fotografia Moacir Pimentel |
Moacir
Pimentel
Um dos mais terríveis e mortais terremotos da história
atingiu Lisboa no dia de Todos-Santos, o primeiro de novembro de 1755. A cidade
foi completamente destruída. Do antigo Convento do Carmo que estivera no alto
de Lisboa desde 1389 e da sua bela igreja foram deixados intencionalmente, após
a tragédia, apenas os lindos arcos, sem teto, como um lembrete do pior dia na
história de Lisboa.
Hoje,
o antigo convento carmelita é um museu a céu aberto, com suas magníficas
colunas de mármore que riscam o céu azul de Lisboa. Um lugar de paz - no qual
bons concertos são realizados no verão - bem no coração do Chiado onde se vai
para ler e passar o tempo e dar uma espiada no Museu Arqueológico que coleciona
achados pré-históricos, romanos, medievais e pré-terremoto.
A história da cidade, como você já percebeu, é narrada
antes e depois desse terremoto, de magnitude 9, que golpeou a cidade às 9:30 da
manhã de um sábado, rasgando a terra entre as suas colinas. O tremor foi
seguido por uma série de tsunamis devastadores e cinco dias de violentos
incêndios nos escombros, que consumiram o que sobrara de pé dos edifícios,
palácios e residências. Estima-se que o terremoto de 1755 matou um terço dos então
duzentos e setenta mil habitantes da capital de Portugal.
A tragédia abalou a velha Europa. Lisboa fora uma grande
cidade – uma das mais antigas sobre a Terra - e um fabuloso porto de onde os
famosos navegadores se lançaram ao mar nas aventuras dos Descobrimentos. O
terremoto e os incêndios destruíram o palácio real, a ópera, a catedral, a
biblioteca. Foi incinerada a maioria dos mapas e escritos dos grandes
exploradores e inúmeras obras de arte. Os sobreviventes passaram a viver em
tendas, acampados nos arrabaldes da cidade arrasada, traumatizados e
aterrorizados demais para voltar aos escombros e entregues a saqueadores.
O rei D. José I sobreviveu fugindo de Lisboa e o medo de
espaços confinados determinou que vivesse, juntamente com a família e a corte,
em uma versão elaborada de cidade de tendas até a sua morte.
O terremoto inspirou um frenesi filosófico e religioso e
algumas batalhas entre famosas inteligências. Voltaire, por exemplo,
horrorizado com a dimensão da desgraça e irritado com as acusações que passaram
a ser feitas contra Portugal - que segundo muitos teria sofrido um ato de
punição divina devido ao estilo de vida lascivo dos seus cidadãos - escreveu o
seu "Poema sobre o desastre de Lisboa", em 1776.
“Lisboa,
que não é mais, teve ela mais vícios
Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias?
Lisboa está arruinada e dança-se em Paris”.
Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias?
Lisboa está arruinada e dança-se em Paris”.
Seu sarcasmo foi dirigido especialmente contra o filósofo
e matemático Gottfried Wilhelm Leibniz - morto fazia muito tempo! - que
subscrevera a tese “otimista” de que Deus, sendo todo-poderoso e onisciente,
havia criado o melhor de todos os mundos possíveis e que tudo o que acontecia
nele - terremotos incluídos - eram uma parte do seu planejamento.
Voltaire foi, por sua vez, criticado pelo filósofo
Jean-Jacques Rousseau e, dizem os historiadores, escreveu Candide como uma
refutação a tais críticas. Nessa história de
Voltaire seguimos o otimista Pangloss e um seu jovem aluno Cândido nas suas
desventuras, dando testemunho, inclusive, dos horrores do terremoto.
Mas embora o abalo sísmico tenha balançado o otimismo
metafísico dos principais filósofos da Europa, em Lisboa a vida finalmente
seguiu adiante.
A maior parte da cidade foi reconstruída, o entulho foi
limpo e novos edifícios foram erguidos segundo uma nova arquitetura imaginada
pelo Primeiro-Ministro, o Marquês de Pombal, que imediatamente dedicou-se à
reconstrução da cidade, com um bom plano de ação:
"Enterrar os
mortos e alimentar os vivos".
E
botou as mãos à obra começando pela Baixa, o distrito entre duas principais colinas da capital, traçando–lhe
novas ruas com uma régua, como uma grade. Daí um dos apelidos do bairro que
tomou emprestado o sobrenome do marquês, passando a ser conhecido por Baixa
Pombalina.
Sobraram
as ruínas dos famosos Arcos do Carmo, as mais belas e comoventes ruínas de
Portugal e um dos meus recantos prediletos na cidade. Não me recordo quando
estive ali pela primeira vez. A maioria das minhas fotos do lugar são ainda da
época da máquina analógica, daquele período paleolítico da vida, quando a gente
gastava mais para revelar os filmes do que para viajar.
