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30/11/2016

Desarrumação Digital

imagem healthcareasia.org



Heraldo Palmeira

Tudo corria bem, até que, ao final de uma semana intensa de trabalho, fui desligar o computador e apareceu uma mensagem oficial da Microsoft, convidando a atualizar o sistema e oferecendo duas opções: reiniciar ou desligar ao final.

Bastou um clique para ter início uma desarrumação digital, a quarta nos últimos dois anos. Computador travado, não restou alternativa além de chamar um amigo técnico e formatar a máquina mais uma vez.

Desta vez, senti não o estresse costumeiro das outras vezes; apenas um desânimo analógico, uma falta de vontade de reorganizar tudo (configurar a máquina), instalar programas, aplicativos e retomar a rotina de dependência desse mundo plugado, opressor, implacável, incompreensível para a maioria de nós, simples usuários que queremos apenas continuar fazendo nossas coisas comuns.

Mesmo usando somente produtos originais, estou tendo ainda um monte de contratempos creditados à incompatibilidade entre sistema, programas e aplicativos. O antivírus de última geração não está nem um pouco interessado em conversar com o ambiente do meu banco e anda atrapalhando meu acesso a alguns sites de notícias.

Os dicionários voltaram a me fazer companhia, porque abri mão do ainda controvertido Windows 10 em favor da velha e mais confiável versão 7 que mantive guardada na estante.

A dança de arquivos entre HDs é sempre mais lenta do que deveria e desanimadora pela estupidez do processo. Fico me perguntando como, até aqui, ninguém conseguiu uma solução simples e rápida para esse processo.

Pensei nos tempos rudimentares da informática, quando máquinas e programas eram bem mais simples, não passavam de ferramentas de apoio. Hoje, nós somos as ferramentas de apoio desse mundo cada vez mais cheio de inutilidades obrigatórias, que saltam na tela deixando a nítida impressão de que têm vida própria.

Confesso – e não tenho como negar – minha enorme saudade das velhas Remington, Olivetti, Facit, Royal, Olympia..., cujos problemas eram simples de resolver. Quase sempre, trocar a fita ou limpar com álcool os caracteres. Vez ou outra, levar a uma oficina para o mecânico limpar e lubrificar as engrenagens.

Algumas tiveram versão elétrica, que era um luxo. Até que chegamos ao superluxo das IBM, com direito a corretor. Primeiro, as de esfera e, no último estágio antes dos computadores, as de margarida.

Todas elas, manuais ou elétricas, umas fofas dóceis que não tinham nenhum interesse em nos tirar do sério, como esses bestas desses computadores sem personalidade, que planejam dominar o mundo e até invadir a área do pensamento com sua inteligência artificial.

Já dizia o mestre João Ubaldo Ribeiro, “O que eu faço com o computador? Porque isso é uma máquina de fazer maluco!”. Ponto final!

29/11/2016

Zero

 
Zero (fotografia Domingos Ferreira)




