fotografia Wilson Baptista Junior |
Wilson
Baptista Junior
Quando a Ana olha para meu escritório, na nossa casa, ela diz que eu sou
um acumulador.
Mas é porque ele é cheio de livros. Livros por todos os cantos. Em
algumas prateleiras eles estão em camadas de dois ou de três, umas atrás das
outras. Outros, deitados, enchendo o espaço acima dos que estão em pé.
Fazer o que? São livros... E alguns dos meus leitores certamente sabem
que de alguns livros é muito difícil se desapegar. A não ser quando não tem
jeito mesmo.
E todos os que restaram cá em casa, depois de sucessivas limpezas e
doações, são destes que a gente não quer mandar embora.
Eu diria que, se não contarmos com os livros, eu não sou um acumulador.
Mas de algumas coisas eu gosto. Para além da utilidade que têm para nós.
Porque há coisas que falam com a gente.
O nosso bom e sábio budista, o Antonio, nos ensina que todos os seres
vivos, animais ou plantas, têm alma, e compreendem as coisas. E não só os seres
vivos, até as pedras podem nos ouvir.
Pois eu acredito que as coisas também têm alma. Talvez nem todas, mas
muitas. Ninguém que as vê negaria que uma escultura de Michelangelo ou de Camille
Claudel guarda em si um pouco da essência, da força, do maravilhamento
interior de quem a esculpiu. Não é atoa que contam (e si non é vero é bene
trovato) que Michelangelo, quando terminou de esculpir seu Moisés, bateu-lhe no
joelho com o martelo e exclamou “perché
non parli”? Porque não falas?
Mas não estou falando aqui das grandes obras primas, mas de coisas
humildes, utilitárias, como o moedor de café do bisavô do Moacir de que ele nos
falou outro dia.
Estou falando aqui da faca de caça que herdei de meu avô Juquinha
(naquele tempo chamava-se “faca de mato”), e que alguns anos atrás dei de
presente a um de nossos filhos para que ele a guardasse. Uma faca inglesa do
final do século XIX. Feita numa fábrica, mas forjada à mão, ainda se veem na
lâmina as marcas do martelo do forjador. Que pegou o pedaço de aço e lhe deu
forma com martelo e bigorna, depois a afiou, temperou e deu o fio final. O cabo
de chifre de veado foi cortado e afeiçoado provavelmente por outro artesão, e
outro deve ter ajustado a guarda e rebitado o cabo na lâmina.
A faca não ficou guardada num estojo, deve ter entrado e saído muitas
vezes da bainha de couro presa ao cinturão do seu dono, para isso tinha sido
feita, mas ainda hoje, cento e vinte e muitos anos depois, a gente pode ver o
ajuste perfeito dos rebites, as partes do cabo sem nenhuma folga, e sentir o
cuidado, a maestria, o trabalho bem feito dos operários que a fizeram. Em quantas caçadas ela acompanhou o seu dono, em
quantos fogos de acampamento foi usada para a comida da noite, quantas
histórias (verdadeiras ou mentirosas, como as histórias das caçadas e pescarias
que meu avô me contava) teria para contar...
Estou falando aqui das ferramentas de meu bisavô paterno, o Mestre
Augusto, mestre carpinteiro da velha Santa Luzia, de um tempo e um lugar em que
os carpinteiros começavam o trabalho indo à mata derrubar a árvore que depois
seria falquejada, serrada e aplainada para se transformar nas vigas, nos
caibros e nas tábuas de que eles precisavam. Ainda estão penduradas numa parede
da oficina da casa de meu pai as serras, as garlopas, as plainas, as plainas de
esquadria, as plainas de roda. Ele também fazia os cabos das serras e os corpos
das plainas, as lâminas (que ele chamava de “ferros”) vinham da Inglaterra, das
forjas de Sheffield, o mesmo lugar de onde veio a faca do meu avô.