Continuo
visitando esse canto de Lisboa pois aprecio a melancolia da construção, seu
jeito sóbrio e aflito, a luminosidade da sua estética ímpar, essas ogivas
antigas no coração do Chiado, defronte da Guarda Nacional, do Largo do Carmo e
da sombreada e simpática praça que foi palco em 25 de abril de 1974, da Revolução
dos Cravos.
Tivemos
notícias do movimento que derrubou o ditador Antonio
de Oliveira Salazar após quarenta e oito anos de abusos, através da
canção censurada do Chico de nome Tanto Mar, na qual se pedia aos portugueses
para nos guardarem um cravo da festa:
Sei que há
léguas a nos separar
Tanto mar,
tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar...
Bem,
os abusos não tiveram fim mas Portugal avançou e, por aqui, a censura acabou. O
porquê do uso do cravo como símbolo da revolução, porém, continua controverso.
Dizem
que no amanhecer daquele dia de primavera uma florista levava cravos para a
decorar a inauguração de um hotel quando foi surpreendida por um soldado,
solidário à revolução, que colocou um de seus cravos na ponta da espingarda,
sendo imitado, logo em seguida, por todos os demais companheiros de armas.
Dizem
que não foi bem assim e que a população é que saiu às ruas para comemorar o fim
da ditadura distribuindo cravos, a flor nacional, aos soldados rebeldes em
forma de agradecimento. Nunca saberemos.
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A capital de Portugal às vezes me lembra, por
incrível que possa parecer, da São Francisco americana. Ambas têm as famosas
pontes de suspensão, a herança de terríveis terremotos, muita neblina de vez em
quando e, é claro, os míticos passados.
Ambas têm seus bondinhos sacolejantes que, em
Lisboa são chamados de funiculares ou ascensores...
Tem o ascensor da Bica que não se cansa de subir pela Rua da Bica de Duarte Belo, poupando
muitos descobridores de uma das mais íngremes encostas lisboetas, aquela entre
o Mercado da Ribeira e Calçada do Combro, no Bairro da Bica, ao lado da Igreja
de Santa Catarina.
Famoso é ainda o ascensor da Glória que há mais de um século linka a
Praça dos Restauradores ao Miradouro de São Pedro de Alcântara, no Bairro Alto,
se sacudindo através da Calçada da Glória.
E como não homenagear o ascensor
do Lavra, o primeiro funicular de rua de passageiros do mundo, que manda
na Calçada do Lavra e permite aos pobres mortais as vistas do Mirante do Torel?
Os funiculares portugueses - que já foram movidos à tração e a vapor e
que foram eletrificados na segunda década do século XX - são uma viagem divertida, muitos deles vintage
da gema, da década de 1920. Sacudindo e tremendo lá se vão eles pela cidade
antiga e de alguma forma conseguem passar em segurança a apenas míseros
centímetros dos carros estacionados oferecendo vistas ventiladas da cidade.
Para apreciar melhor a paisagem, porém, não aconselho ninguém a cometer o
desatino de, nessas aventuras elétricas, espichar a cabeça para fora das janelas
do coletivo.
Mas a Lisboa verdadeira, especial, sedutora, a
gente só pode apreciar a pé. Lisboa tem tesouros nos seus becos que só aos
pedestres confessa e que, dependendo da estreiteza das vielas, não se tem
ângulo nem para fotografar.
Aqui entre nós e baixinho Lisboa foi contruída
sobre mais do que sete colinas, mas como Roma só tem sete, os tugas decidiram
que estava de bom tamanho.
Quando uma cidade é construída sobre colinas, sejam
lá quantas forem, dá um imenso trabalho a quem quer explorá-la intimamente. O
terreno montanhoso e ondulante faz bufar os turistas amadores que suam para
abrir caminhos na direção das belas paisagens e dos sons e sabores dessa Lisboa
que, essencialmente, é uma cidade de bairros, de aldeias dentro de uma cidade.
A parte mais baixa de Lisboa se espalha por um vale
flanqueado por duas colinas ao longo das margens do Rio Tejo. Três bairros
característicos cresceram a partir de suas ribeiras: tem a Baixa, o coração da
cidade, a Alfama, o emaranhado de ruas medievais com sotaque árabe na colina ao
leste e o Bairro Alto, na colina do lado oeste, cujas ruas de pedra foram
tomadas de assalto por restaurantes, bares e discotecas nas últimas décadas.
Lisboa jamais perde a capacidade de
encantar e surpreender por mais que conheçamos os seus segredos, a arquitetura
secular, as ruelas encantadas, o legado mouro, as feiras e mercados onde
pessoas se reúnem há milênios.
