El Greco - O Enterro do Conde de Orgaz |
Moacir
Pimentel
O nosso segundo
dia em Toledo amanheceu tão bonito, mas tão azul, que quando saímos do hotel
após um café da manha com direito às vistas longas do Tejo, resolvemos que em
vez de voltarmos direto para o Museu da Santa Cruz e mergulhar de novo, na
exposição sobre o Grego, seria melhor respirar um pouco mais daquele ar verde
de primavera, bater pernas e nos despedir da velha Toledo, com seus anjos e
demônios e fantasmas de tantas idas épocas e das suas três culturas
representadas pela Imponente Catedral de Toledo, pela Mesquita do Cristo da Luz
e pela Sinagoga de Santa Maria a Branca.
Quisemos
visitar rapidamente a Igreja de São Tomé para dar uma nova olhada na pintura
mais famosa do artista - O Enterro do Conde de Orgaz. O quadro homenageia um
benfeitor da Igreja, em cujo funeral, corria a lenda, os santos Estevão e
Agostinho compareceram e foram vistos colocando o corpo no túmulo. A imagem
retrata esse episódio, assim como a alma do fidalgo sendo recebida no Paraíso.
O filho do Greco, Jorge Manuel, foi pintado pelo pai na tela, como um menino, à
esquerda, ajoelhado no primeiro plano do quadro, olhando para fora e indicando
para o espectador o milagre que o Greco fizera surgir em cores.
A pequena
figura serve assim como um intermediário entre o mundo real - o do espectador -
e o mundo ficcional - o da pintura - que, por sua vez, também é dividido em
duas esferas: uma celestial na parte de cima, e outra terrena na parte de
baixo, onde os muitos homens que estão presentes no funeral, vestidos
contemporaneamente, eram membros proeminentes da sociedade toledana do século
XVI.
O Enterro do
Conde de Orgaz foi fundamental para a nossa compreensão do Grego, pois
encapsula o objeto de sua arte, que é sugerir a experiência de algo visionário
que não é uma extensão do nosso mundo físico, mas de nossas faculdades
imaginativas.
E de lá
seguimos para as muralhas de Toledo. O patrimônio histórico e artístico da
cidade é tão extenso e variado nas suas três culturas, que existe uma região da
cidade denominada Toledo Olvidada, composta por uma série de lugares de
interesse que normalmente passam desapercebidos pela maioria das pessoas. O
Hospital de Tavera é um desses "esquecidos". Situado fora das
muralhas da cidade, bem próximo à moura Porta de Bisagra, o principal acesso ao
centro histórico, Tavera também é chamado de Hospital de Afuera.
O altar
lateral da igreja merece ser visto, pois foi projetado pelo Grego e realizado
por seu filho, Jorge Manoel, que se tornara também pintor, ajudando o pai e
repetindo-lhe as composições por muitos anos, depois que herdou-lhe o estúdio.
Entre os tesouros de arte de Tavera está uma tela representando a Sagrada Família,
na qual o Grego pintou uma maravilhosa Nossa Senhora do Leite, amamentando um
menino Jesus, usando como modelos a mãe do seu filho e o voraz bebê, nascido em
1578.
El Greco - A Sagrada Família com Santa Ana |
De lá nos
dirigimos para o bairro judeu, em cujas cercanias está a casa do Grego, hoje
museu, onde o pintor viveu com Dona Jerónima de Las Cuevas, a cristã nova com
quem nunca se casou, mas com quem teve o filho que legitimou. Aparentemente o
Grego não desposou a bela amante, por quem foi profundamente apaixonado, porque
teria uma esposa grega. A companheira, no entanto, pudemos comprovar, fora
mencionada pelo pintor em vários documentos, inclusive em seu testamento.
No Museu El
Greco pudemos apreciar uma das três paisagens que ele pintou, A Vista e o Mapa
de Toledo, e uma série de retratos. Mesmo em retratos o pintor demonstrara a
sua tendência de dramatizar mais do que a descrever. Os seus retratos, se são
menos numerosos do que as suas obras de caráter religioso, não deixaram de ter
a mesma qualidade e o colocaram numa posição proeminente enquanto retratista,
ao lado de Ticiano e de Rembrandt.
Para mim,
dentre todos os retratos feitos pelas mãos do Grego, pela grande beleza e
perfeição um poderia ter sido pintado por mãos venezianas, por aquelas do gênio
Leonardo da Vinci. Na Dama com o Casaco de Arminho, o Grego pintou como nunca
fizera antes ou fez depois. A senhora retratada era especial e, portanto,
mereceu do pintor um tratamento único. Acredito que esta tela tenha sido como
uma carta de amor, irrepetível, de grande qualidade e raridade.