Domingos Ferreira
A corveta cruzou a barra do rio Demerara e fundeou em frente ao porto de Georgetown, aguardando a saída de um navio do cais destinado à sua atracação. O Comandante Alfredo resolveu esperar no passadiço, em conversa com o imediato e o Secretário Albuquerque, do Itamaraty, participante da viagem. A manhã estava clara. Soprava ainda o vento fresco causador do mar agitado que castigara bastante o navio na travessia até a capital da Guiana, ainda Inglesa.
O vigia do tijupá informou a aproximação de uma lancha por bombordo. Era uma embarcação impecavelmente branca, com uma grande cruz vermelha pintada, indicando tratar-se do serviço de saúde do porto. Nela, se destacava um cidadão negro, vestido de branco, com toda a aparência de ser um médico. O imediato desceu ao portaló, para recebê-lo.  
O comandante foi chamado ao telefone, pouco depois. Era o imediato informando tratar-se efetivamente do médico, o qual insistia em realizar uma inspeção sanitária no navio. Disse também que lhe fora explicado não ser permitido fazer isso, por se tratar de um navio de guerra de outro país, ainda mais em visita oficial. Mas o homem estava brabo, ameaçando não permitir a atracação da corveta. Alfredo não gostou do que ouviu e mandou que o médico fosse levado para a câmara, onde iria recebê-lo, após fazê-lo esperar quinze minutos no convés. As coisas poderiam se complicar porque o navio não trouxera médico nesta viagem e tinha só um enfermeiro embarcado.  
Tratava-se de um homem enorme, com cara de poucos amigos, que entrou na câmara, acompanhado pelo imediato. O enfermeiro indiano, seu acompanhante, foi barrado na porta por um fuzileiro naval, ali colocado como guarda, e levado de volta para o sol do convés. Alfredo e o diplomata receberam, em pé, o Dr. Broadbent, M.D.(conforme bordado em seu jaleco), enquanto vociferava seus argumentos. Ele só foi convidado a se sentar quando calou a boca. Foi uma conversa complicada, que durou algum tempo, até o comandante ser avisado do cais livre para a atracação.
Sem chegarem a um acordo, Alfredo acompanhou o médico emburrado até o portaló, para embarcá-lo na lancha impecável. O pior aconteceu quando estavam se despedindo. Zero, o mascote do navio, vira-lata novidadeiro, sempre rondando pelo convés nos portos, achou que seu amado comandante estava sendo agredido por aquela figura estranha. Não teve dúvida e, latindo enfurecido, partiu para a perna do médico. Foi uma cena patética, sem piores consequências porque o contramestre interceptou o Zero antes de cravar os dentes na canela do doutor.
Esse fato insólito serviu para o Dr. Broadbent, M.D. dar a palavra final! Ele perguntou que cão era aquele e se estava vacinado. Apesar de ser informado que o mascote do navio sempre fora vacinado, encheu o peito e soltou a frase definitiva, em um Inglês com forte sotaque creole:
- Este animal está proibido de por os pés em terra, no porto de Georgetown!!
Dito isso, desceu impávido para sua virginal lancha branca e afastou-se do navio, sem olhar para trás. Estava criado um grande problema a bordo...
O Zero, vira-lata legítimo, era de tamanho médio, quase branco, com um círculo preto em volta de um olho, razão do seu nome. Mimado por toda a tripulação, sentia-se dono da corveta. Estava acostumado a ser o primeiro a desembarcar, assim que a prancha era passada para o cais. Saía feliz, marcando território nos cabeços de amarração do navio e nas árvores próximas. Cumpria compenetrado esse ritual e subia a prancha satisfeito, de volta ao navio, abanando o rabo.
Ele não entendeu nada ao ser amarrado em um dos suportes do toldo do portaló, por ordem do comandante. Primeiro, se enfureceu. Depois de latir até cansar, enroscou-se no convés, em frente à prancha, chorando como uma criança. Enjoara muito com o mar grosso dos dias anteriores e havia emagrecido. Birrento e chantagista, recusou a comida trazida por seu “dono”, o Cabo Tonhão. Não queria conversa. Dava pena...
Zero estava em greve de fome!... A notícia correu o navio como um raio. O comandante soube logo da novidade. Ele e o Secretário Albuquerque iriam sair para fazer as visitas protocolares às autoridades da capital do país. Ao passarem pelo portaló, acompanhados pelo imediato, o Zero começou a uivar, com um olhar tristíssimo. Alfredo, preocupado com o moral da tripulação, mandou o cão ser levado para a popa. Ali, ficava sua casinha, pintada com cores e escudo do Fluminense, o que variava com o time de cada comandante.
Era importante a marujada não ver aquela cena junto à prancha, por ocasião do licenciamento para terra, a ocorrer em breve. Zero saía sempre com eles e ficava rondando os marinheiros nos inferninhos, tomando conta de tudo na zona. Ficava por ali, até ser atraído por uma fêmea. Ou voltava para bordo na alta madrugada, sem sucesso, após dar muito “soco no sereno”(abreviadamente, “soco”). Às vezes, Zero sumia por dois, três dias..., quando o romance era mais sério. Mas seu instinto de predador não falhava. Tinha descendentes em muitos portos, e jamais perdera o navio. 
Essa viagem tinha sido bem planejada em Brasília, por haver muito interesse em seu sucesso. Vivia-se um período de grandes transformações políticas nas três Guianas, colônias europeias fronteiriças com o Brasil, até então relegadas a segundo plano. Elas estavam buscando a independência, com pressões de grupos de esquerda enfrentando os colonizadores, para grande preocupação dos patrões e dos americanos, em plena Guerra Fria. A avaliação da nossa diplomacia era de que o processo se tornaria irreversível nas Guianas Inglesa e Holandesa. Já a França inibira as ações pela independência da sua colônia, com enormes investimentos em um gigantesco centro aeroespacial em Kourou, na Guiana Francesa, patrocinado pela União Européia.  
Por tudo isso, a corveta brasileira estava mostrando nossa bandeira em Georgetown, o que passaria a ser frequente na região. Também, viera o Primeiro-Secretário Albuquerque para preparar a instalação de um consulado na cidade, a evoluir em futura embaixada.   
Alfredo e Albuquerque circularam, no carro oficial, pela cidade pequena e pobre, com o objetivo de conhecer seus pontos principais. Além das coisas de interesse que viram, notaram a enorme quantidade de cães soltos pelas ruas. Com isso, os dois concluíram ser possível soltar o mascote, sem maiores riscos de um incidente diplomático. Ao chegar ao navio, o comandante deu ordem ao imediato, ainda no portaló:
- Pode soltar o Zero! E não me olhe espantado!
Vendo as expressões de incredulidade no pessoal de serviço na tolda, insistiu:
- O que mais nós vimos nas ruas foram vira-latas, numa boa. Soltem o Zero e dêem comida a ele antes que desapareça!
Foi uma festa. O cachorro foi solto em minutos. Desconfiado, ele desceu e subiu a prancha algumas vezes, até se sentir mais seguro. Comeu e bebeu bastante e disparou pelo cais, em direção ao casario da cidade, sob aplausos dos marinheiros. Não voltou para bordo naquela noite.  
As autoridades locais tinham preparado um programa para a corveta. O evento mais importante seria um jogo de futebol dos brasileiros contra os locais. Ele era objeto de cartazes espalhados pela cidade, em tom de final de Copa do Mundo entre a Guiana e o Brasil, bicampeão mundial. A propósito, o Secretário Albuquerque chegara a Belém, alguns dias antes da viagem, trazendo essa novidade, já acertada nos entendimentos diplomáticos para a visita da corveta a Georgetown.
A grande preocupação com tal jogo era que a corveta, com tripulação de sessenta homens, tinha um “time(?)” de futebol nem de longe capaz de encarar uma pedreira daquelas. Na realidade, era um grupo de pernas de pau onde se salvavam dois ou três jogadores, sem preparo físico e treinamento. O time se chamava “Tucunaré”, tinha uniforme completo, seu “técnico” era o Cabo-eletricista Raimundo, um mau exemplo de barriga de cerveja.  
O navio jogava, com esses heróis, contra os times dos lugarejos perdidos nas margens dos rios imensos da Amazonia, onde atracava nos barrancos para prestar assistência médica e social às populações abandonadas pelos poderes públicos. Essas ocasiões eram uma festa para os moradores, em especial as crianças.
Havia sempre um troféu em disputa. Eram pequenas taças e medalhas com o nome do navio gravado, que o time local recebia, mesmo quando não ganhava o jogo. Elas eram baratas e, antes das viagens, o imediato mandava comprar uma dezena de conjuntos, para levar alegria àqueles brasileiros distantes de tudo.  
Como o jogo Guiana x Brasil seria coisa muito importante, a solução foi reforçar o “Tucunaré” com fuzileiros navais, que tinham um bom time no Grupamento de Belém, e embarcaram para a viagem. Assim é que, só restaram quatro vagas (dois reservas) para os “craques” de bordo no aguerrido plantel.
Havia ainda o problema da camisa a ser usada, se dos tucunarés ou dos fuzileiros navais. A coisa ficou séria a ponto de ser levada ao Comandante da Flotilha do Amazonas. O Chefe resolveu a pendenga com a sabedoria inerente aos “mais antigos”: o uniforme seria o da seleção brasileira, e “que não dessem vexame!” Ainda houve tempo para vários treinos antes da viagem, conduzidos pelo técnico dos fuzileiros, o suboficial FN Gedeão, preparador físico, duríssimo na queda.  
