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23/10/2016

A Menina Cansada

Wilson Baptista Junior

Quando se diz que o Museu do Louvre é o maior museu do mundo, as pessoas em geral não fazem ideia do seu tamanho.

São mais de sessenta mil metros quadrados de área de exposição. Nessa área caberiam oito campos de futebol. Só a Grande Galeria, onde estão os grandes mestres italianos, tem duzentos e oitenta e oito metros de comprimento – coisa aí de uns trezentos e trinta passos largos... E há mais de trinta e cinco mil (isso mesmo, trinta e cinco mil) obras de arte em exposição – e isso é só uma pequena fração das obras que o museu guarda.

Então, quando alguém disser a vocês que conhece o Museu do Louvre, vocês pensem que o que essa pessoa está querendo dizer realmente, salvo raríssimos casos, é que – ela deu uma passadinha por lá...

A primeira vez em que eu fui ao Louvre, eu estava passeando sozinho a pé por Paris, num dia de primavera, vim do lado de Montparnasse, atravessei o Sena pela Pont des Arts, passei por baixo de um portão, cumprimentei um guarda, atravessei um pátio vazio, entrei por outra porta, subi uns degraus, virei à esquerda e me deparei com...

fotografia WBJ

... a Vitória de Samotrácia, uma visão de tirar o fôlego no alto da escadaria abobadada, avançando para o vazio como a proa de um navio.
Foi como levar um soco no peito. A cada degrau que eu subia ela ficava maior e sua força também.

Naquele tempo, trinta e seis anos atrás, não existia a Pirâmide do Louvre, onde se entra para o museu por dentro de um shopping de vidro, a entrada era simples assim, nos dias de semana não existiam filas para entrar, por ali entraram umas três pessoas junto comigo.

Fiquei o dia inteiro lá dentro, reencontrando velhos conhecidos que eu só conhecia de fotografias, descobrindo novas maravilhas. Quase ninguém por perto, quem estava estava como eu, calmo, atento, silencioso, talvez encantado...

Não voltei lá por dezoito anos. A vida me levou por outros caminhos.

Em 98 voltei, dessa vez com a Ana. Logo depois da Copa (no dia da final estávamos em Marselha).

Julho, verão. Paris era outra. Batalhões de turistas. Filas imensas para tudo. Quis subir de novo a Torre Eiffel, almoçar lá em cima vendo a maravilha que é a cidade se desenrolando em baixo. Desistimos. A fila para os elevadores tirava qualquer vontade.

Fomos ao Louvre. Passeando. Chegamos lá, a fila percorria toda uma das galerias laterais de ida e volta, atravessava a esplanada da Pirâmide e enchia a outra galeria. Aí para uns seiscentos metros de fila. Dentro das galerias, as pessoas se espremiam para fugir do sol.

fotografia WBJ

Mais de duas horas para comprar a entrada e descer, não me lembro bem. As pessoas já cansadas antes de entrar.

Multidões lá dentro. Difícil de andar. Chegar perto da Mona Lisa, quase impossível. Fotografar a Vênus de Milo, só levantando a câmara acima da cabeça e confiando na sorte, as máquinas de filme não tinham as telinhas das digitais.
A saída era ficar nas partes menos “populares”, menos procuradas pelos turistas, mas nem por isso menos interessantes.

Depois de um bom tempo, chegamos às cristaleiras da arte etrusca, depois às da árabe antiga. Aí já quase não havia ninguém.

Encostada no recesso de uma das grandes janelas, uma moça tinha se sentado no chão para descansar e adormeceu vencida pelo cansaço. Devia ser uma estudante, suas mãos cruzadas sobre o colo ainda seguravam seu caderno de anotações. Sua figura em paz nos raios de sol que entravam pela janela formava um quadro que poderia perfeitamente estar pendurado na parede do museu.

fotografia WBJ

Ana e eu fizemos silêncio para não perturbá-la, e eu levantei a máquina para guardar a imagem daquele sono tão bonito. Mas enquanto eu a enquadrava no visor um guarda do museu olhou para o meu lado, olhou para onde eu estava fotografando, viu a moça, e com a característica falta de cortesia dos funcionários franceses veio, empurrou seu ombro e fez com que ela se levantasse. Provavelmente aquela cena tão pacífica e inofensiva foi demais para seu espírito burocrático, “les réglements” não deviam permiti-la...