Não há
certeza histórica quanto à identidade da modelo, embora a maioria dos
historiadores acredite que seja Dona Jerónima. Dizem que o pintor era obcecado
pelo rosto da mulher amada e que o pintara compulsivamente como sendo aqueles
de todas as suas Marias e Madalenas.
É sim, o
mesmo enigmático rosto mariano que vemos nas telas do artista, só que nelas ele
é muito mais subjetivo. Essa maravilhosa Dama foi outro link íntimo com o qual
a exposição sobre o Grego nos presenteou, mostrando-nos lado a lado duas telas.
A Dama em Um Casaco de Peles, do Grego, e a Dama do Casaco de Peles depois do
Grego, pintada pelo pintor Cézanne.
El Greco / Cézanne - As Damas dos Casacos de Pele |
Ambas lindas
e normalmente encontradas na Glasgow Pollok House, na Escócia.
A Dama do
Casaco de Peles de Cézanne é descendente da Senhora do Grego já envolta em
peles na década de 1570. Cézanne nunca vira a pintura original pessoalmente,
mas fora tomado de amor por ela diante de uma gravura ilustrada, em um artigo
publicado por J. B. Laurens, em 1860, no Le Magasin Pittoresque. A ilustração,
exposta em Toledo, de fato compartilhava muitas semelhanças com a interpretação
de Cézanne da pintura do Grego, e explica a conexão de Cézanne com a obra-prima
mais idosa.
Em Toledo
descobrimos que a influência dos mestres espanhóis sobre a evolução do
modernismo francês se iniciara no primeiro semestre do século XIX. Desde quando,
além da Dama das Peles, na Galeria Espanhola do rei Louis-Philippe moraram
outras telas do Grego. O monarca mandara o barão Isidore Justin Taylor para a
Espanha, a fim de adquirir, por sua conta, um grupo representativo de obras da
escola espanhola. Taylor enriquecera a coleção do rei com nove pinturas do
Grego: quatro com motivos religiosos, quatro retratos e um Evangelista.
Entre 1836 e
1848, portanto, a imagem impressionante dessa Senhora envolvida por peles de
arminho fora exibida em Paris na Galeria Espanhola do Louvre juntamente com
mais de quatrocentas e cinquenta obras de mais de oitenta0 pintores espanhóis,
e o público francês pudera ver obras do Grego, entre as de Velásquez e Goya.
Foi
justamente nessa inauguração do Museu Espanhol do Louvre que pela primeira vez
foi verbalizado, embora de forma alusiva, o pensamento de que o Grego
representara o início da escola espanhola. Isto porque os organizadores do
museu haviam colocado as telas dele no início da galeria, deixando as de Goya
para o final.
O poeta
Baudelaire comentou a extraordinária beleza da dama espanhola, em 1846, ao
escrever sobre como a Galeria Espanhola do Louvre tivera o efeito de aumentar o
volume de ideias gerais que os franceses tinham sobre a arte e de defender um
museu de arte estrangeira como um lugar internacional de comunhão, "onde
dois povos, possam se encontrar, observando e estudando um ao outro”. Podemos imaginar
os famosos versos do poeta, dedicados a uma mulher que passa, poderiam, até
mesmo, ter sido inspirados por aqueles olhos...
Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!
A ligação de
Cézanne com a Dama do Grego foi comentada ainda pelo crítico de arte alemão
Julius Meier-Graefe, que, em parte, iniciou uma redescoberta do Grego, após ter
visto o retrato de Cézanne em Paris, e a estudar
a influência do mestre de Toledo sobre artistas modernos:
“El Greco descobriu um reino de novas
possibilidades. Nem mesmo ele próprio foi capaz de esgotá-las. Todas as
gerações que vieram atrás dele, viveram e vivem em seu reino. Há uma maior
diferença entre ele e Ticiano, seu mestre, do que entre ele e Renoir ou
Cézanne. No entanto, Renoir e Cézanne são mestres da originalidade impecável
porque não é possível aproveitar-se da linguagem do Grego se, ao usá-la, ela
não for inventada de novo e de novo, pelo usuário”.
Tinha razão o
especialista. Cézanne escolhera, por exemplo, suas próprias cores para o
retrato, saindo completamente dos tons da pintura original e optando por várias
tonalidades de azul e verde, complementadas por rosa, pêssego e tons de cinza.
Foi então que
soubemos que, com a chegada do romantismo, o Grego passara a ser visto como o
precursor daquela ânsia para o estranho e o extremo, pois os melhores trabalhos
de seu segundo período pareceram, para os românticos pelo menos, ter um estilo
bem romântico.
