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21/01/2017

A Água Romana

fotografia Wilson Baptista Junior


Wilson Baptista Júnior
 Não, não é erro de digitação. Não é da águia romana, estandarte das legiões de César, símbolo do maior império do seu tempo, não; é da água mesmo que eu vou falar.
Os antigos romanos eram grandes engenheiros. Além das cidades, dos circos, dos templos que todos conhecemos, eles construíram uma magnífica rede de estradas, para que as suas legiões pudessem se deslocar rapidamente de uma província para outra do império. Alguns trechos destas estradas calçadas de pedra sobrevivem até hoje. E, para matar a sede das cidades dessas províncias, eles construíram também uma maravilhosa rede de abastecimento que trazia a água para as cidades ás vezes de grandes distâncias.
Os aquedutos que transportavam a água eram obras primas de engenharia. A água tinha que fluir dos rios ou das fontes onde era captada numa inclinação muito precisa, quase nula, quase horizontal, da altura da fonte até a altura da cidade, para que ela pudesse correr sem interrupções e sem atropelos. E como ela nunca poderia correr abaixo do nível de seu ponto de chegada, porque eles não teriam como bombeá-la de novo para cima, os vales e desigualdades do caminho tinham que ser transpostos por “pontes de água” que levavam os canais por cima dos vales.
Uma dessas pontes, que sobrevive até hoje, atravessa o vale do rio Gardon, na Provence, e ficou conhecida como Pont Du Gard, a ponte do Gard. Com quarenta e nove metros de altura acima do rio, fazia parte de um canal que trazia água para a antiga cidade de Nîmes desde uma fonte situada na cidade de Uzès, a uns cinquenta quilômetros de distância. Nestes cinquenta quilômetros de canais, túneis e pontes o canal de água desce mais ou menos doze metros, ou pouco mais do que um palmo por quilômetro. Falem de precisão na construção! Hoje, com todos os instrumentos modernos, não é fácil fazer uma coisa dessas. Imaginem naquele tempo.
Construído no reinado do imperador Cláudio, uns cinquenta anos depois do nascimento de Cristo, o aqueduto abasteceu Nîmes por mais de cinco séculos, levando de trinta a quarenta milhões de litros de água pura por dia. No século XVIII acrescentaram, ao lado da carreira mais baixa de arcos da ponte, uma pista para passar a estrada, que transformou a ponte d’água numa ponte de verdade.
A fotografia que abre este post tem uma história.
Eu estava trabalhando lá por aqueles lados. Dava consultoria a uma metalúrgica francesa antiga e tradicional, a Gard Mousson et Frères, e a uma empresa brasileira que pretendia fazer uma joint venture com ela para produzir no Brasil implementos agrícolas para o cultivo da mandioca (eram os tempos em que se pretendia extrair álcool combustível da mandioca, e não tínhamos aqui nada capaz de fazer a colheita motorizada das raízes). A fábrica da Gard ficava numa cidadezinha chamada Potélières, o processo de produção era informatizado e muito avançado para a época, mas por causa de uma idéia de jerico do regime militar não podíamos importar os minicomputadores americanos que eles usavam, seríamos obrigados a utilizar algum dos “fabricados” no Brasil (na realidade apenas montados aqui), era a famosa “reserva de mercado da informática”, uma tentativa frustrada de desenvolver a indústria nacional de computadores  que atrasou por anos, num momento crucial da economia, o desenvolvimento da competitividade das indústrias brasileiras.
Então eu estava lá com a missão de estudar os sistemas deles, desenvolvidos pela IBM (eram os precursores do SAP) e depois arranjar um jeito de migrá-los para os computadores e pacotes de programas “nacionais” com toda a trabalheira que isso implicava.
Potélières ficava no Departement (na França, um conjunto de várias comunas, que são os nossos municípios) do Gard, a indústria, com mais de cem anos, se chamava Gard, o dono dela era o Monsieur Gard e a maior parte dos habitantes da cidade eram os trabalhadores da fábrica Gard. E, para completar, o Monsieur Gard era o prefeito da cidade... Realmente, uma empresa muito tradicional.