A moça foi para um lado, eu e Ana para o outro, e nunca perdi meu sentimento de culpa por ter, sem querer, chamado a atenção do funcionário para ela.

Quem sabe que sonhos povoavam esse seu sono interrompido?



11 comentários:

  1. 1)Bom texto, belas fotos.

    2)Obrigado pela referência ao meu lado Etrusco...

    3)Escreva mais, conte-nos mais.

    4) Bom domingo para todos (as).

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  2. Oi Wilson,

    que narrativa tão calma... Que nos convida a visitá-la da mesma forma, a ler calmamente, sem atropelos. Ana, me parece, acompanha você no mesmo passo. Vocês caminham juntos há bastante tempo, acertaram as passadas lá atrás. Mais uma referência de calma, da paz que às vezes está tão longe nos passos, corações e mentes dos homens... e mulheres.

    Aquela moça sentada que você fotografou, bem que poderia ser uma Ofélia. Meu irmão, invariavelmente quando retornava da Europa, me dizia que eu, antes de viajar, precisava treinar para andar muito.

    O fôlego me faltou só de ver a escadaria diante da Vitória de Samotrácia (escrevi certo?). Eu teria que subir tudo aquilo? Minha nossa!

    Bom, não entendi se, após criada a pirâmide de vidro do Louvre, entrar no museu requer passar pelo mesmo caminho.

    Aliás, tive a impressão de que essa galeria apinhada de gente na sua foto, tinha uma escada ou esteira rolante no chão. As pessoas não parecem andar, mas deslizar. E há entre os que vão e os que vêm um corrimão(?) que nem todos usam.

    Wilson, a janela sob a qual a moça do Louvre descansa me encanta os olhos. Janelas como essa, telhados e sacadas parisienses que só vi em fotos e filmes, fazem gosto à minha alma, ao meu coração, que se encanta com o que vê.

    Meia-noite em Paris, do Woody Allen, revela um pouco da Paris dos meus sonhos. Tal como sua narrativa sobre o Louvre.

    Ela, sua narrativa, me faz lembrar do meu irmão, menino ainda, que, cansado de andar, abraçou o poste e disse a quem o acompanhava: "Tô 'garrado' aqui!" Eu certamente faria o mesmo em Paris.

    Ah, e a história do meu irmão eu também só conheço de ouvir contar. Ele é mais velho que eu alguns bons anos.
    Abs

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    1. Dulce Regina23/10/2016, 17:39

      Querida Ofelia. Tem uma pintura de Jonh Everett Milais da Ophelia , que também está no Museu do Louvre. Se você se interessar acesse o blog : encontrocomarte.blogspot.com.br e aí vai maravilhar-se com essa pintura que é uma das personagens da peça Hamlet, de Shakespeare . A descrição de como Millais pintou essa obra magnífica é sensacional. Eu fui apresentada a ela, pelo nosso amigo Moacir que deu-me uma ou mais aulas fantásticas dessas pinturas pré- Rafaelita . Abraços

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    2. Moacir Pimentel23/10/2016, 19:11