Gosto
de olhar Lisboa do alto, a partir dos miradores que antes eram desconhecidos
pela “estranja” como, por exemplo, o da Penha de França de onde ao longe se
descortina a Serra de Sintra e vê-se um Tejo deslumbrante e não tem como não
pensar no que pensavam os marinheiros antes de se aventurarem por mares nunca
dantes navegados. Imperdíveis também são as longas vistas da Baixa a partir dos
terraços tranquilos de São Pedro de Alcântara onde se pode chegar pelo
funicular da Glória.
Além
disto, dali se pode ter a visão perfeita das duas faces da cidade: de um lado a
Lisboa do século XXI, moderna e futurista, do outro uma Lisboa clássica,
medieval, ajardinada e caótica, graçasadeus.
O
Chiado e o Bairro Alto na última década viraram alternativos, chiques, e gays –
nada contra! - mas escanteados pelos fashionistas de plantão - entre as lojas trendy
e as vintage, as discotecas descoladas e os bares de vinho da moda e as lojas
gourmets conceituais - lá ainda estão embora desbotadas, coitadas, a Ourivesaria
Leitão & Irmão, os joalheiros dos coroados há séculos, de braços dados com
a Vista Alegre das melhores porcelanas portuguesas nas vitrines e –juro-te! – a
Luvaria Ulisses e a Casa das Velas do Loreto, a marca mais antiga de Portugal.
Por lá
ainda se consertam brinquedos antigos de quando éramos meninos e se restaura de
tudo e se reinventam os azulejos. Entre as novidades e na direção do Príncipe
Real, na Rua Dom Pedro V moram mercearias tradicionais, lojinhas de
quinquilharias honestas e os prédios restaurados que, de vez em quando, escondem
belos jardins e mesas aconchegantes em seus quintais. Essa porção norte do
Bairro Alto resiste à especulação imobiliária e ainda é residencial.
É só
descer a colina para chegar à Rua de São Bento no bairro de nome idêntico com
seus maravilhosos antiquários.
E como não
falar da Mouraria? Nada que eu pudesse lhe dizer falaria mais alto que
Amália...
“Ai
Mouraria, dos rouxinóis nos beirais, dos vestidos cor-de-rosa, dos pregões
tradicionais.
Ai Mouraria,
das procissões a passar, da Severa em voz saudosa na guitarra a soluçar”.
Ai Mouraria,
o bairro da tolerância, onde aos mouros foi permitido viver depois da conquista
de Lisboa em 1147, até serem expulsos juntamente com os judeus em 1497.
Desses
tempos de exilados pouco restou a não ser pedaços da Cerca Moura. Mas a
Mouraria continua, estranhamente, multicultural e boêmia. Lá a diversidade
continua desfilando orgulhosa. É hoje o bairro dos imigrantes do Bangladesh,
dos chineses, indianos, paquistaneses e moçambicanos e, no entanto continua tão
lisboeta quanto era quando lá morava a bela Severa, a fadista que se apaixonou
por um conde e levou a música do povo aos salões aristocratas.
Na Mouraria
nasceu a Mariza, que cresceu pelas suas ruas antes de subir nas grandes
ribaltas, aprontando na Chinatown, soltando pipa no miradouro do Monte Agudo,
nas calçadas do Colégio dos Meninos Órfãos lá na Rua da Mouraria e saboreando o
mundo inteiro nos quiosques da Praça San Martin.
Pensei em
muitas fotos para enfeitar a Mouraria. Porém acho que nenhuma imagem seria
capaz de ilustrar melhor o bairro do que o quadro O Fado, do pintor português
José Malhoa, um filho daquelas paragens.
Na tela, que
mora no Museu do Fado, foram retratados dois amantes famosos do bairro:
Amâncio, afamado fadista e marginal apelidado de Pintor - sabe-se lá porque - e
Adelaide, mulher de má vida, conhecida por Adelaide da Facada devido à cicatriz
que lhe marcava o rosto.
Dizem que Malhoa
penou para concluir o quadro. Que inúmeras vezes gastou o dinheiro que não
tinha para pagar as fianças e libertar o seu modelo desordeiro da cadeia. Que
tornou-se perito em pacificar as brigas do casal e que a arte teve que se
curvar diante dos ciúmes tempestuosos de Amâncio.
Enquanto o
meliante estava preso, por exemplo, Malhoa aproveitava para desnudar os ombros
e até mesmo um seio atrevido da Adelaide. Assim que era posto em liberdade não
tinha conversa: Amâncio tomava as providências obrigando o pintor a cobrir de
tintas mais pudicas a sua musa.
“Ai
Mouraria, da mulher do meu encanto que me mentia mas que eu adorava tanto.....”
