“Deixai vir a mim as crianças, porque delas é o Reino dos Céus"
(Mateus 19-13,15)
Catedral de Our Lady of Los Angeles – vitral de Franz Borgias Mayer |
Dulce Regina
Ao longo da minha vida, sempre fui uma pessoa que olha para o outro como
meu semelhante. A minha espiritualidade, alicerçada na religião católica,
ensinou-me que não só preciso de conhecimentos, teorias e ensinamentos da minha
religião, mas tenho que mostrar obras. Embora me sinta pequena diante da grandiosidade
divina, sempre me coloquei à disposição para ajudar o meu próximo.
Aqui conto uma das minhas “ajudas”. Assim mesmo, entre aspas, porque a
gente pensa que vai ajudar, mas, na realidade, somos ajudados a crescer como
ser humano e aí acontece uma troca mútua.
Entre tantas pastorais da Igreja, engajei-me na catequese de uma favela
da Tijuca, chamada Indiana, à beira do Rio Maracanã, isso na década de 80. No
início, éramos três leigos e uma religiosa do Colégio Santos Anjos, que nos
acompanhava dando apoio espiritual. Minhas idas até ali se davam duas vezes por
semana, quintas e sábados, e o espaço para as aulas era precário. Sentávamos no
chão e eu precisava levar todo o material para um encontro lúdico com Jesus.
Cantávamos, desenhávamos e brincávamos. O clima de acolhida era maravilhoso.
Estar junto às crianças e perceber o seu carinho e o acolhimento da comunidade
fazia com que eu me empenhasse cada vez mais.
Depois de um determinado tempo, somente eu a Irmã permanecemos no grupo,
mas seguimos nossa meta e partimos para conhecer as famílias e suas
necessidades. Uma das coisas que batalhamos foi a conscientização da
paternidade com responsabilidade. Ali havia famílias de até onze filhos,
morando em um barraco precário, sem espaço, sem as condições mínimas de
higiene, água potável e alimentos suficiente para todos.
Conseguimos êxito com uma delas. Uma mãe, grávida de oito meses, sem ter
feito um pré-natal e não possuir nada para o bebê, que nasceria dali a um mês,
e já avó do neto que sua primeira filha lhe dera. Conversando com ela,
perguntamos o que achava daquela situação. Ela nos respondeu que o marido
queria ter sempre filhos para obter o auxilio maternidade. Ficamos pasmas! Como
assim? Aquele mísero dinheiro não daria nem para o básico. E mais perplexas
ficamos quando ela disse que o marido entendia, na visão egoísta dele, que a
mulher nasceu para parir e não poderia descartar essa missão.
Encaminhamos essa parturiente ao consultório médico que havia na
paróquia, pois, àquela época, tinha um grupo de médicos, de formação variada,
que doava seu serviço uma vez por semana, atendendo em consultas em que os
pacientes já saiam de lá com remédios - obtidos de uma farmácia enorme,
conseguida por doações - e pedidos de exames necessários.
A mãe fez sua consulta e pediu para fazer uma cesária e, no mesmo procedimento,
a ligadura de trompas. E assim foi feito. Ao saber disso, o marido a abandonou.
Foi uma virada na vida dessa mulher. Ela rompeu as correntes para sua
liberdade, estudou, assumiu a liderança na comunidade, suas filhas mais velhas
foram encaminhadas para o trabalho, depois dos estudos concluídos, melhorou seu
barraco e sua vida. Daí prá diante, foi de vento em popa. Lógico que não
aconteceu um milagre e que isso não foi da noite para o dia. Ela batalhou, foi
uma guerreira.
Já em outra família, acreditem! a mãe não podia sair de casa. Sua missão
era só cuidar dos, também, onze filhos. Era vigiada pelo marido para não ter
ligação com a evolução do que acontecia no mundo. Quem fazia todo o serviço na
rua, compras, levar os irmãos mais novos ao colégio etc, era o filho mais
velho, com pouca idade, mas já sobrecarregado de muitas obrigações. Era um
menino triste. Nas nossas rodas de brincadeiras, ele se soltava e eu ficava
feliz de vê-lo se distraindo e conversando como criança, pois levava uma vida
de adulto. Com essa família não conseguimos muito êxito, mas, pelo menos, não
aumentou o número de filhos, pois a mãe, de tanto parir, já não conseguia mais
engravidar.
Era um trabalho de catequese diferenciado. Tornamo-nos amigas das
pessoas dali, ofereciam-nos café em latinhas de leite condensado, contavam suas
histórias, suas lamúrias e suas conquistas. Ficava tão à vontade que não
percebia nenhum perigo de contaminação, ou de doença, por estarmos tão próximas
de um rio poluído.