      Ofélia,
      São tantas e belas as histórias filmadas em Paris. A começar pela Meia-noite do Woody com suas cenas fantásticas da cidade na chuva, iluminada à noite e movimentada de dia. Teve a Amélie viajando por todas aquelas mercearias, cafés e pontes e aquelas longas vistas de Montmartre e, em Antes do Anoitecer, aquele casal jovem e encantador passeando pelo rio Sena depois de terem se reencontrado na linda livraria
      Shakespeare & Company. E o que dizer de Amour com os veteranos Jean-Louis Tritignant e Emmanuele Riva? Teve Hugo, Moulin Rouge , os Amantes da Ponte Neuf com a ótima Juliette Binoche, e a Julia da Meryl Streep, que morava na Rue de Seine mas que não saia das barraquinhas do mercado da Rue Mouffetard. Garota esperta.
      E sempre em todos os filmes e postais , lindos de morrer, aparecem os telhados de Paris com as tais janelinhas, as mansardas , que eram abertas para iluminar e ventilar o espaço entre o telhado e o último dos andares de um prédio, para que o desvão que pudesse ser usado como mais uma moradia ou cômodo de uma casa.
      O que a arquiteta da minha vida explicou é que a altura das construções era regulada por leis mas que quem estabeleceu as regras arquitetônicas na Paris antiga, caiu na besteira de determinar a altura dos prédios medindo-a do chão até o parapeito do telhado e não até a sua cumeeira. Acontece que quanto mais alto os andares subiam, mais fundo e caros os alicerces desciam. E então os construtores que precisavam de mais cômodos para vender e/ou de mais aluguéis para amortizar seus custos , deram um jeitinho e passaram a fazer um ou mais andares extras contrabandeados debaixo dos telhados. E foi assim , porque um poderoso vacilou , que - graçasadeus! - nasceram os telhados de mansardas parisienses.
      É disso o que o Wilson está falando aí em cima.De resto é sempre muito bom ler você. "Tô garrado aqui", a partir de hoje, pelo menos nas "conversas" passa a ser sinônimo de...
      Abraço

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  3. Ah: esqueci de acrescentar a palavra 'bonita' à sua narrativa, palavra esta que repeti tantas vezes no meu comentário. Bonita e calma. Calma e bonita.

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  4. Oi Ofélia,
    Eu não sei se a Ana me acompanha ou se sou eu quem a acompanha, como todo casal já tivemos nossos atropelos, mas estamos andando juntos há mais de quarenta e cinco anos e não consigo me imaginar sem ela.
    A escadaria é linda, mas não, você não precisa mais passar por ela. Essa era a entrada antiga. A entrada pela pirâmide tem elevadores, você agora chega à Vitória pelo lado direito, no mesmo nível dela. Mas não tem mais a mesma sensação de maravilhamento de descobri-la desde o pé da escada...
    Aquela galeria não tem esteiras, ela tem aí uns cem metros de comprimento, e as pessoas não parecem andar porque estão paradas. Era igual uma fila de cinema, alguém comprava a entrada e a fila andava uma ou duas pessoas para a frente, e parava de novo enquanto o próximo comprava. Só que, só na ida e vinda pelas galerias dos dois lados, já eram quase quatrocentos metros de fila...
    E o corrimão não é bem um corrimão, é uma barreira para separar o lado que vai do lado que vem.
    Talvez as filas, em outras estações do ano, em outros dias da semana, sejam bem menores. Aquele era um ano de Copa do Mundo, nas férias de verão, devia haver mais turistas. Não sei como estará agora, depois quando voltamos à França não fomos mais ao Louvre, e faz muito tempo que não volto lá. Mas vazio e calmo como da primeira vez que fui, acho que nunca mais...
    E os telhados de Paris, esses têm uma história à parte. O Moacir me contou uma vez, eu não sabia, que a mulher dele lhe explicou como surgiram aqueles telhados cheios de águas furtadas que tanto encantam a vista. Mas, para não roubar as palavras deles, vou deixar que ele explique para você quando ler este comentário.
    Fiquei contente porque você gostou.

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  5. Moacir Pimentel23/10/2016, 13:16

    Wilson,
    A última fotografia do post é tão "soco no peito" quanto a da Vitória.E essa multidão aí é "horripilante". Consigo imaginar os selfies(rsrs)
    Fazer o quê?
    Bem,as multidões de bárbaros falantes de línguas estrangeiras diminuem sensivelmente no Louvre à noite, creio que das quartas e sextas. Antigamente driblávamos as filas entrando no Museu pela porta da Rua Rivoli e comprando as entradas na tabacaria que ficava uns 100 metros adiante.Porque não havia filas diante da tabacaria me escapava.
    Hoje compramos o tal passe dos museus pela internet. Os seus portadores utilizam entradas especiais - normalmente sem filas - para entrar nos museus da cidade e podem visitá-los quantas vezes quiserem durante os até 6 dias de validade do passe. Para quem, como nós, é viciado em museus o passe é uma solução com excelente relação custo benefício. Agora....
    O que a garota quase florentina - e com direito à paisagem de fundo! - estaria sonhando no seu sono tão bonito ? Perguntas da espécie são recorrentes nessa viagem na qual vamos perdendo a visão periférica e fazemos cada vez menos conexões. Uma pena. Porque ser capaz de enxergar o belo e principalmente o humano nos bastidores do show da vida, cogitar sobre os pensamentos e sentimentos alheios para ver o mundo como o outro o vê, talvez seja a maior das artes e das viagens.
    A sua pergunta sem resposta ilustra ainda a maior diferença entre as viagens aos vinte e aos sessenta anos. Aos vinte talvez a gente não fosse capaz de enxergar a luz daquela janela ou nem se desse ao trabalho de fotografar a garota interrompida. Mas nos aproximaríamos de quem chamasse a nossa atenção e simplesmente diríamos: Olá!
    Abração