Conta a
lenda que o pintor convidava ao seu estúdio os habitantes da Mouraria e as
figuras da elite intelectual da cidade para opinar sobre a obra. E que a fazia
e refazia até que deu um basta e para satisfazer à plateia terminou pintando
outras telas com o mesmo tema.
E depois do
fado para onde iremos?
Noutra
conversa voltaremos à Baixa. Quem não volta?
1) Bom demais o texto, as fotos, as lembranças, as caminhadas pelas ruelas.
ResponderExcluir2)Quando moramos lá, a explicação dos "cravos do 25 d´abril" é que a Natureza produziu uma impressionante safra de cravos vermelhos, nunca vista igual. A intuição da Natureza previu e brindou a todos com muitas flores...
3) Certamente, uma explicação esotérica !
4) Parabéns vizinho, em qualquer parte do mundo !
Ai, Moacir, eu adoro ver as suas fotos maravilhosas e passear pelos seus escritos. Me senti sacolejando nos bondinhos e subindo as 7 ladeiras. Queria uma noite de fado cantado por uma Amália na Mouraria com um homem que eu adorasse mas que 'não' me mentisse tanto kkkkkk Lindo o seu artigo! Obrigada.
ResponderExcluirBravo, Moacir, bravo!
ResponderExcluirSe eu tivesse condições, confesso, o país europeu que primeiramente eu iria conhecer seria Portugal, antes de qualquer outro.
Temos um vínculo no mínimo emocional com os lusitanos, pela importância que têm na colonização do Brasil e depois quanto à construção de nossas cidades, e os descendentes que deixaram.
Suas descobertas, seus navegadores, escritores, poetas, cantores, música, suas belas cidades, a Universidade de Coimbra, as tradições portuguesas, seus modos e costumes, sua religiosidade, encantam qualquer pela beleza de Portugal e, principalmente, a sua história!
Este teu relato, que desnuda Lisboa, destruída pelo terremoto que mencionaste somado ao tsunami que invadiu a cidade, demonstra o arrojo português, a sua solidariedade, o afeto que o povo tem consigo mesmo e pelos que sofrem!
O meu cunhado, irmão da Marli, embarca para Porto em julho do ano que vem, visitando Lisboa, Braga, Porto, Coimbra, Fátima, indo de trem depois para Santiago de Compostela e de lá para Madri, também de "comboio".
Grato pelos relatos que fazes das cidades que mais te chamaram à atenção, uma espécie de compensação que deixas para mim, pois os detalhes minuciosos com que escreves me possibilitam conhecer esses locais como se eu tivesse presente nesses locais.
Um forte abraço.
Saúde e Paz!
Olá Amigo. Belo texto de quem é íntimo de Portugal. Gosto de caminhar pelos atalhos que você menciona, vistos somente pelo olhar sentido na alma, um turista não enxerga essas coisas pequenas, mesmo que visite Portugal várias vezes. Ouvir os fados, saber da história do seu povo em pequenos detalhes, andar pelas ruas e vielas, saculejar nos bondes, saborear suas iguarias, apreciar seus azulejos e porcelanas, conhecer suas obras de arte, são alguns dos ensinamentos aqui aprendidos. Você nos transmite um misto de entrega x troca x partilha, para que possamos apreender e mitigar cada informação. Não deixo passar nada, faço todo meu dever de casa. E já fui conhecer o autor dessa magnífica pintura, gostei dos estudos dela feitas em carvão sobre papel. Ouvir Amália me dá nostalgia, mas sempre é muito gratificante. Obrigada e um abraço " invejoso " . Rsrsrs Dulce Regina
ResponderExcluirCaríssimos amigos do Blog,
ResponderExcluirPasso por aqui para, além de agradecer a todos pela leitura e comentários generosos, dizer-lhes que nas próximas quatro semanas vou estar de ...férias!! Mas não pensem vocês que se livrarão dos meus posts, nada disso. O Mano Wilson tem alguns deles bem guardados na gaveta da Redação.
Desejo a todos vocês um Feliz Natal com muito amor e saúde e paz junto aos seus familiares e amigos. E ótimas "conversas"!
Até a volta e um abraço geral!
Moacir,
ResponderExcluirAmei esta sua crônica informativa e colorida ao mesmo tempo exatamente como é Lisboa - uma delícia. A foto das ruínas do Convento é simplesmente bela e mesmo de longe foi bom olhar para Sintra uma cidadezinha que adorei visitar. Parabéns e o meu abraço.
Grande Moacir, todos os seus artigos sobre Portugal são extraordinários. Parabéns, obrigado e aproveite as férias.
ResponderExcluirMoacir, boas férias e feliz natal para você e sua família.
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