O estádio estava lotado pela população composta de negros e indianos, conforme prática dos ingleses em suas colônias, para explorar a rivalidade entre eles, em benefício de dominá-los. Os “Tucunarés” foram, educadamente, recebidos por uma grande salva de palmas. Era um campo modesto, com duas arquibancadas de madeira ao longo do gramado e uma pequena tribuna de honra coberta, na altura do meio de campo. De pé, uma multidão cercava todo o campo, em enorme algazarra. Bandeiras da Guiana por toda parte, contrastavam com uma única bandeira brasileira junto à tribuna.
O Comandante Alfredo, o Secretário Albuquerque e os oficiais do navio, em uniforme branco de mangas curtas, foram recebidos pelo Ministro da Educação e Esportes, “Prof. Dr. Campbell Adams”, um senhor negro, grisalho, muito afável. O Prefeito da cidade, um indiano, Mr. Nirupama Suri, e autoridades menores, completaram o palanque.
Dentre eles, destacava-se o médico, Dr. Broadbent, M.D., sentado em uma cadeira branca, com uma cruz vermelha no encosto, em seu impecável jaleco engomado. O comandante, ao cumprimentá-lo, muito sério, ficou preocupadíssimo com a possibilidade de o Zero aparecer por ali. Uma taça bonita, de bom tamanho, patrocinada pela Prefeitura, estava sobre uma mesinha, em frente à tribuna.
O jogo foi bem disputado. O time local incluía negros e indianos, além de um atacante louro, forte e agitado, que jogava muito duro. Os marinheiros e fuzileiros navais Tucunarés aguentaram bem o tranco e o primeiro tempo terminou 1x1. No intervalo, o imediato trouxe o “técnico” Raimundo que insistia em falar com Alfredo:
- Comandante, o senhor viu aquele louro grandão que está batendo na gente?  
- Sim, Raimundo, estou vendo. E estranhei que nós não estamos reagindo.
- Pois é, chefe, eu vim pedir licença pro senhor pra baixar o sarrafo nele.
- Ué! E por que vocês não estão fazendo isso?
- O negócio é meio complicado, comandante. O homem é um italiano que vive aqui.., é o capitão do time deles...
- Sim, e daí?
- Chefe, ele é um padre, Dom Genaro, um missionário, que mantém um orfanato grande na cidade... Os moradores adoram ele...
Alfredo olhou perplexo para o técnico. O secretário e o imediato estavam se contorcendo para não rir. Raimundo continuava muito sério. Alfredo decidiu de bate-pronto:
- Raimundo, pode baixar o pau nele. Mas, cuidado para não quebrar o homem.
- Sim senhor, chefe. Vou botar o Jorjão prá cuidar dele...Com licença...
Na primeira dividida, o padre levou um violento troco do Jorjão (um enorme sargento fuzileiro, índio botocudo de segunda geração, monossilábico e “puxador de ferro”). Na segunda entrada, Dom Genaro saiu catando graveto, meio manco. A partir daí, o religioso ficou cauteloso, quase gentil, e o entrevero mais civilizado.
O jogo terminou 2x2. Os guianenses comemoraram como se fosse uma grande vitória. Imagine, empatar com os bicampeões do mundo! O Dr. Campbell Adams, eufórico, fez questão de entregar a taça aos brasileiros. Os times se alinharam no gramado para a premiação.  
Nesse momento, Alfredo viu o Zero entrar no outro lado do campo, atrás de uma fêmea, seguido por vários cachorros. O comandante olhou angustiado para o imediato, que entendeu tudo e agiu rápido. Em instantes, o Cabo Tonhão, “dono” do Zero, correu pela multidão e sumiu com o mascote, para alívio de Alfredo e seus oficiais, atentos à manobra salvadora. A premiação ocorreu sem maiores incidentes e a população de Georgetown comemorou o empate com os brasileiros pela noite adentro.
A programação da corveta também incluía um recepção, no dia seguinte, na Nightingale House, residência oficial do Governador Britânico. Os convidados brasileiros, em uniforme branco, foram recebidos por Lady e Lorde Barrington, suas duas filhas adolescentes e um irmão menino, além de várias famílias de brancos colonizadores. Junto com eles, estavam o Coronel Mac Intosh, comandante do batalhão de escoceses, sediado na Guiana, e alguns dos seus oficiais, vestindo os kilts de seus clans. O casarão, em estilo colonial inglês, no centro de um belo gramado, em uma colina, era um cenário digno de um romance de Jane Austen, contrastando com a pobreza da cidade.
A conversa fluía livremente, regada por uísque escocês, canapés e música de um piano. A criadagem, toda negra, era chefiada por um rigoroso “maître” indiano. Havia grande curiosidade sobre o Brasil, em especial a Amazônia. Notava-se certa preocupação e nostalgia em relação à Guiana, já aceita como futuro país independente, no processo de redução do poder colonial britânico, agravado com a perda da Índia. Essa circunstância foi bem percebida pelo Secretário Albuquerque, em proveito de sua missão na viagem. A reunião animou-se com entrada em cena de gaitas de fole e canções escocesas, terminando bem depois do por do sol, com brindes ao Brasil e à Rainha.
Na manhã seguinte, a corveta estava pronta para desatracar na hora prevista, com o pessoal distribuído pelos conveses, em “postos de suspender”. Entretanto, havia um problema preocupando a todos. O Zero não havia voltado para bordo. O Comandante Alfredo, nervoso, andava de um bordo a outro no passadiço.  
Passados alguns minutos da hora prevista, ele atrasou a partida em uma hora e ordenou ao imediato que usasse o carro à disposição do navio para procurar o desertor pela cidade. Três tripulantes, incluindo o cabo Tonhão, seu “dono”, foram escalados para tentar encontrar o mascote nas ruas da ZB. Eles deveriam voltar para bordo, dentro de uma hora, com ou sem o Zero.   
O cão não foi encontrado.
Com o navio novamente pronto para suspender, e todos a bordo de coração na boca, o comandante mandou retirar a prancha e desatracou a corveta, aproando ao meio do rio. Quando estava guinando em direção à barra, já distante do cais, foi ouvido o que a tripulação mais queria escutar. O vigia do tijupá gritou, de olhos grudados no binóculo:
- Zero no cais, pelo través de boreste, a trezentas jardas! Ele está latindo muito!
Foi uma verdadeira loucura quando o navio encostou no cais e o Tonhão pulou em terra, agarrou o Zero, e voltou para bordo com ele no colo, lambendo seu rosto.  
Muito homem feito, metido a durão, chorou de emoção naquele dia. Inclusive o comandante Alfredo...
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O Destino sempre nos surpreende. Ocorreram dois fatos, em pouco tempo, que não podem ser omitidos nesta narrativa.
O primeiro foi em um dia de muita chuva, alguns meses após a chegada da viagem. A corveta estava docada na Base Naval e a prancha que ligava o navio à borda do dique estava muito escorregadia. Zero farejava por perto e viu uma ratazana entrando no navio por ela. A reação do cachorro foi instantânea. Ele partiu para cima do bicho, latindo, e o roedor, apavorado, pulou para o fundo do dique. Zero escorregou na prancha molhada e despencou com ele. Foi uma queda de uns oito metros sobre um piso de pedra. O pessoal de serviço no convés ouviu o impacto surdo do cão no granito e um longo e sofrido ganido. Seguiu-se um silêncio assustador. Os dois homens que desceram correndo ao fundo do dique voltaram ao convés, chorando, com o Zero nos braços. Havia um filete de sangue saindo de sua boca. Estava morto.
O Comandante Alfredo foi logo avisado e chegou, apressado, no convés, Encontrou o Zero colocado sobre um tapetinho, cercado por metade da tripulação, em silêncio. Sem saber direito o que fazer, ele tomou o cão nos braços, e acariciou demoradamente sua cabeça, com os olhos marejados. Em seguida, o entregou ao imediato e disse-lhe para providenciar o enterro do cão, logo que possível, com a presença de toda a tripulação.
Zero foi enterrado no dia seguinte, com a presença da tripulação da corveta. O triste fato ocorreu no jardim da Base Naval, em um canteiro florido, com direito a lápide e tudo. Ele deve estar lá até hoje...  
O segundo fato chegou ao conhecimento do Comandante Alfredo algumas semanas depois, por um jornal de domingo, vindo do Rio de Janeiro, com atraso de dois dias. Uma noticia, em página interna, anunciava: “Tapume Mata Lorde Inglês”. O texto, em linguagem jornalística, dizia que Lorde Barrington, ex-governador da Guiana Inglesa, havia sido atingido por um tapume, despencado de uma obra, na Oxford Street. Seu carro, um Aston Martin, fora atingido em cheio pela pesada peça, enquanto circulava na famosa rua comercial da City londrina. O motorista sobrevivera gravemente ferido, porém o lorde morrera no local, apesar do pronto atendimento de emergência.  
Poucos dias depois, o Comandante Alfredo recebeu um telegrama do Itamaraty, assinado pelo Primeiro Secretário Albuquerque, participando-lhe a morte de Lorde Barrington e informando que o governo brasileiro enviara condolências à diplomacia britânica e à família do falecido.
O Comandante Alfredo fez questão de ler esse telegrama à sua tripulação, formada em parada, no convés da popa do navio...