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  6. Este é o meu garoto! digo, velhinho em formação!

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  7. Dulce Regina23/10/2016, 17:29

    Olá, Wilson. Você colocou o " dedo na ferida " das minhas preferências e admiração : esculturas ! E essa, A Vitória de Samotrácia é uma delas. E você tem razão quanto ao Museu do Louvre, eu admito que só passei por lá duas vezes, porque vi muito pouco das maravilhas que ali habitam, inclusive essa minha paixão de longos tempos. Tenho dois compromissos para quando voltar à Paris : me encantar diante dessa escultura ( de 3.28 m , não é ? ) e da mesma forma apreciar as Nymphéas de Monet, no L'Orangerie. Se Deus assim permitir. Gosto de ler sobre artes e hoje encontrei essa frase sobre a Vitória de Samotrácia : " Sob o vento, as roupas de seu vestuário se levantam e, molhadas, colam-se em seu corpo revelando formas, força, ímpeto e fôlego de vida ". Talvez, quem sabe ? Seja por isso que ela chame minha atenção e admiração, pois tenho fome pela vida... Sua fotografia da Menina Cansada é uma verdadeira obra de arte e fique sem culpas dela ter sido acordada , pois valeu muito. Bom seria que ela soubesse dessa foto, iria se apaixonar. Obrigada pelo domingo no Louvre. Dulce Regina Ah...adquiri uma réplica da escultura na Grécia, quando por lá estivemos. Coloquei-a no meu lavabo de Terê e minha secretária de lá, comentou comigo : " a senhora comprou uma estátua sem cabeça ?" Rsrsrs Então expliquei-lhe o motivo dela não ter cabeça.

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  8. Antonio, obrigado pelos elogios. Não tenho a facilidade para escrever que vocês têm, por isto os posts não me saem com frequência, mas vou tentando. Quem sabe?
    Dulce, a Vitória é uma escultura impressionante. A força dela toca a gente lá dentro. E eu adoraria, sim, que aquela menina cansada pudesse ver a fotografia, hoje na internet tudo é possível, nosso blog tem leitores espalhados pelo mundo, quem sabe um dia possa chegar até ela?
    Ana, é a minha garota :)
    Moacir, se e quando eu voltar lá, com certeza não ficaremos mais na fila. E essa visão de dentro de que você fala, essa visão do coração, vem, como você também sabe, quando a idade ou o crescimento amacia a armadura que construímos em volta das nossas almas, pensando, bobos de nós, que com isso as protegemos.
    E aí nossas viagens cada vez mais se tornam verdadeiramente viagens.
    Um abraço para todos.

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  9. Dulce, Moacir, Wilson,
    cheguei pra ler sobre as janelas parisienses que tanto encantam e não só a mim.
    Li tudo, Moacir.
    De repente estou tão cansada quanto a jovem da foto do Wilson. Pra mim não será bastante sentar no chão.
    Vou precisar de mais um pouco que isso. Deitar talvez.
    Vou também procurar a Ofélia de que fala a Dulce Regina. Não agora, que agora não dá.
    Wilson, como se aprende aqui, não?
    Boa noite e abraços pra vocês.
    Obrigada eu estou proibida de falar.
    Ofelia, a... cansada (escrever velhinha ia me deprimir muito, rsrs)

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