Um santo dia, estava na roda com as crianças e vejo um menino com um
machucado na perna bem feio. As moscas pousando ali e eu cada vez mais
incomodada com o que via. Não aguentei. Parei o que estava fazendo e fui olhar
de perto o ferimento. Pensei, não vou sair daqui sem resolver esse problema.
Como era de se esperar, ninguém tinha material para um curativo. Dei dinheiro
para uma mocinha, moradora da casa onde nos reuníamos, e pedi para comprar o
que fosse preciso para o curativo.
Primeiro, fomos lavar as pernas do menino que estavam sujas. Daí parti
para a limpeza da ferida e ele dizia: “Ai
tia, tá doendo” e eu: “Calma, vai
passar e você vai ficar bom”. E, para a minha surpresa! enquanto estava concentrada no meu trabalho,
olhei para trás e havia uma fila de crianças com machucado para a “tia” fazer
curativo. E não fugi da missão, cuidando de todos eles. A outra amiga, que dava
aula de corte e costura, ficou boquiaberta com o meu desempenho, não acreditava
no que eu consegui fazer e do meu desprendimento, que, eu acredito, ser oriundo
da minha vocação.
Ao final, notei que o machucado do menino não era superficial e, então,
fui conversar com a sua mãe, orientando-a a levá-lo ao médico na paróquia, que
pediu exame de sangue e indicando onde fazê-lo. Não deu outra e o menino
precisou de tratamento. Mais uma vez obtivemos sucesso na jornada.
São vários os episódios ali acontecidos. Houve uma enchente do rio,
alagando tudo. Partimos para um mutirão e a primeira providência, por
orientação médica, que junto ao posto de saúde do bairro, foi vacinar todos os
moradores. Todos, inclusive eu, tomamos
vacina contra o tifo. Acompanhei essa tarefa. As crianças perderam o medo da
injeção perto de mim e uma delas me contou que o pai estava escondido embaixo
da cama com medo da picada da agulha. Fui com ela verificar se era verdade e
não é que o marmanjo estava mesmo escondido!! Disse-lhe: “você não tem vergonha? As crianças estão numa boa e você, com esse
tamanho todo, fica se escondendo?”. Então ele resolveu me acompanhar.
Outro fato, um pouco triste, aconteceu num sábado. Logo que cheguei, uma
menininha, de uns quatro anos, achegou- se para bem perto de mim e não me
largava um minuto. Estava despenteada e cheirava a xixi. Depois de algum tempo,
começou a me perguntar se ela poderia vir comigo para minha casa. De tanto
repetir o pedido, disse-lhe que precisava falar com a sua mãe e, com ela no
colo, fui a sua casa.
O que vi me assustou. Sua mãe estava com o rosto todo machucado e o olho
roxo, fruto de uma surra de seu marido. Não sei por quem tive mais pena, se
pela mãe ou pela filha. Foi uma experiência muito triste e muito real e que,
infelizmente, acontece até hoje. Não podemos admitir esse tipo de agressão a
qualquer mulher, desses “machões” mas que no fundo são uns covardes. A um
simples tapa, já temos a nosso favor a Lei Maria da Penha.
Mas houve coisas boas. Por exemplo, quando estava lendo o jornal em
casa, vi que o Circo de Moscou estava se apresentando no Maracanãzinho. Uma luz
se acendeu na minha mente. “Por que não tentar levar as minhas crianças para se
distraírem?”. Telefonei para o serviço de atendimento empresarial e expliquei o
nosso trabalho social. Eles pediram que eu encaminhasse uma carta com todos os
detalhes e que era possível, sim, conseguirmos os ingressos. Não esperei muito
pela confirmação do meu pedido e conseguimos ingressos para todas as crianças
cadastradas.
A Irmã arrumou o transporte do Colégio e um lanche com a padaria que
fornecia pão para eles, além de mortadela. Ela, junto com as outras irmãs da
comunidade, montaram o farnel e, no sábado, partimos para presenciarmos algo
inigualável: “O Brilho dos Olhos das Minhas Crianças”.
Fomos bem acolhidos pelo pessoal do Circo. Os portões laterais foram
abertos especialmente para nós, antes da entrada das outras pessoas, e assim
pudemos organizar nosso grupo para não perdermos nenhuma criança. O show
começou e o encantamento também. Dava gosto ver o comportamento e a alegria do
grupo.
Deu o intervalo e o lanche foi distribuído, mas estava a seco. Foi aí
que, mais uma vez assistimos a um gesto que nunca mais vou esquecer. Em um
gesto de amor inigualável, o vendedor de mate ofereceu bebida para todas as
crianças, abrindo mão do dinheiro que iria ganhar, e ficou sentado perto de nós
até o final do espetáculo. Saímos felizes e com nossa esperança reforçada no
ser humano.