Eu pretendia, terminado o trabalho, quando fosse de trem para a Suíça, fazer uma parada na cidadezinha de Roanne, às margens do Loire para lá de Lyon, onde ficava o restaurante dos irmãos Troigros (pai e tio do Claude Troisgros que é hoje um restaurateur famoso aqui no Brasil), que tinha acabado de ganhar sua terceira estrela Michelin e era considerado um dos melhores restaurantes do mundo. Meu interesse em conhecer o Troisgros era por se tratar de um restaurante pequeno e tradicional numa cidade pequena do interior da França, diferente dos outros da haute cuisine.
Quando contei isso numa conversa com o Monsieur Gard ele ficou indignado, ferido nos seus brios provençais, e me disse que não abria mão de maneira alguma de me mostrar que a Provence também tinha restaurantes que não ficavam a dever nada a ninguém, mesmo que fossem duas estrelas em vez de três no Guide Michelin. Pegou no telefone e reservou uma mesa no Hiely, em Avignon, para jantar dali a uns dois dias, e disse à gerente do restaurante, conhecida dele, que deixava por conta do gosto dela escolher o menu e os vinhos para “convencer um cético”...
Um convite desses não se recusa, claro.
Na noite do jantar eu estava na varanda do hotelzinho em Alès, cidadezinha perto de Potelières, junto com um amigo brasileiro que estava também trabalhando no projeto, à espera do Monsieur Gard. Avignon fica a bem uns setenta quilômetros de Alès, e menos de uma hora antes da hora marcada ele ainda não tinha aparecido.
Já estávamos ficando preocupados quando ele apareceu dirigindo um belíssimo Lancia esporte, modelo que tinha sido lançado naquele ano, eu tinha visto os cartazes do lançamento na minha chegada a Paris. Acomodei-me no banco de passageiro da frente e o meu amigo, mais magro, no acanhado banco de trás. E saímos. Eu, que sempre gostei de carros, caí na besteira de perguntar ao Monsieur Gard qual era a velocidade máxima do Lancia. Ele respondeu sorridente “Ainda não sei, vamos descobrir?”
E lá fomos nós por aquelas estradinhas cheias de curvas, sem acostamento, cercadas de árvores, como se estivéssemos na pista de Montlhéry ou Paul Ricard. Um passeio inesquecível mas que hoje, mais velho e mais sensato, eu talvez não gostasse de repetir.
Eu sabia que a estrada passava perto de Pont du Gard, e disse a ele que voltaria ali outro dia para ver a ponte. E ele me disse: “Porque não vemos agora?”, e enfiou o carro numa estradinha lateral, de calçamento, que acabava numa porteira com uma placa “Interdition de Voitures”. Ele me pediu que abrisse a porteira, e quando eu perguntei “Mas não é proibido entrar de carro?” ele me respondeu simplesmente que era o prefeito dali...
Continuamos por uma estradinha de terra até chegarmos às margens do Gardon, um pouco abaixo da ponte. Foi onde tirei a fotografia. O tom dourado é do crepúsculo, era primavera e o por do sol era bem tarde para nossos relógios brasileiros.
Foi o tempo de tirar a fotografia e voltamos para o carro. Como agora já estávamos bem atrasados, o Monsieur Gard resolveu andar realmente depressa... Não guardei a velocidade máxima do carro, mas era bem mais de duzentos, naquela época e com três pessoas dentro não era de se desprezar.
O jantar foi uma maravilha, o restaurante, com cinco mesas, ficava perto das muralhas de Avignon, com uma janela magnífica, e a gerente se esmerou na tarefa de convencer o “cético” aqui de que a cozinha da Provença era tão boa como qualquer outra. E conseguiu.
Voltamos num ritmo bem mais comportado, disciplinado pelo estômago satisfeito e por um magnífico Châteauneuf du Pape.
Dias depois, terminado meu trabalho, saímos, eu e meu amigo, para um passeio de alguns dias pela Provença que terminaria em Avignon, onde eu ia pegar o Transeurope Express para a Suíça. Aí paramos no Pont du Gard com calma, e resolvemos subir até o topo da ponte, lá onde a água passava antigamente.
fotografia Wilson Baptista Junior