No meu tempo na primeira casa de meus pais elas ainda viram uso; da
primeira vez em que tive um quarto só para mim, quando fui morar na casa vizinha
da minha avó Dindinha, filha do Mestre Augusto (já falei dela aqui num outro
post), resolvi que ia fazer minha cama e minha estante eu mesmo, e sem usar
ferramentas a motor, como se fazia no tempo dele. Nunca vou esquecer como era boa
a sensação, depois de afiar cuidadosamente a lâmina de uma garlopa na pedra de
óleo e ajustá-la bem alinhada, de levá-la ao longo de uma peça de madeira de dois
metros e pouco de comprimento, ouvindo o sussurro da lâmina enquanto cortava
uma virola fina como uma folha de papel que ia se enrolando até se partir. Nem
da sensação de passar depois os dedos pela superfície aplainada, e sentir sua
lisura mesmo antes de usar a lixa.
A cama e a estante vieram para nossa casa quando nos casamos, a cama
ficou muito tempo como um sofá no escritório e a estante na sala e depois no
escritório, até que foram dadas de presente a um colega meu de trabalho que
estava montando por sua vez seu quarto de solteiro.
Quando eu usava as ferramentas dele, imaginava se lá em cima Mestre
Augusto estaria aprovando ou não a qualidade do resultado dos meus esforços
(provavelmente não...), e se estaria contente de ver uma plaina que ele tinha
feito bem antes de meu pai ter nascido ainda sendo usada pelo bisneto...
E quando via a perfeição com que aquela plaina cortava a madeira,
imaginava se as mãos dele que durante tantos anos a guiaram não estavam, ao
menos um pouquinho, guiando as minhas.
Contax II 1936 (imagem Pindelski.org) |
Estou falando aqui das máquinas fotográficas de meu pai, verdadeiras
peças de relojoaria esculpidas em aço e latão, em vez do plástico e dos
circuitos eletrônicos das máquinas de hoje, e que eu também, e meus irmãos,
levamos por tanto tempo como companhia por tantos lugares. Quando pego numa
delas a sensação é muito diferente de pegar numa das nossas de hoje. Cada
objetiva delas que pego me traz através das mãos a lembrança de uma fotografia
tirada, de um lugar e um momento, talvez cinquenta ou mais anos atrás, que foi
para mim importante o bastante para parar, abrir a bolsa de equipamento, tirar
a que estava na máquina, colocar a outra que devia ser mais adequada. Enquanto
as nossas de hoje daqui a cinco ou dez anos provavelmente estarão no lixo ou
terão sido recicladas, porque já não se farão mais baterias para aquele modelo,
substituído por sei lá que nova maravilha.
O cesto de lixo ao lado da mesa em que estou é uma caixa simples de
madeira, com pés cortados nas próprias laterais e dois furos para servirem de
alças. É pesado. Porque no lugar dele não está um desses novos de aço
furadinho, leves, bonitos? Porque este era o do escritório do meu avô Juquinha,
que Mamãe me trouxe faz muito tempo e que eu recolei as juntas, lixei, tornei a
encerar. Me lembra dele, da mesa da qual ficava ao lado e onde as gavetas eram uma
verdadeira arca de tesouros para os netos, e as estantes de livros que eu ia
explorar. Quando olho para ele penso que deve estar caladamente feliz de
continuar fazendo o trabalho para o qual foi feito, em vez de ter virado lenha
ou apodrecido num lixão.
Numa das prateleiras da estante atrás de mim vigia uma linda escultura
em madeira de um puma, uma onça suçuarana, que meu pai esculpiu e deu para a Ana de aniversário. Nosso
netinho mais velho, que é doido com animais, e talvez conheça mais a silhueta
do puma do que seu bisavô conhecia, não o chama de puma, diz que é “o felino”.
Quando chega aqui em casa uma das primeiras coisas que faz é buscá-la na
prateleira, com todo o cuidado, para brincar com ela. Podíamos dá-la para ele,
talvez um dia ele queira guardá-la como lembrança dos avós. Mas, por enquanto,
ela ainda tem a magia que faz com que ele a procure quando vem cá em casa.
Enquanto tiver essa magia ela vai ficar por aqui à espera dele.
Na copa da nossa casa, lindeira ao escritório, mora desde sempre na
parede um relógio de cuco. Daqueles antigos, alemães, feitos na Floresta Negra.