Anos mais tarde, uma amiga me proporcionou outro momento de acolhida e
ajuda para a comunidade. D. Lina, minha cabeleireira à época, tinha um
compromisso e devoção aos santos Cosme e Damião de dar um enxoval completo para
cada criança, um brinquedo e alimentos. Ela escolhia, a cada ano, uma
instituição diferente para fazer a doação. Perguntei-lhe, então, se ela já
tinha feito opção por alguma e ela me respondeu que não. Expliquei-lhe sobre as
crianças e, na mesma hora, ela aderiu à minha proposta.
No dia marcado, conseguimos reunir as famílias com suas crianças para a
grande festa. Desconhecia a proporção e magnitude da doação de D. Lina. Ela e
sua filha Rita montaram uma mesa imensa e linda com sanduíches, sucos e doces
gostosos e muito bem feitos. Forneci-lhe uma lista com o nome e a idade das
crianças e, assim, cada uma teve seu presente apropriado, sendo um brinquedo,
roupa e sapato. E cada família levou uma cesta com alimentos básicos e
adequados para a meninada. A festa teve música e brincadeiras, sendo mais do
que todos nós esperávamos.
Infelizmente, com a chegada do fim de ano e inicio de outro, as
pastorais tiveram mudanças e, com o sucesso obtido nessa empreitada de pura
doação, foi levado para o campo político. E essa não era a minha intenção, nem
da Irmã. E, assim, outras pessoas assumiram. Mais tarde, tomei conhecimento de
que o trabalho não fora adiante. Faltaram doação e desprendimento,
infelizmente...
imagem tribunnews.com |
"O importante não é o número de ações que fazemos, mas a intensidade do amor que colocamos em toda ação." (Santa Teresa de Calcutá)
Ao escrever esse texto, rememorando todos esses detalhes depois de tanto
tempo, tive a curiosidade de saber como está essa comunidade. Li notícias e vi
imagens que, apesar do pequeno espaço ocupado por ela à beira do rio Maracanã,
cresceu muito e a prefeitura está numa luta, desde 2010, para tirá-los dali por
estarem em área de risco. Eles não aceitam porque a transferência seria para um
lugar longe e a sua vida se resume aos arredores. Ser transferido para outro
lugar implicaria em despesas. Fiquei contente por saber que a líder da
comunidade é uma mulher e, quem sabe, uma das minhas meninas???
Olá Dulce Regina,
ResponderExcluirBelo trabalho o seu! Digno de nota.
Fiquei encantada com o seu despojamento para cuidar do menino ferido e comovida com a fila de crianças que também queriam cuidados!
Passei por coisas bem parecidas , para não dizer iguais, quando trabalhei num projeto cultural da prefeitura e da Pastoral do Negro, em favelas e abrigos, com mulheres e crianças. Foi muito bom para mim, um presente da vida. Entrei no Projeto para ficar oito meses e fiquei uns dez anos.
Parabéns pelo seu belo trabalho.
Até mais.
Aqueles que doam são anjos sem asas.
ResponderExcluirParabéns
1) Parabéns Dulce, belo trabalho. Respeitosamente, o Deus Criador de Muitos Nomes abençoe vc e sua família.
ResponderExcluir2)Eis a realidade brasileira, por um lado, no campo do governo, o Serviço Social.
3) Por outro lado, no item Religião, a caridade cristã !
Minha querida Dulce,
ResponderExcluirA vida é quase toda uma tragédia!
Se nos aprofundarmos no ser humano e suas dificuldades naturais, mais aquelas que ele mesmo impõem contra si, dificilmente entendemos como consegue viver!
E se adicionarmos a violência doméstica contra a mulher, os maridos que são umas bestas, agressivos, bêbados, onde alguns as consideram apenas para preservação da espécie e ganhar uns trocados a mais do governo, enquanto outros as deixam presas em casa cuidando do "lar" e filhos - ALÔ DULCE, ALÔ DULCE, O CHICÃO É SANTO, REPITO, O CHICÃO DE, "O AMOR É LINDO" É SANTO!!!
Minha reverência pelo teu trabalho comunitário, e de enfatizares a espécie humana como pessoas que precisam de ajuda, orientação, carinho e consideração.
Gente com esta tua índole e caráter, solidariedade e respeito pelo próximo, Dulce, ainda responde pela nossa sobrevivência, caso contrário a humanidade estaria extinta, indiscutivelmente.
Um forte e amistoso abraço.
Muita saúde e paz!
