Wilson Baptista Junior
A visita da Dulce à Basílica de Santo Estêvão, onde chegou no momento de
um concerto, me fez lembrar de uma surpresa que a Ana e eu tivemos uma vez em
Paris.
Estávamos passeando pelo Quartier Latin quando, num pátio fechado aos
automóveis, nos deparamos com o que imaginamos fosse a entrada cinzenta de uma pequena
igreja.
Alguns cartazes na porta anunciavam concertos de música de câmara que
seriam realizados nos próximos dias.
fotografia WBJ |
Entramos e passamos por um pequeno salão, talvez uma capela, onde alguns
músicos ensaiavam uma peça barroca que não identifiquei, me lembro apenas que naquele
momento um solista tocava uma bela parte de flauta.
Com cuidado para não os perturbarmos continuamos a entrar e
desembocamos, em vez de na pequena igreja que esperávamos, numa enorme nave
gótica, completamente vazia.
Foi uma sensação de puro maravilhamento; a luz dourada coada pelos vitrais e refletida nos arcos de pedra, a amplitude inesperada do espaço, a música linda que vinha do local do ensaio.
Foi uma sensação de puro maravilhamento; a luz dourada coada pelos vitrais e refletida nos arcos de pedra, a amplitude inesperada do espaço, a música linda que vinha do local do ensaio.
A porta pela qual tínhamos vindo era apenas uma entrada lateral da
belíssima igreja de Saint Séverin. A impressão que tive foi como se estivesse
num dos filmes do Dr. Who, onde se entra numa pequena cabine telefônica da
polícia londrina e de repente a gente se encontra dentro de uma nave espacial
de dimensões inimagináveis e fora do nosso tempo...
fotografia WBJ |
Descrever a igreja seria muito longo, ela é muito bonita, com um órgão
maravilhoso, belíssimos vitrais, algumas colunas retorcidas inesperadas no
final da nave.
Mas o que mais despertou minha atenção foi uma placa em um dos pilares
laterais, logo acima de uma pia de água benta:
fotografia WBJ |
Traduzindo a inscrição:
“No último dia de janeiro de 1676,
nesta paróquia de Saint Séverin, morreu,
na Rue des Mâçons, na Sorbonne,
Bertrand Ogeron,
senhor de La Bouère-en-Jallais,
que, de 1664 a 1675,
lançou os alicerces de uma
sociedade civil e religiosa, entre os flibusteiros e bucaneiros das ilhas da
Tortuga e de São Domingos.
Assim ele preparou,
pelos caminhos misteriosos da Providência, os destinos da República do
Haiti.
Descanse em paz”
Depois fui descobrir que o Sieur Bertrand, que era filho de um grande
comerciante, alistou-se num regimento da marinha francesa, foi tornado nobre
por seus feitos em combate, e resolveu ir para a América colonizar a Martinica.
Só que, chegando lá, desistiu do projeto e foi para São Domingos, onde se
tornou um pirata, depois virou plantador de tabaco e impulsionou a colonização da ilha
trazendo para as plantações trabalhadores contratados da França, assumiu a
chefia da ilha, que ainda não tinha um governador, e deu “cartas de corso” aos seus amigos piratas, que era como se chamava na época uma autorização para atacarem navios
de outros países. Governou até 1675, quando algumas de suas medidas revoltaram
os bucaneiros e causaram sua deposição e sua volta para a França, onde morreu
no ano seguinte.
A idéia de um aventureiro e pirata lançando entre bandidos os
fundamentos de uma “sociedade civil e religiosa” que acabou eventualmente se
transformando num país e numa república (depois de uma revolta sangrenta contra
a França, mas essa já é uma história à parte), e sendo por isso imortalizado para os fiéis na pilastra de uma igreja parisiense me pareceu invulgar.
A placa não tem data. Foi colocada em 1864, quase dois séculos depois da sua morte, pelo Conservador dos Arquivos da Marinha Francesa, que deve ter achado o caso interessante e resolveu homenagear ao mesmo tempo o comandante naval e o paroquiano da igreja. Que, pela sua história, não devia ter muito de santo...