Foi presente de casamento para os pais da Ana. Tem pelo menos setenta anos. Como
o espelho antigo de um desenho inesquecível do Quino, já deve estar cansado e
se atrasa um pouco, por mais esforços que eu faça para regular seu pêndulo. De
tempos em tempos tem que ser levado a um relojoeiro que ainda entenda destes
relógios para suas entranhas serem limpas e lubrificadas, o que eu não me atrevo
a fazer. Há muito tempo o cuco ficou rouco, o relojoeiro teve que trocar sua
laringe. Ele viu a Ana nascer, crescer e se casar, veio para cá e viu nossos
filhos crescerem, viu nossos netinhos chegarem, marcou tantas horas de alegria
e algumas de tristeza, e continua com seu tique e taque a marcar o ritmo do
coração da casa. À noite, quando algum de nós tem insônia, conta as horas pelo
canto do cuco.
Nas poucas ocasiões em que ele teve que ser deixado por alguns dias no
relojoeiro, parecia que faltava um pedacinho da alma da nossa casa.
Não sei bem se somos
nós que somos apegados a essas coisas, ou se são elas que também são um
pouquinho apegadas a nós...
suas cronicas são deliciosas e com este saudosismo a gente fica cada dia mais encantada.
ResponderExcluirobrigada também pela foto do cuco, ele é parte da nossa história
Léa, é mesmo, o cuco também viu o começo da vida de casados sua e do Gilberto, na casa dos pais da Ana. E olha, não é bem saudosismo, porque o passado é passado e eu não trocaria tantas alegrias que a vida me deu pelo tempo em que elas ainda não tinham acontecido. Mas o nosso presente nasce do nosso passado, e é bom lembrar dele de vez em quando olhando para algumas coisas que nos acompanharam pela vida.
ExcluirUm abraço para vocês dois.
1) Belíssimo texto, bela reflexão dominical.
ResponderExcluir2)O último parágrafo é brilhante: nós nos apegamos e as coisas tb se apegam a nós.
3)É por isso que o Zen-Budismo recomenda agradecermos a tudo, pois os objetos inanimados tem as vibrações, as energias de quem os fez.
4) Popularmente se diz que "as paredes tem ouvidos", é isso mesmo, nas paredes ficam gravadas as nossas conversas, amores e desamores.
5)É a teoria dos Registros Akásicos, tudo fica gravado, Ákasa = língua sâncrita, Éter Universal, Cósmico, um dia vão inventar um programa de computador que vai abrir os registros akásicos e então ficaremos sabendo, por exemplo, o que Jesus realmente disse, não apenas Jesus, mas todos os seres humanos.É por isso que o Cristo certa feita disse: "Passará o céu, passará a terra, mas as minhas palavras não passarão", é pq fica tudo gravado.
6) Obrigado Mano pela citação, sou eterno aprendiz !
7) Sou um conversador com todas os seres animados e inanimados, e mesmo os "mortos" podemos conversar com eles, pois não estão mortos, mas sim, vivos em outra dimensão.
8)Bom domingo !
9)Excelente artigo Mano.
Antonio, somos todos aprendizes, mas você é um daqueles que enquanto aprende nos ensina também. Fico muito feliz de você ter gostado e de sentir também a alma das coisas. Como você nos diz, tudo o que existe faz parte do Caminho.
ExcluirSalve os Mestres Juquinha e Augusto e Wilson ! E salve o Mano por nos falar da alma das coisas, talvez o melhor post que já li da sua lavra. Tão bom que teclar qualquer coisa depois dessas pretinhas é...demais da conta.
ResponderExcluirOs livros dos quais não podemos nos separar são os que moram na alma funda, aqueles que conhecemos de trás para frente , que citamos compulsivamente, que estão esgotados e foram autografados, que têm dedicatórias e que economizamos meses a fio para comprar.São bonitos, cheiram bem e queremos que os nossos filhos os tenham. Quanto às ferramentas se duraram tanto tempo e ainda funcionam é porque foram bem feitas, são únicas e insubstituíveis. Conservá-las e fazer pleno uso delas , de sua capacidade de realizar um trabalho impecável é vantajoso para não só para a nossa mas para as vidas de todos aqueles diretamente e indiretamente associados a nós e às ferramentas. Elas nos falam de ofícios, de trabalhos bem feitos, de respeito, de aprendizado, de reconhecimento e de gratidão.