Uma saudação para Ana. Antônio, Monica e Francisco. O que posso responder a vocês é que, assim como gosto das flores em botão e quando desabrocham trazendo cores, perfumes e formando jardins fantásticos ; gosto também das crianças, de todas....elas se forem amadas, cuidadas com carinho, quando crescerem serão adultos responsáveis e felizes. O dinheiro só não basta, é importante e fundamental se bem aplicado. Esses trabalhos sociais do governo desviam muita verba destinada para as comunidades e o trabalho é automático sem nenhum sentimento. Quando saímos dessa pastoral, o coordenador das pastorais era jornalista e na apresentação dos resultados obtidos , ele fez uma reportagem citando o trabalho como dele e contactou, se eu não me engano, o então vereador Fernando Bittar, que pegou a causa e concretizou alguns benefícios à comunidade. Fiz vários trabalhos iguais a esse, e saí deles sempre agradecida a Deus, pelo muito que aprendi e cresci como ser humano. Acho que foi pouco e que tenho ainda que me doar muito. Pena que já não tenho tanto vigor, mas tem a Pastoral Familiar e nessa tenho que estar sempre atenta. Um beijo para todos. Dulce
ResponderExcluirDulce Regina,quando eu era menino fazia a Ronda distribuindo café e cobertor aos moradores de rua que se amontoavam nas calçadas cheirando a urina. Na escola chamavam aquilo de "paternalismo" e , é claro, muito cedo eu entendi que com café eu não ia mesmo salvar o mundo. Daquelas madrugadas me ficava uma agonia que o meu velho explicou-me que se chamava a dor do mundo - existe até uma palavra alemã pra ela weltschmerz - a agonia psicológica que os jovens experimentam quando percebem a inadequação do entorno aos seus parâmetros de justiça e que a miséria ,a fome, a doença, a ignorância , a violência são causadas por cruéis e desiguais circunstâncias físicas e sociais.Disse-me ele que não adiantava eu dar uma de Che Guevara de Salão e me mandou estudar para poder fazer "a minha parte".
ResponderExcluirDe tudo me ficou a certeza que quem é gente e decente , não pode conviver com tudo isso como se tudo bem e fazer de contas que não tem nada a ver.Fiquei mais atento e mais humano.Creio que a dor que sentimos diante dos males do mundo, isso que nos faz estender a mão, pode resultar sim dos preceitos éticos que adquirimos das religiões que professamos mas que é oriunda,principalmente, de um resquício sensível que ainda existe dentro de nós , herança de nossos antepassados primordiais que, para garantir a sobrevivência da espécie face aos perigos de uma natureza ainda não dominada TINHAM que viver em comunidades altruísta e cooperativas , nas quais a empatia era um instinto e talvez aquilo que hoje chamamos de nossa ALMA.
Discordo frontalmente de quem diz que a humanidade não é solidária. É sim e apenas os sociopatas não se comovem com os sofrimentos físico e emocional à sua volta. O que difere é o que cada um faz com a sua weltschmerz. Muitos se anestesiam e se alienam , poucos se despem como São Francisco ou se doam com Santa Teresa. A maioria de nós está aprendendo em algum lugar no meio, trabalhando , ralando , criando os filhos com valores, doando e doando-se: palhacinhos com narizes vermelhos nas enfermarias, voluntários nas campanhas contra o câncer de mama, colaboradores em lares infantis e clínicas psiquiátricas, músicos sinfônicos formando orquestras mirins nos sertões, médicos sem fronteiras, dentistas pro bono, participantes de pastorais diversas, e você fazendo o eu belo trabalho social.
Quero crer que as suas crianças não esqueceram como é ser tratado com dignidade, respeito e amor. É um sentimento muito bom. Não sei se o mundo tem jeito , Dulce, mas sei que não temos outro jeito a não ser continuar tentando dar jeito nele. Do jeito que que pudermos e soubermos . Com palavras e atos e rosas, como numa canção cafona que minha mãe cantava e que nunca esqueci.
E se eu não esqueci o Homem Lá de Cima tão pouco esqueceu de você debruçada sobre aquele ferimento tão profundo na perna daquele menino.
Para você...
https://www.youtube.com/watch?v=f4G7yWEHqQo
Meu querido amigo, Moacir. Começando pelo final...já trocamos esse link musical que é lindíssimo e que NÃO acho cafona, de jeito nenhum. Ela é verdadeira, pois mãos generosas, estarão sempre perfumadas e sempre vazias diante do Nosso Senhor Jesus Cristo. Nossa doação tem que ser contínua e progressiva, a troca faz com que percebamos isso... estar atenta e alerta a essa sinais é muito importante. A maior recompensa é receber as bênçãos do céu. Moacir, tenho muitas lembranças vividas nessas doações de amor. Talvez ,quem sabe , em outro texto conto para vocês. Obrigada sempre pelo seu carinho e atenção. Abraços, Dulce
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