28/11/2016

Olhai, senhores, esta Lisboa d’outras eras...

fotografia Moacir Pimentel


Moacir Pimentel

Um dos mais terríveis e mortais terremotos da história atingiu Lisboa no dia de Todos-Santos, o primeiro de novembro de 1755. A cidade foi completamente destruída. Do antigo Convento do Carmo que estivera no alto de Lisboa desde 1389 e da sua bela igreja foram deixados intencionalmente, após a tragédia, apenas os lindos arcos, sem teto, como um lembrete do pior dia na história de Lisboa.
Hoje, o antigo convento carmelita é um museu a céu aberto, com suas magníficas colunas de mármore que riscam o céu azul de Lisboa. Um lugar de paz - no qual bons concertos são realizados no verão - bem no coração do Chiado onde se vai para ler e passar o tempo e dar uma espiada no Museu Arqueológico que coleciona achados pré-históricos, romanos, medievais e pré-terremoto.
 
A história da cidade, como você já percebeu, é narrada antes e depois desse terremoto, de magnitude 9, que golpeou a cidade às 9:30 da manhã de um sábado, rasgando a terra entre as suas colinas. O tremor foi seguido por uma série de tsunamis devastadores e cinco dias de violentos incêndios nos escombros, que consumiram o que sobrara de pé dos edifícios, palácios e residências. Estima-se que o terremoto de 1755 matou um terço dos então duzentos e setenta mil habitantes da capital de Portugal.
 
A tragédia abalou a velha Europa. Lisboa fora uma grande cidade – uma das mais antigas sobre a Terra - e um fabuloso porto de onde os famosos navegadores se lançaram ao mar nas aventuras dos Descobrimentos. O terremoto e os incêndios destruíram o palácio real, a ópera, a catedral, a biblioteca. Foi incinerada a maioria dos mapas e escritos dos grandes exploradores e inúmeras obras de arte. Os sobreviventes passaram a viver em tendas, acampados nos arrabaldes da cidade arrasada, traumatizados e aterrorizados demais para voltar aos escombros e entregues a saqueadores.
 
O rei D. José I sobreviveu fugindo de Lisboa e o medo de espaços confinados determinou que vivesse, juntamente com a família e a corte, em uma versão elaborada de cidade de tendas até a sua morte.
 
O terremoto inspirou um frenesi filosófico e religioso e algumas batalhas entre famosas inteligências. Voltaire, por exemplo, horrorizado com a dimensão da desgraça e irritado com as acusações que passaram a ser feitas contra Portugal - que segundo muitos teria sofrido um ato de punição divina devido ao estilo de vida lascivo dos seus cidadãos - escreveu o seu "Poema sobre o desastre de Lisboa", em 1776.
  
“Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios
 Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias? 
 Lisboa está arruinada e dança-se em Paris”.
  
Seu sarcasmo foi dirigido especialmente contra o filósofo e matemático Gottfried Wilhelm Leibniz - morto fazia muito tempo! - que subscrevera a tese “otimista” de que Deus, sendo todo-poderoso e onisciente, havia criado o melhor de todos os mundos possíveis e que tudo o que acontecia nele - terremotos incluídos - eram uma parte do seu planejamento.
Voltaire foi, por sua vez, criticado pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau e, dizem os historiadores, escreveu Candide como uma refutação a tais críticas. Nessa história de Voltaire seguimos o otimista Pangloss e um seu jovem aluno Cândido nas suas desventuras, dando testemunho, inclusive, dos horrores do terremoto.
Mas embora o abalo sísmico tenha balançado o otimismo metafísico dos principais filósofos da Europa, em Lisboa a vida finalmente seguiu adiante.
A maior parte da cidade foi reconstruída, o entulho foi limpo e novos edifícios foram erguidos segundo uma nova arquitetura imaginada pelo Primeiro-Ministro, o Marquês de Pombal, que imediatamente dedicou-se à reconstrução da cidade, com um bom plano de ação:

"Enterrar os mortos e alimentar os vivos".

E botou as mãos à obra começando pela Baixa, o distrito entre duas principais colinas da capital, traçando–lhe novas ruas com uma régua, como uma grade. Daí um dos apelidos do bairro que tomou emprestado o sobrenome do marquês, passando a ser conhecido por Baixa Pombalina.