A placa não tem data. Foi colocada em 1864, quase dois séculos depois da sua morte, pelo Conservador dos Arquivos da Marinha Francesa, que deve ter achado o caso interessante e resolveu homenagear ao mesmo tempo o comandante naval e o paroquiano da igreja. Que, pela sua história, não devia ter muito de santo...
1)Bom texto; visitei a bela Igreja.Me chamou a atenção a altura e as muitas cadeiras nos locais de bancos ...
ResponderExcluir2)Aprendi um pouco da História do Haiti e adjacências ...
3)Como se dizia antigamente: o Blog do Mano é Cultura.
4)Bom fim de semana a todos (as).
Antonio, as igrejas antigas, góticas e romanicas, não tinham bancos, ou tinham apenas assentos para os eclesiásticos e genuflexórios para os nobres, perto do altar principal. Para o povo, não. As cadeiras da Saint Séverin são adição moderna.
ExcluirA história do Haiti é um dos capítulos interessantes da América, foi o único país que se libertou dos colonizadores por uma revolta dos escravos.
Olá, Wilson. Ler seu blog é aproveitar para enriquecer nosso conhecimento, através das trocas aqui feitas. Para mim foi uma grande informação a existência dessa igreja, que pelo seu relato, deve ser um daqueles lugares aconchegantes para meditar, orar e ouvir belos concertos que, pelo o que li, acontecem sempre. Claro que fui ler mais detalhes sobre ela e vi fotos dos vitrais, do órgão,e das colunas retorcidas. E várias homenagens a fiéis paroquianos que ali frequentavam, o pirata era um deles. Encontrei também um vídeo de música medieval muito bonito e bom para relaxar. Anotado para visitá-la, em uma próxima viagem a Paris. Abraços
ResponderExcluirDulce, ela vale bem uma visita. Eu gostaria de ter ouvido o órgão; como a maioria das igrejas góticas, a acústica deve ser excelente oara ele. Ou para o cantochão.
ExcluirQuem sabe numa próxima vez.
Wilson,
ResponderExcluirMais um belo post a nos mostrar que Dona História grava em placas de pedra os nomes de quem move o mundo, mesmo de invulgares piratas. Deve ter sido uma viagem entrar na igreja de Saint Séverin sem perceber e, de repente, se ver naquela nave que deixa qualquer um tonto. Você e a Donana têm um olhar afiado: confesso que o prezado Bertrand Ogeron de La Bouèreme me passou batido. Por lá eu fiquei foi de torcicolo de tanto olhar as colunas torcidas se desenrolando em tetos.Depois fugi para fotografar o batalhão de gárgulas externo ,uma das minhas manias.
São flashes com esse - um pirata do Caribe sepultado numa igreja do Quartier Latin - os verdadeiros souvenirs de uma viagem, aqueles que resultam em evolução pelo menos na compreensão que temos da história que escrevemos.
Foi na pequena ermida de Nossa Senhora do Mileu ,perto do Castelo de Veiros , no Alto Alentejo onde, por exemplo e por acaso eu me deparei com o nome de um cristão novo - Pêro Esteves, vulgo o Barbadão - para em seguida e de queixo caído, descobrir ter sido sua bela filha ,a judia Inês, a amante do Mestre de Avis e futuro Rei D. João I de Portugal, e a mãe de D. Afonso I o fundador da Casa de Bragança, a poderosa casa real portuguesa.Desde então estudo a herança judia na t'rrinha. Foi num mercado popular na Ásia , surpreendido diante de um balaio de sapotis - fruta da minha infância - que entendi o quando os homens modificaram a flora do vasto mundo e quão poucas árvores flores e frutas, em qualquer paragem, são nativas.
Não sei se isto é cultura , como dizem os nossos caros vizinhos comentaristas. Entendo como o desejo tão humano de querer saber de onde viemos pois ainda temos muito a navegar, a embarcar e a desembarcar.
Abraço
Moacir, foi mesmo uma viagem, algo totalmente inesperado. E os melhores souvenirs são mesmo as "pequenas coisas", as grandes pequenas coisas que tecem a tapeçaria onde estamos trançados com o resto desse nosso mundo, ao mesmo tempo tão grande e tão pequeno.
ExcluirComo essa parte, que eu não conhecia, da história dos Braganças. Que me chega como um pouco de desagravo aos cristãos novos dos meus antepassados :)