Foi
precisamente então que o mito da loucura do Grego nascera em duas versões. Por
um lado, acreditava-se que o Greco enlouquecera de sensibilidade artística
excessiva. Por outro lado, o público passou a vê-lo como um pintor louco e,
portanto, os seus mais loucos quadros em vez de serem admirados passaram a ser
considerados como documentos históricos comprovando a loucura dele.
Disseram-nos
que em 1867 Paul Lefort, um especialista em pintura espanhola, dedicara um
artigo de oito páginas ao Grego, ilustrado por gravuras de quatro obras. Neste
artigo, Lefort exaltara o Grego, refutando a narrativa de sua “loucura” e
proclamando-o o fundador da escola espanhola. Na década de 1890, os pintores
espanhóis residentes em Paris adotaram-no como seu guia e mentor.
Durante a
segunda metade do século XIX, o elemento de luz e brilho em suas pinturas
apelou para os impressionistas. Depois a excentricidade em seu estilo foi
elogiada por simbolistas. A crescente admiração pelo Grego naquele momento
também pode ser parcialmente atribuída à filosofia estética do filósofo alemão
Immanuel Kant, que era louvado pelos artistas do final do século XIX.
De acordo com
a filosofia de Kant, um artista é um criador único que tem o seu próprio
domínio e não é limitado por regras ou outros poderes. O Grego encarna
perfeitamente a definição kantiana de artista, por causa da sua abordagem
inovadora da arte, juntamente com a sua independência e bravura perante as
autoridades.
Na verdade, o
que estávamos descobrindo nas salas daquele museu é que o Grego rejeitara o
naturalismo como um veículo para a sua arte, assim como a ideia de uma arte
acessível a um grande público. O que ele abraçara fora um mundo à sua maneira,
muito pessoal e consciente de si e em um estilo erudito. O paradoxo é que ele
mergulhara de cabeça no maneirismo, no auge das críticas contra o estilo do momento,
quando a maioria dos artistas estava se esforçando para livrar seus quadros de
qualquer coisa que pudesse parecer mera exibição ou indulgência. O Grego tomara
o caminho oposto ao da história da arte.
Em 1908, o
historiador de arte Manuel Bartolomé Cossío publicou o primeiro catálogo
completo das obras do Grego. Nessa oportunidade o Grego não foi estabelecido
como o fundador da escola espanhola, mas como o comunicador da alma espanhola
por excelência, como um grande pintor do passado, mas totalmente contemporâneo,
um profeta do encontro da arte com a modernidade.
Disseram-nos
ainda que em 1902 a primeira exposição de suas obras ocorreu no Museu do Prado,
em Madrid, que em 1908 fora organizada uma exposição do Grego em Paris, e que
em 1910, o Museu El Greco foi fundado em Toledo. Finalmente, que em 1911 a
exposição do colecionador húngaro, Marczell von Nemes no Alte Pinakothek, em
Munique, apresentou oito pinturas do Grego.
Depois de
três séculos de negligência, nos fez bem constatar como Domenicos Theotocopulos
renascera para a fama e passara a ser de crucial importância para a arte
moderna da imaginação.
Foi ali, no
limiar entre os dois últimos séculos, que o Grego fora reconhecido como um
gênio arquetípico que fizera o que bem imaginara e pintara livremente, com
total indiferença para com o efeito que a expressão poderia ter sobre o
público. O mundo passara a ver o Grego, como um velho mestre que não fora
apenas moderno, mas realmente estivera à frente do seu tempo, para mostrar
caminhos.
Mas... mesmo
neste nesse momento de glória, no começo do século XX, outros pesquisadores
desenvolveram uma teoria alternativa, mais radical: argumentaram que o Grego
pintara suas figuras humanas alongadas porque tinha problemas de visão,
possivelmente astigmatismo progressivo ou estrabismo, que o faria ver os corpos
mais longos do que eram. Se ou não o Grego sofria de astigmatismo progressivo é
uma questão ainda aberta ao debate, se bem que alguém tivera juízo o bastante
para lembrar que "astigmatismo não poderia dar qualidade a uma tela, nem
talento a um asno"
Ali, naquelas
velhas salas, em meio à arte e às memórias do pintor, foi-nos fácil compreender
que se Toledo estivera longe da efervescência artística de Roma e Madri, a
cidade não fora um baluarte contra as forças culturais e artísticas que moldaram
a arte do século XVII. Portanto conseguimos entender a arte do Grego em
isolamento, como se fosse um tesouro fora do seu tempo, à espera de ser
descoberto na era moderna.