Sobraram as ruínas dos famosos Arcos do Carmo, as mais belas e comoventes ruínas de Portugal e um dos meus recantos prediletos na cidade. Não me recordo quando estive ali pela primeira vez. A maioria das minhas fotos do lugar são ainda da época da máquina analógica, daquele período paleolítico da vida, quando a gente gastava mais para revelar os filmes do que para viajar.
Continuo visitando esse canto de Lisboa pois aprecio a melancolia da construção, seu jeito sóbrio e aflito, a luminosidade da sua estética ímpar, essas ogivas antigas no coração do Chiado, defronte da Guarda Nacional, do Largo do Carmo e da sombreada e simpática praça que foi palco em 25 de abril de 1974, da Revolução dos Cravos.
Tivemos notícias do movimento que derrubou o ditador Antonio de Oliveira Salazar após quarenta e oito anos de abusos, através da canção censurada do Chico de nome Tanto Mar, na qual se pedia aos portugueses para nos guardarem um cravo da festa:

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
 Sei, também, que é preciso, pá
 Navegar, navegar...

Bem, os abusos não tiveram fim mas Portugal avançou e, por aqui, a censura acabou. O porquê do uso do cravo como símbolo da revolução, porém, continua controverso.
Dizem que no amanhecer daquele dia de primavera uma florista levava cravos para a decorar a inauguração de um hotel quando foi surpreendida por um soldado, solidário à revolução, que colocou um de seus cravos na ponta da espingarda, sendo imitado, logo em seguida, por todos os demais companheiros de armas.
Dizem que não foi bem assim e que a população é que saiu às ruas para comemorar o fim da ditadura distribuindo cravos, a flor nacional, aos soldados rebeldes em forma de agradecimento. Nunca saberemos.

fotografia Moacir Pimentel



A capital de Portugal às vezes me lembra, por incrível que possa parecer, da São Francisco americana. Ambas têm as famosas pontes de suspensão, a herança de terríveis terremotos, muita neblina de vez em quando e, é claro, os míticos passados.
Ambas têm seus bondinhos sacolejantes que, em Lisboa são chamados de funiculares ou ascensores...

Tem o ascensor da Bica que não se cansa de subir pela Rua da Bica de Duarte Belo, poupando muitos descobridores de uma das mais íngremes encostas lisboetas, aquela entre o Mercado da Ribeira e Calçada do Combro, no Bairro da Bica, ao lado da Igreja de Santa Catarina.

Famoso é ainda o ascensor da Glória que há mais de um século linka a Praça dos Restauradores ao Miradouro de São Pedro de Alcântara, no Bairro Alto, se sacudindo através da Calçada da Glória.
 
E como não homenagear o ascensor do Lavra, o primeiro funicular de rua de passageiros do mundo, que manda na Calçada do Lavra e permite aos pobres mortais as vistas do Mirante do Torel?  
 
Os funiculares portugueses - que já foram movidos à tração e a vapor e que foram eletrificados na segunda década do século XX - são uma viagem divertida, muitos deles vintage da gema, da década de 1920. Sacudindo e tremendo lá se vão eles pela cidade antiga e de alguma forma conseguem passar em segurança a apenas míseros centímetros dos carros estacionados oferecendo vistas ventiladas da cidade. Para apreciar melhor a paisagem, porém, não aconselho ninguém a cometer o desatino de, nessas aventuras elétricas, espichar a cabeça para fora das janelas do coletivo.

Mas a Lisboa verdadeira, especial, sedutora, a gente só pode apreciar a pé. Lisboa tem tesouros nos seus becos que só aos pedestres confessa e que, dependendo da estreiteza das vielas, não se tem ângulo nem para fotografar.

Aqui entre nós e baixinho Lisboa foi contruída sobre mais do que sete colinas, mas como Roma só tem sete, os tugas decidiram que estava de bom tamanho.
Quando uma cidade é construída sobre colinas, sejam lá quantas forem, dá um imenso trabalho a quem quer explorá-la intimamente. O terreno montanhoso e ondulante faz bufar os turistas amadores que suam para abrir caminhos na direção das belas paisagens e dos sons e sabores dessa Lisboa que, essencialmente, é uma cidade de bairros, de aldeias dentro de uma cidade.

A parte mais baixa de Lisboa se espalha por um vale flanqueado por duas colinas ao longo das margens do Rio Tejo. Três bairros característicos cresceram a partir de suas ribeiras: tem a Baixa, o coração da cidade, a Alfama, o emaranhado de ruas medievais com sotaque árabe na colina ao leste e o Bairro Alto, na colina do lado oeste, cujas ruas de pedra foram tomadas de assalto por restaurantes, bares e discotecas nas últimas décadas.

Lisboa jamais perde a capacidade de encantar e surpreender por mais que conheçamos os seus segredos, a arquitetura secular, as ruelas encantadas, o legado mouro, as feiras e mercados onde pessoas se reúnem há milênios.
Gosto de olhar Lisboa do alto, a partir dos miradores que antes eram desconhecidos pela “estranja” como, por exemplo, o da Penha de França de onde ao longe se descortina a Serra de Sintra e vê-se um Tejo deslumbrante e não tem como não pensar no que pensavam os marinheiros antes de se aventurarem por mares nunca dantes navegados. Imperdíveis também são as longas vistas da Baixa a partir dos terraços tranquilos de São Pedro de Alcântara onde se pode chegar pelo funicular da Glória.
Além disto, dali se pode ter a visão perfeita das duas faces da cidade: de um lado a Lisboa do século XXI, moderna e futurista, do outro uma Lisboa clássica, medieval, ajardinada e caótica, graçasadeus.

O Chiado e o Bairro Alto na última década viraram alternativos, chiques, e gays – nada contra! - mas escanteados pelos fashionistas de plantão - entre as lojas trendy e as vintage, as discotecas descoladas e os bares de vinho da moda e as lojas gourmets conceituais - lá ainda estão embora desbotadas, coitadas, a Ourivesaria Leitão & Irmão, os joalheiros dos coroados há séculos, de braços dados com a Vista Alegre das melhores porcelanas portuguesas nas vitrines e –juro-te! – a Luvaria Ulisses e a Casa das Velas do Loreto, a marca mais antiga de Portugal.
Por lá ainda se consertam brinquedos antigos de quando éramos meninos e se restaura de tudo e se reinventam os azulejos. Entre as novidades e na direção do Príncipe Real, na Rua Dom Pedro V moram mercearias tradicionais, lojinhas de quinquilharias honestas e os prédios restaurados que, de vez em quando, escondem belos jardins e mesas aconchegantes em seus quintais. Essa porção norte do Bairro Alto resiste à especulação imobiliária e ainda é residencial.
É só descer a colina para chegar à Rua de São Bento no bairro de nome idêntico com seus maravilhosos antiquários.
E como não falar da Mouraria? Nada que eu pudesse lhe dizer falaria mais alto que Amália...