Os nossos velhos objetos enriquecem nossas vidas e nos surpreendem de maneiras que as coisas atuais não podem. Seja através da revelação do passado, da presença de tantas pessoas que amamos no seu desgaste ou da materialidade que possuem e que não mais testemunharemos sendo refeita . Não defendo a acumulação, mas as minhas coisas velhas são sagradas porque trazem à tona o melhor de mim e sendo assim, valeu a pena arrastá-las entre os apartamentos da vida. Elas nos oferecem o prazer de as segurar e usar, um encantamento ao olhar para elas , uma noção de continuidade inquebrantável, uma satisfação tão indizível que, ao fim e ao cabo , aprendemos com elas que só vale mesmo possuir aquilo que não possa ser acomodado na tal da dispensabilidade, o que não podemos , de forma alguma, deixar para trás.
Parabéns e um grande abraço
Moacir, que bom ler isso de alguém que sabe tão bem manejar as pretinhas. E também é difícil acrescentar qualquer coisa ao seu comentário.
ExcluirVocê, que sabe bem que se deve viajar com pouca bagagem, sabe que as coisas materiais que nos acompanham através da vida são aquelas poucas que ganharam um lugar em nosso coração. Aquelas cuja companhia não podemos recusar. Algumas que já nos chegaram velhas, carregadas da energia dos que nos precederam, outras que nos chegaram novas mas que pelo que viveram conosco vão levar, talvez, um pouco da nossa energia para alguém lá na frente que talvez nunca cheguemos a conhecer.
Obrigado.
Independente do texto excelente, Wilson, deixaste caracterizado um saudosismo que deve ser mantido, uma nostalgia que deve ser preservada pelo que herdamos ou nos foram deixados como lembranças de um passado extraordinário, inesquecível.
ResponderExcluirNão vem ao caso se existe alma ou não nos objetos, mas eles têm impregnados o tempo, as pessoas que os usaram, que os fabricaram, e que a duração dessas peças é a continuidade do espírito com que foram criadas, a intenção do seu fabricante ou inventor.
Mais ou menos como se fosse a presença daquela pessoa ali, naquele objeto, conversando conosco ou gostando do que fazemos para tê-los conosco.
Portanto, não és um acumulador, mas um colecionador de objetos importantes, que e que devem continuar fazendo parte da casa, da nossa vida.
Um forte abraço.
Excelente semana que ora inicia.
Saúde e Paz!
Obrigado, amigo Chico. Não chego nem a ser um colecionador, não são tantos os objetos que têm nos acompanhado, mas eles com certeza trazem dentro um pouco do que foi deixado por quem os fez, usou e cuidou, sejam os que nos precederam ou nós mesmos, ou os dois. Um abraço, e muita saúde.
ResponderExcluirWilson, me deu uma enorme saudade do meu cuco de parede; tinha um passarinho que saia de dentro e emitia o som Cu co.
ResponderExcluirAs vezes ele ficava maluco, que nem a música:
"Cuco-cuco-cuco!
O passarinho do relógio
Está maluco
Ainda não é hora do batente
Ele fica impertinente
Acordando toda gente
Eu pego às oito e quarenta e cinco
E levanto às sete,
Pra tomar banho e café
Mas quando são mais ou menos
Três e cinco, ele começa:
Cuco-cuco-cuco!
E só termina
Quando estou de pé
Meu sogro sabia colocá-los nos eixos.
Pois é, Carmen, pensa em como deve ter sido bom o tempo em que seu cuco cantava, mesmo que às vezes meio fora do tempo...
ExcluirFico feliz de te ter trazido essa lembrança.
Um abraço do
Mano
Nosso mais verdadeiro espólio. Abraço!
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