             A subida era permitida, mas feita por conta e risco do visitante, porque o topo é estreito a as rajadas de vento podem fazer a pessoa perder o equilíbrio.
Lá em cima, o canal onde passava a água tem pouco mais de um metro e trinta de largura, e era coberto, como todo o aqueduto, por uma fileira de lajes de calcário. Hoje muitas delas faltam ou estão quebradas, então para atravessar a ponte por cima tivemos que passar em vários trechos andando sobre as bordas das paredes laterais, pouco menos de um metro de largura sem parapeitos, vendo a corrente do Gardon passar brilhando ao sol quase cinquenta metros mais abaixo e prestando atenção no vento. Uma viagem. 
fotografia Wilson Baptista Junior


Os fãs do Asterix devem se lembrar de uma história em que nossos heróis aparecem nesta ponte, uma óbvia licença poética do Uderzo e Goscinny porque ela só foi construída cem anos após a morte de Julio César. Mas, por Tutatis, em se tratando de Asterix e Obelix, quem se importa?


14 comentários:

  1. 1)Belas fotos. Parabéns Mano.

    2)Bom texto. Corajoso andar a 200 km por hora.

    3)Ótimo fim de semana para todos(as).

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    1. Obrigado, Antonio. As fotos foram ajudadas pelo lugar...
      A coragem era do Monsieur Gard, ele estava dirigindo. Mas o passeio foi divertido!

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  2. 'Por Tutatis' foi a minha madeleine, do Proust, Mano Wilson. Lembrei com cores muito vívidas das histórias de Asterix e Obelix. E com MUITA SAUDADE. Pode até ter livrinho novo, faz tempo que vi um em livraria, não sei se a do aeroporto. Mas a dupla Uderzo e Goscinny era imbatível.

    Sou como o cachorrinho dos gauleses, tenho Ideiafix, rsrsrs. Era assim que se escrevia, pois não? Já não lembro.

    Graças a Deus vocês existem e eu me ilustro e me divirto. Ando precisando bastante levar a cabeça a passeio.

    O aqueduto da foto parece com o dos Arcos da Lapa, no Rio, construído aqueduto também.

    Amei seus texto, Mano, amei.

    Meu irmão, um apaixonado pela França, sempre me disse que um restaurante duas estrelas por lá é MUUUITO bom. Muitas vezes levado em frente por marido e mulher, uma cozinha hospitaleira e pra lá de muito boa.

    Existe cozinha ruim na França? Pelo que me contam, NÃO existe.

    Gostei das suas proezas em terras bleu, blanc e rouge, não sabia que você era tão... tão... serve habilitado profissionalmente?

    Você sabe o que quero dizer, Mano. Um profissional competente.

    Viva você!
    Bom dia.

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    1. Ofélia, eu também gosta muito das histórias do Asterix.
      Fico feliz por você ter gostado do texto. E, sim, duas estrelas Michelin na França, ainda mais naquele tempo, era coisa muito séria. Mas se você quiser conhecer de verdade a comida francesa, deve comer nas cidades pequenas, nos lugares sem turistas, onde as pessoas de lá gostam de comer, aliás acho que isso vale no mundo inteiro.
      Não sei se eu era lá tão competente, mas eu trabalhei muito tempo e em muitos lugares, aprendi muito em todos eles. É muito interessante trabalhar com gente de países diferentes.

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  3. Heraldo Palmeira21/01/2017, 15:18

    Viajei junto, Mano, inclusive pelo gosto por carros, imaginando a fúria desse Lancia. Afinal, carrega a melhor tradição de um verdadeiro cuore italiano.

    Fiquei pensando na precisão das fabulosas construções romanas e lembrei da minha visita a Portugal, onde me deslumbrei, especialmente, com o Templo de Diana (um dos mais grandiosos e mais bem preservados da Península Ibérica, na verdade dedicado ao imperador Augusto e não à deusa da caça), diante da minha janela da bela Pousada dos Lóios, em Évora, e com as ruínas de Conímbriga, na região de Coimbra, que visitei sem ninguém ao redor numa tarde de inverno, que conferiu ainda mais mistério ao que a vista alcançava.

    Por fim, a comida francesa! Gostaria de merecer de alguém, um dia, uma "resposta" como essa que lhe deu o Monsieur Gard. E ratifico nossa querida Ofelia: cozinha francesa independe do número de estrelas ou de outros corpos celestes que adornem o restaurante. Cozinha francesa ruim deve ser algo raro como enterro de anão - quem já viu ou, pelo menos, soube de algum?

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    1. Heraldo, as visitas boas são como as que você contou, nem sempre se consegue.
      Os caras eram engenheiros incríveis, é interessante ver os instrumentos que eles tinham e pensar nos que eles não tinham, e que das construções deles algumas estão ainda sendo usadas vinte séculos depois...
      O mundo dá muitas voltas, quem sabe a que horas virá uma "resposta" dessas?
      E o Lancia... Ainda hoje acho que não faria feio.