“Ai Mouraria, dos rouxinóis nos beirais, dos vestidos cor-de-rosa, dos pregões tradicionais.
Ai Mouraria, das procissões a passar, da Severa em voz saudosa na guitarra a soluçar”.

Ai Mouraria, o bairro da tolerância, onde aos mouros foi permitido viver depois da conquista de Lisboa em 1147, até serem expulsos juntamente com os judeus em 1497.

Desses tempos de exilados pouco restou a não ser pedaços da Cerca Moura. Mas a Mouraria continua, estranhamente, multicultural e boêmia. Lá a diversidade continua desfilando orgulhosa. É hoje o bairro dos imigrantes do Bangladesh, dos chineses, indianos, paquistaneses e moçambicanos e, no entanto continua tão lisboeta quanto era quando lá morava a bela Severa, a fadista que se apaixonou por um conde e levou a música do povo aos salões aristocratas.

Na Mouraria nasceu a Mariza, que cresceu pelas suas ruas antes de subir nas grandes ribaltas, aprontando na Chinatown, soltando pipa no miradouro do Monte Agudo, nas calçadas do Colégio dos Meninos Órfãos lá na Rua da Mouraria e saboreando o mundo inteiro nos quiosques da Praça San Martin.

Pensei em muitas fotos para enfeitar a Mouraria. Porém acho que nenhuma imagem seria capaz de ilustrar melhor o bairro do que o quadro O Fado, do pintor português José Malhoa, um filho daquelas paragens.
 
Na tela, que mora no Museu do Fado, foram retratados dois amantes famosos do bairro: Amâncio, afamado fadista e marginal apelidado de Pintor - sabe-se lá porque - e Adelaide, mulher de má vida, conhecida por Adelaide da Facada devido à cicatriz que lhe marcava o rosto.


Dizem que Malhoa penou para concluir o quadro. Que inúmeras vezes gastou o dinheiro que não tinha para pagar as fianças e libertar o seu modelo desordeiro da cadeia. Que tornou-se perito em pacificar as brigas do casal e que a arte teve que se curvar diante dos ciúmes tempestuosos de Amâncio.
Enquanto o meliante estava preso, por exemplo, Malhoa aproveitava para desnudar os ombros e até mesmo um seio atrevido da Adelaide. Assim que era posto em liberdade não tinha conversa: Amâncio tomava as providências obrigando o pintor a cobrir de tintas mais pudicas a sua musa.

“Ai Mouraria, da mulher do meu encanto que me mentia mas que eu adorava tanto.....”

Conta a lenda que o pintor convidava ao seu estúdio os habitantes da Mouraria e as figuras da elite intelectual da cidade para opinar sobre a obra. E que a fazia e refazia até que deu um basta e para satisfazer à plateia terminou pintando outras telas com o mesmo tema.
E depois do fado para onde iremos?

Noutra conversa voltaremos à Baixa. Quem não volta?





27/11/2016

A Alma das Coisas

fotografia Wilson Baptista Junior

Wilson Baptista Junior

Quando a Ana olha para meu escritório, na nossa casa, ela diz que eu sou um acumulador.
Mas é porque ele é cheio de livros. Livros por todos os cantos. Em algumas prateleiras eles estão em camadas de dois ou de três, umas atrás das outras. Outros, deitados, enchendo o espaço acima dos que estão em pé.
Fazer o que? São livros... E alguns dos meus leitores certamente sabem que de alguns livros é muito difícil se desapegar. A não ser quando não tem jeito mesmo.
E todos os que restaram cá em casa, depois de sucessivas limpezas e doações, são destes que a gente não quer mandar embora.
Eu diria que, se não contarmos com os livros, eu não sou um acumulador.
Mas de algumas coisas eu gosto. Para além da utilidade que têm para nós. Porque há coisas que falam com a gente.
O nosso bom e sábio budista, o Antonio, nos ensina que todos os seres vivos, animais ou plantas, têm alma, e compreendem as coisas. E não só os seres vivos, até as pedras podem nos ouvir.
Pois eu acredito que as coisas também têm alma. Talvez nem todas, mas muitas. Ninguém que as vê negaria que uma escultura de Michelangelo ou de Camille Claudel guarda em si um pouco da essência, da força, do maravilhamento interior de quem a esculpiu. Não é atoa que contam (e si non é vero é bene trovato) que Michelangelo, quando terminou de esculpir seu Moisés, bateu-lhe no joelho com o martelo e exclamou “perché non parli”? Porque não falas?
Mas não estou falando aqui das grandes obras primas, mas de coisas humildes, utilitárias, como o moedor de café do bisavô do Moacir de que ele nos falou outro dia.
Estou falando aqui da faca de caça que herdei de meu avô Juquinha (naquele tempo chamava-se “faca de mato”), e que alguns anos atrás dei de presente a um de nossos filhos para que ele a guardasse. Uma faca inglesa do final do século XIX. Feita numa fábrica, mas forjada à mão, ainda se veem na lâmina as marcas do martelo do forjador. Que pegou o pedaço de aço e lhe deu forma com martelo e bigorna, depois a afiou, temperou e deu o fio final. O cabo de chifre de veado foi cortado e afeiçoado provavelmente por outro artesão, e outro deve ter ajustado a guarda e rebitado o cabo na lâmina.
A faca não ficou guardada num estojo, deve ter entrado e saído muitas vezes da bainha de couro presa ao cinturão do seu dono, para isso tinha sido feita, mas ainda hoje, cento e vinte e muitos anos depois, a gente pode ver o ajuste perfeito dos rebites, as partes do cabo sem nenhuma folga, e sentir o cuidado, a maestria, o trabalho bem feito dos operários que a fizeram.  Em quantas caçadas ela acompanhou o seu dono, em quantos fogos de acampamento foi usada para a comida da noite, quantas histórias (verdadeiras ou mentirosas, como as histórias das caçadas e pescarias que meu avô me contava) teria para contar...
Estou falando aqui das ferramentas de meu bisavô paterno, o Mestre Augusto, mestre carpinteiro da velha Santa Luzia, de um tempo e um lugar em que os carpinteiros começavam o trabalho indo à mata derrubar a árvore que depois seria falquejada, serrada e aplainada para se transformar nas vigas, nos caibros e nas tábuas de que eles precisavam. Ainda estão penduradas numa parede da oficina da casa de meu pai as serras, as garlopas, as plainas, as plainas de esquadria, as plainas de roda. Ele também fazia os cabos das serras e os corpos das plainas, as lâminas (que ele chamava de “ferros”) vinham da Inglaterra, das forjas de Sheffield, o mesmo lugar de onde veio a faca do meu avô.
No meu tempo na primeira casa de meus pais elas ainda viram uso; da primeira vez em que tive um quarto só para mim, quando fui morar na casa vizinha da minha avó Dindinha, filha do Mestre Augusto (já falei dela aqui num outro post), resolvi que ia fazer minha cama e minha estante eu mesmo, e sem usar ferramentas a motor, como se fazia no tempo dele. Nunca vou esquecer como era boa a sensação, depois de afiar cuidadosamente a lâmina de uma garlopa na pedra de óleo e ajustá-la bem alinhada, de levá-la ao longo de uma peça de madeira de dois metros e pouco de comprimento, ouvindo o sussurro da lâmina enquanto cortava uma virola fina como uma folha de papel que ia se enrolando até se partir. Nem da sensação de passar depois os dedos pela superfície aplainada, e sentir sua lisura mesmo antes de usar a lixa.
A cama e a estante vieram para nossa casa quando nos casamos, a cama ficou muito tempo como um sofá no escritório e a estante na sala e depois no escritório, até que foram dadas de presente a um colega meu de trabalho que estava montando por sua vez seu quarto de solteiro.
Quando eu usava as ferramentas dele, imaginava se lá em cima Mestre Augusto estaria aprovando ou não a qualidade do resultado dos meus esforços (provavelmente não...), e se estaria contente de ver uma plaina que ele tinha feito bem antes de meu pai ter nascido ainda sendo usada pelo bisneto...
E quando via a perfeição com que aquela plaina cortava a madeira, imaginava se as mãos dele que durante tantos anos a guiaram não estavam, ao menos um pouquinho, guiando as minhas.
Contax II 1936 (imagem Pindelski.org)

