô e avó paternos recortada , colada em madeira e fixada num pedestal de pedra sabão no ano de 1931. Também já estacionei muito a meio caminho subindo e descendo a Serra no inverno, só que para comer o croquete de carne do Alemão. Com mostarda escura! E sem batom no bilhete. Também gosto das coisas do Affonso e da Marina e o Millôr era um gênio e temos ainda conosco aos 85 anos a Bá Tonha , a quem devemos tantas das nossas nuances e cujo Plano de Saúde é o melhor do clã , porque todos os "mininos" dela fazem questão de se cotizar para bancá-lo. Também do rádio só me recordo do Angelus e vagamente do Jerônimo e também acho que a Aninha não tinha nada a ver com a sua história mas entendo que as pessoas queiram participar do post e a namoradinha do Herói do Sertão foi a maneira que encontraram. Também para mim o passado fazia mais sentido e estou farto de esperar por esse raio de futuro que nos disseram há décadas estava pra chegar em technicolor e nunca chegou e nem chegará no nosso tempo de vida.
    Você não escreve , Ofélia, conversa. Não nos aponta a estrada, duvida delas. Não tem respostas , pergunta. E tudo isso é muito bom e as suas pretinhas meio que nos abraçam porque falam de coisas que a gente entende fundo e têm a nossa cara. A cara de uma matilha de lobos saudosistas e grisalhos cada vez mais "distraídos" mas ainda perfeitamente capazes de apreciar um bom texto e de nele encontrar muito sentido.
    Abraço

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    1. Tenho feito isto, Moacir, trocado as bolas de vez em quando. Isso mesmo, não é sempre. De qualquer modo me fragiliza quando percebo. E só percebi porque você comentou.

      Estou sempre meio lá, meio cá. Às vezes me surpreendo com alguma agilidade mental.

      Sabe o que fiz depois de ler você aqui três vezes pouco depois das 7h? Voltei a dormir.

      Esses dias meu irmão me perguntou se eu pensava antes de escrever. Eu disse que não. Ele sabe o quanto escrevo 'de súbito' o que me vem à cabeça. E me disse que não é bom pra mim.

      Não penso na imagem que projeto. Meu irmão falou: "Eu sei disso". Acrescentei que 'qualquer coisa errada, conserto depois'. E ele: "Nem sempre você terá essa oportunidade, a de consertar o que disse".

      Espero não ter escrito muita bobagem. Falo demais quando engreno, a ponto de meu irmão às vezes me dizer para dar 'uma meia trava'. Também me abro demais. Vocês, do 'conversas' e da TI, se tornaram amigos de infância.

      Gosto de escrever sem obrigação, quando quero, quando sinto o ímpeto para tal, o que ocorre na maior parte das vezes. Se me sinto instada a fazer alguma coisa vai-se embora a naturalidade, a espontaneidade que julgo importante em qualquer 'conversa'.

      Fiquei comovida com o que você disse, Moacir, que o que digo é coisa que vocês partilham, entendem bem. Em sendo assim ficamos mais próximos, mais próximos da sociedade humana. E eu mais próxima de vocês, seres tão especiais, tão inteligentes e vividos, apesar de mais novos que eu.

      Eu gostaria de ter algo bom, de que vocês gostassem, para escrever agora. Mas a casa está bagunçada, com muita coisa fora do lugar e nem almocei. Tampouco senti vontade de chamar a moça que vem aqui me ajudar na limpeza de vez em quando. Quis, quero estar sozinha.

      Estou errada, Moacir. A vida passa lá fora e às vezes só me dou conta quando os claros e escuros se alternam.

      Esfriou por aqui. Meu bravo e antigo aquecedor dá mostras de ter sido vencido pelo tempo. Preciso chamar o bombeiro para ver o que houve. Mas antes preciso tomar banho de balde. O chuveiro no quartinho dos fundos eu não ligo desde já não sei quando. É elétrico. Não gosto.

      Preciso, mais que tudo, depois das canecadas de água morna, botar uma roupa limpa e sair pra almoçar na rua. Ver gente. E me sentir viva.

      Grande abraço, Moacir, obrigada por suas palavras, que amornam o tempo frio dentro da gente.
      E mano Wilson, desculpa a troca de nomes. A cabeça rateia na hora de ligar. Este é o espaço do Moacir, então chamei você pelo nome do dono do espaço. Dono? Mas o dono não é você, o mano?

      Boa tarde, abraços aos dois. Preciso ir.
      Fiquem com Deus (é o que digo sempre ao meu filho, no singular).
      Ofelia

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    2. Ofélia, esse espaço não é só do Mano, é seu também e de todos nós que escrevemos nele. E, como eu já te disse, o dia em que você quiser escrever como post nós gostaremos muito de ler também.
      Um abraço do
      Mano

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  13. Obrigada, Mano Wilson.
    Hoje há coisas demais pra se fazer aqui.
    Cada vez que meu filho vem de Sampa ele reclama da quantidade de móveis e outras 'coisinhas'. Mas não quer forçar nada. Foi criado com liberdade e faz o mesmo comigo, apesar de não gostar de algumas muitas coisas.

    Deve vir no final de semana. Tem um casamento aqui no Rio. Preciso correr com as coisas a fazer.

    Por ele, eu já tinha 'dado um tapa' aqui em casa. Mas tô nem aí, como cantou por muito tempo a Kelly Kee (esqueci como se escreve).

    Abraço
    Ofelia

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