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  4. Dulce Regina21/01/2017, 19:13

    Que maravilha de narrativa, Wilson. Essa região da França é belíssima ! Uma construção dessa magnitude é impressionante e merece todo nossos aplausos. Sua foto é divina e linda. Também estivemos em Avignon, e sabe que almoçamos nesse restaurante ? Apesar de ser tradicionalíssimo é bem atualizado e tem um refinamento incrível, comemos muito bem e tomamos vinho, só não lembro o nome. Realmente comer na França é coisa dos deuses. Em Carcassone saboreamos um cassoulet maravilhoso. Bom viajar por esse mundão de Deus. Bom domingo ! Dulce


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  5. Dulce, que bom que você gostou da fotografia. Para dizer a verdade, eu também gosto. Talvez pela luz, talvez mais pelas lembranças...
    Então vocês também gostaram do Hiely. Bom saber que continua bom.
    O tempero da cozinha provençal me lembra um pouco o da cozinha baiana. Combina com nós brasileiros. E esse mundão de Deus vale a pena.

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  6. Francisco Bendl22/01/2017, 10:53

    Caro amigo Wilson,

    Teus artigos somados ao do Pimentel, têm enriquecido os livros de História que tenho comigo.

    Detalhes que não constam em registros, que deixam um leitor voraz como me considero mais informado a respeito das cidades, regiões e países que vocês tem abordado, justamente porque visitados pessoalmente, então as conclusões e pormenores colhidos de observações e em conversas com os moradores dessas localidades.

    Aprecio em demasia este tipo de artigo postado, razão pela qual peço que jamais sejam interrompidos, diante da importância que se revestem para conhecimentos das pessoas que não tiveram esta oportunidade ímpar de visitar os demais Continentes além do nosso, o Sul-americano.

    Obrigado, Wilson.

    Um forte abraço.
    Excelente domingo.
    Saúde e Paz!

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    1. Obrigado, amigo Chico.
      E por falar nos países vizinhos, você está nos devendo algumas histórias deles do seu tempo de representante comercial. Tenho certeza de que tem lembranças interessantes.

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  7. Moacir Pimentel22/01/2017, 20:00

    Wilson.
    Não vou me alongar pelas estradas que levavam a Roma, passando por essa Provence que tanto apreciamos a duzentos por hora nesse Lancia. Tudo isso você já contou e bem demais .
    Concordo que as melhores cozinhas estão em casas modestas que se escondem porque não querem os turistas por perto , nas pequenas tascas e bistrôs geridos amorosamente por quem faz da cozinha uma arte. Aliás, diz Dona Lenda, que a palavra bistrô é oriunda do russo "bystro", significando "rápido" e que teria invadido a língua francesa durante a Batalha de Paris quando os cossacos que queriam ser servidos rapidamente berravam "bistrô" batendo com as mão nas mesas! Uns bárbaros! Comer depressa , beber sem "terroir" e sem conversa não tem nada a ver.
    Vou mencionar apenas a grande qualidade das suas fotos, tiradas tanto tempo faz. Temos fotos digitais a partir de 2002.Antes da variada do milênio minha mulher organizava nossas fotos e negativos em álbuns e em cada um deles moram praí 5 férias, pois fazer fotografias e revelá-las era uma atividade cara. Hoje faço milhares de fotos numa viagem e imprimo uma ou duas. Mas já tentei escanear dentre as fotos analógicas as que me são mais caras: as cores me parecem desbotadas , a luz não me satisfaz. Desisti ao entender que o problema tinha sido o fotógrafo amador. Diferentemente das suas ,tiradas por um equipamento de primeira nas mãos de um profissional.
    Belo post que nos deixa na boca um gosto de quero mais fotos e pretinhas e "brandade de morue"
    Abraço

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  8. Obrigado, Moacir, pelos elogios ao post e às fotografias. Mas estas não saíram das mãos de um profissional, longe disso. Eu nunca fui mais do que um fotógrafo amador; amador, talvez, um pouco no antigo sentido da palavra.
    No tempo do filme era preciso julgar bem a luz, as máquinas não tinham os recursos eletrônicos das digitais de hoje, que fazem grande parte desse trabalho para a gente, e cada filme reagia de um jeito que era preciso conhecer. As ampliações comuns, feitas à máquina, perdiam também muito da qualidade dos negativos originais. Além disso, as fotos analógicas coloridas desbotam com o tempo, infelizmente tanto as cópias em papel quanto os negativos e os slides. É preciso procurar recompor os matizes originais quando se trabalha com elas. Os scanners comuns também não "enxergam" suficientemente bem as fotos. Então talvez por isso as suas preferidas, escaneadas, não tenham a mesma vitalidade das suas lembranças.

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  9. Andre Baptista23/01/2017, 14:37

    Mais uma ótima história, Padrinho. Deu muita vontade de voltar àquela região da França, um espetáculo. Um abraço André

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    1. Wilson Baptista Junior23/01/2017, 17:10

      Dá vontade mesmo, Afilhado. Lá é muito gostoso. E vocês ainda vão voltar, com certeza. Um abraço.

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