Estou falando aqui das máquinas fotográficas de meu pai, verdadeiras peças de relojoaria esculpidas em aço e latão, em vez do plástico e dos circuitos eletrônicos das máquinas de hoje, e que eu também, e meus irmãos, levamos por tanto tempo como companhia por tantos lugares. Quando pego numa delas a sensação é muito diferente de pegar numa das nossas de hoje. Cada objetiva delas que pego me traz através das mãos a lembrança de uma fotografia tirada, de um lugar e um momento, talvez cinquenta ou mais anos atrás, que foi para mim importante o bastante para parar, abrir a bolsa de equipamento, tirar a que estava na máquina, colocar a outra que devia ser mais adequada. Enquanto as nossas de hoje daqui a cinco ou dez anos provavelmente estarão no lixo ou terão sido recicladas, porque já não se farão mais baterias para aquele modelo, substituído por sei lá que nova maravilha.
O cesto de lixo ao lado da mesa em que estou é uma caixa simples de madeira, com pés cortados nas próprias laterais e dois furos para servirem de alças. É pesado. Porque no lugar dele não está um desses novos de aço furadinho, leves, bonitos? Porque este era o do escritório do meu avô Juquinha, que Mamãe me trouxe faz muito tempo e que eu recolei as juntas, lixei, tornei a encerar. Me lembra dele, da mesa da qual ficava ao lado e onde as gavetas eram uma verdadeira arca de tesouros para os netos, e as estantes de livros que eu ia explorar. Quando olho para ele penso que deve estar caladamente feliz de continuar fazendo o trabalho para o qual foi feito, em vez de ter virado lenha ou apodrecido num lixão.
Numa das prateleiras da estante atrás de mim vigia uma linda escultura em madeira de um puma, uma onça suçuarana, que meu pai esculpiu e deu para a Ana de aniversário. Nosso netinho mais velho, que é doido com animais, e talvez conheça mais a silhueta do puma do que seu bisavô conhecia, não o chama de puma, diz que é “o felino”. Quando chega aqui em casa uma das primeiras coisas que faz é buscá-la na prateleira, com todo o cuidado, para brincar com ela. Podíamos dá-la para ele, talvez um dia ele queira guardá-la como lembrança dos avós. Mas, por enquanto, ela ainda tem a magia que faz com que ele a procure quando vem cá em casa. Enquanto tiver essa magia ela vai ficar por aqui à espera dele.
Na copa da nossa casa, lindeira ao escritório, mora desde sempre na parede um relógio de cuco. Daqueles antigos, alemães, feitos na Floresta Negra. Foi presente de casamento para os pais da Ana. Tem pelo menos setenta anos. Como o espelho antigo de um desenho inesquecível do Quino, já deve estar cansado e se atrasa um pouco, por mais esforços que eu faça para regular seu pêndulo. De tempos em tempos tem que ser levado a um relojoeiro que ainda entenda destes relógios para suas entranhas serem limpas e lubrificadas, o que eu não me atrevo a fazer. Há muito tempo o cuco ficou rouco, o relojoeiro teve que trocar sua laringe. Ele viu a Ana nascer, crescer e se casar, veio para cá e viu nossos filhos crescerem, viu nossos netinhos chegarem, marcou tantas horas de alegria e algumas de tristeza, e continua com seu tique e taque a marcar o ritmo do coração da casa. À noite, quando algum de nós tem insônia, conta as horas pelo canto do cuco.
Nas poucas ocasiões em que ele teve que ser deixado por alguns dias no relojoeiro, parecia que faltava um pedacinho da alma da nossa casa. 
              Não sei bem se somos nós que somos apegados a essas coisas, ou se são elas que também são um pouquinho apegadas a nós...


26/11/2016

O Fiozinho

Manivela de soltar pandorga - imagem etsy,com


Francisco Bendl

As minhas tias-avós, que já foi comentado por mim a respeito do quanto elas foram importantes na minha vida, quando nasci em 1950 tinham uma propriedade na praia de Tramandaí, RS, um chalé.

Atualmente esta cidade é o maior balneário do RS, recebendo perto de meio milhão de pessoas no alto da temporada (fevereiro) aos fins de semanas.

Desta forma, eu jamais me considerei um turista ou veranista, a ponto de ao demolirmos a velha casa erguida em 1939, no ano de 1970, foi com a filha do construtor que eu me casei, a professora Marli, a minha amada e pacienciosa esposa de quarenta e seis anos!

Amizades foram sendo formadas ao longo desse tempo, portanto.

Um dos casais muito meu amigo, Hugo era o nome dele, verdadeiro, era um dos mestres em “aprontar”.

Como éramos do mesmo time de vôlei e futebol, jogávamos no terreno ao lado da sua casa diariamente, nas férias de verão. À noite, invariavelmente, nos reuníamos para jogar... PINGA!

Não, não era cachaça, mas o nome de um jogo de cartas, sensacional.
O baralho inteiro, cinquenta e duas cartas, é dividido pelo número de participantes, e dá início aquele que tem o sete de ouro.

O próximo deve continuar jogando se colocar a sequência tanto para cima como para baixo do mesmo naipe. Caso não tenha, ele só pode mudar se colocar outro sete na mesa, e não tendo esta opção, então... PINGA, o valor da moeda estabelecido antes do jogo, claro.

O segredo é a estratégia de segurar uma das cartas chave, que impede o outro jogador seguir adiante.

Bom, apesar de o jogo ser agradável, e tínhamos quarenta anos mais ou menos, queríamos movimento, algo novo, inédito.

Descobrimos que o barbante de soltar pandorga, a tal da fieira, se untada no seu início com parafina - presa na parede de uma casa de madeira, e só de madeira - sendo passada pelo fio no seu início, e não precisa em toda a sua extensão, que deve ter um carretel comprido, reverberava na casa toda, ou seja, prendíamos o fio com percevejo, esticávamos até onde poderíamos nos esconder e... não deixávamos ninguém dormir pelo barulho que as batidas com a mão no fio acarretava na casa onde havia sido fixado!

O som era exatamente o de um violino desafinado, insuportável!!!

Claro que os amigos que desconheciam este segredo guardado a sete chaves eram os alvos, e cenas hilariantes, memoráveis e inesquecíveis foram sendo colecionadas a cada temporada.

Começava assim:
Uma vez a casa sendo escolhida, de madeira, repito, à noite pregávamos o barbante numa das paredes, preferencialmente naquela do quarto, apesar de na sala o barulho ser ouvido, mas no quarto era melhor.

Ao som de violinos desencontrados ou desafinados, a “vítima” e sua esposa ou ao contrário, acordavam e acendiam a luz!

Nesse momento, monitorados que estavam, parávamos com o ruído.

Minutos depois, a luz apagava, dando a entender que nada foi encontrado e o casal voltava a dormir.

Reiniciávamos com o “fiozinho”.

Desta vez não só a luz acendia como a janela do quarto era aberta!
O casal olhava de um lado para outro, para cima e para baixo e, claro, não enxergava o barbante fixado na parede porque era escuro e instalado em local alto, preferencialmente.

Nessas alturas, tínhamos de cuidar as risadas, de modo que elas não acusassem onde estávamos e que eram “amigos” os causadores dos “ruídos misteriosos”.

Na terceira vez, após uma inspeção pela casa, o casal mais os filhos e visitas se tivessem, iam para a rua verificar o que acontecia!

Ouvíamos relatos de RAPOSA saindo correndo, gambá, morcegos, a diversão era extraordinária!

Evidente que  para voltarem a dormir demorava muito mais, então esperávamos por uma oportunidade e íamos embora, rindo pelas ruas o feito realizado.

No dia seguinte visitávamos os vizinhos que, sem perguntarmos nada, comentavam sobre o som estranho na madrugada, e que a casa precisava ou ser desinfetada ou era a madeira “trabalhando” após o sol quente do dia!!!

Houve um episódio que ficará na memória até eu ir desta para melhor (será?):

O “fiozinho” estava sendo usado com perícia e arte, vontade e execução com esmero na casa do meu primo Flávio, às margens da lagoa que circunda uma  parte da cidade litorânea, onde nos encontrávamos bem escondidos atrás de um barco de pesca (canoa) e água pelos joelhos. 
Invariavelmente as reações iniciais eram as mesmas, de acender a luz do quarto, depois saíam da cama e, na terceira vez, abriam a porta da casa e iam para o pátio, tentando identificar o som pavoroso que a parede emanava interessante e curiosamente!

Desta vez, porém, como este primo que tenho é teimoso, uma mula vestida, ele passa a jogar água nas paredes da casa, falando bem alto que o precioso líquido iria “refrigerar” a madeira, parando de fazer o ruído perturbador.

A esposa, atuante, dinâmica - eles eram recém casados, motivo mais do que suficiente para receber o “fiozinho” -, ainda dava palpites onde o Flávio tinha de direcionar a mangueira para umedecer o chalé. 
Diante da demora desta solução encontrada, molhar a casa, sem maiores delongas e perto de onde estávamos e porque era de madrugada, nesse momento quase que mergulhados até a cabeça para não sermos flagrados em pleno crime, a Maria desce o pijama no canto do pátio e.... pspspspspspsp, faz um longo xixi!!!!!

Bom, não havia como segurar as gargalhadas!
Entretanto, quando saímos da lagoa e rindo, com a Maria em dúvida se corria ou levantava o pijama  - a cena era muito divertida -, este casal levou um susto tão grande, que o Flávio só balbuciava que podíamos levar o que quiséssemos, menos agredi-los!!!

Ao se dar por conta que era o “primo” Chicão o autor do espanto com mais dois outros “bandidos”, quem precisou correr fomos nós, ameaçados de morte com o Flávio berrando que iria buscar o revólver!!!

O almoço de domingo na minha casa de praia com a presença do primo foi antológico. 
As gargalhadas ecoavam pela rua. 
A “prima” em princípio não tinha cara de quem havia aprovado a brincadeira, mas depois dos detalhes sendo contados de um  lado e do outro, a Maria posteriormente passou a fazer parte do time do “fiozinho”, e nos levou a incomodar alguns parentes até mesmo em cidades perto de Tramandaí!

Um dos últimos fiozinhos que fizemos foi na casa do Antônio – teu xará, Rocha -, que jurou por muitos meses que a sua residência sofrera um “despacho”, e espíritos malignos a tinham habitado!

Custou acreditar que o “fenômeno” era causado por um barbante e parafina, meses depois quando lhe revelamos a origem das “almas penadas”.


Quem estiver interessado em se divertir, compra barbante de soltar pandorga, parafina, e conforme o fio vai sendo passado pelo produto – parece um pedaço de vela -, o som que por ele é conduzido preso por um percevejo quando chega na casa escolhida aumenta dezenas de vezes, imitando violinos desafinados ou acordes de quem pela primeira vez usa o instrumento, portanto, UMA TORTURA CHINESA, MAS ALTAMENTE DIVERTIDA e sem vítimas!!!