Moacir Pimentel
No seu leito de morte, em 1917 , mais uma vez
Auguste Rodin esculpiu um paralelo entre a mão do Criador amassando o barro
primordial e a sua própria mão criando um torso feminino. Essa mão, que
inventara tantas maravilhas, foi a última escultura do artista.
“Os
verdadeiros artistas são os mais religiosos dos mortais”, disse Rodin.
Com certeza, quem visita o
Museu Rodin, conhece a obra do artista, lê suas biografias, identifica em
Auguste Rodin um sotaque religioso, quase como se esculpir fosse para ele uma
religião na qual, tal como uma criança, ele buscava um substituto para a fé
católica da sua infância, elaborando uma espécie de misticismo da arte, no qual
o primeiro mandamento para os devotos era:
Modelar perfeitamente braços, torsos e coxas!
Brincadeiras à parte, Rodin
contribuiu para sua própria santificação doando a sua obra para o Museu que
leva seu nome. Ainda vivo ele testemunhou a abertura do Museu Rodin, em 1916,
no Hôtel de Biron, que antes lhe servira de estúdio.
Nos revelam seus biógrafos que, certa vez, como que mediunizado em um
ritual sagrado, Rodin substituiu a palavra Deus pela palavra Escultura, no
Livro III da Imitação do Cristo de Tomás de Kempis, no capítulo de nome Da
Consolação Interior:
“Ouvirei o que em mim disser a Escultura.
Bem-aventurada
a alma que ouve em si a voz da Escultura e recebe de seus lábios palavras de
consolação!
Benditos
os ouvidos que percebem o sopro e o sussurro da Escultura e não dão atenção às
sugestões e às atribulações do mundo!”
Muito poucos sabem que, na mais parisiense das
cidades da América Latina, mais precisamente no Museu de Belas Artes de Buenos
Aires, a adoração de Rodin encontra eco, pois ali mora uma das maiores coleções de esculturas de Auguste
Rodin do vasto mundo.
Entre tais maravilhas e quase desconhecida dos
próprios portenhos, está uma
belezura que me encantou há décadas: A
Terra e A Lua.
A escultura é um bom exemplo de como a tal
multiplicação dos corpos dos Portões de Inferno de Rodin funcionava.
Quem olha atentamente para a escultura consegue
perceber no bloco de mármore a nossa espécie esculpida:
em movimento, em
conflito, se aproximando, se conectando, se repelindo, se amando, se odiando, mas
sempre buscando alguma coisa que falta...
O quê ? Deus?
Dizem que o modelo da figura feminina
foi Gwen John. Não é verdade. Apaixonada
por Rodin e também artista plástica, ela recebeu dele , durante toda a sua
vida, conforto emocional,
intelectual e algum apoio
financeiro. Gwen escreveu mais
de mil cartas para Rodin
chamando-o de "Mestre".
Ele respondia descrevendo-a como uma "bela
artista"
É claro que eles foram mais do que mestre e aluna e que tornaram-se amantes antes do fim da relação com Camille. Porém a Lua nesta escultura é a Eva
– aquela que conhecemos desde os Portões – que também foi repetida no corpo
feminino que se vê noutra escultura de nome Paulo e Francesca nas Nuvens. A
mesma que ainda nas Nuvens e fragmentada em rostos e mãos foi de novo batizada
de A Última Estrela da Manhã.
Ou seja, a Lua esculpida nos primeiros anos do século XX e anos depois de
findo o romance de Rodin com Camille Claudel ainda é Camille!
Tem mais. Na realidade, A Terra
e a Lua da foto não é a que mora em Buenos Aires. Como assim? Existem três
esculturas, três versões do mesmo tema. A primeira está
no National Museum of Wales, em Cardiff. A segunda
pertence ao Museu Rodin em Paris e é a que ilustra
o post. A terceira é a argentina.
Há diferenças entre as
três esculturas. A que mora em Buenos Aires é a
maior delas e, num espaço
mais largo e alto, o criador pôde fazer da parte superior da
composição uma espiral , um casulo dentro do qual
as figuras aparecem.
A escultura foi
reduzida à sua essência e parece um fragmento antigo desgastado
pelo tempo, livre de quaisquer elementos surpérfluos.
Para entender
A Terra e a Lua é preciso repetir, mais uma vez, que a maior parte das obras de
Rodin foi criada inicialmente nos Portões do Inferno e que tais figuras, mais
tarde, foram executadas como esculturas distintas, nas quais ele se reinventava a si mesmo.
Digamos que, com aqueles
Portões, Rodin brincava de Jack, o Estripador: ia por partes! Isso permitiu-lhe trabalhar mais fertilmente, mais rapidamente,
uma vez que ele pulava as etapas criação e modelagem, aproveitando as inúmeras figuras que já havia inventado anteriormente.
Pode-se ver quais foram os elementos
que saíram dos Portões do Inferno para compor A Terra e a Lua. A
figura feminina enrolada
lá no topo não é outra senão Andromeda, figura que já inspirara antes a primeira versão da Danaide, uma das coisas mais lindas que Rodin assinou. No mármore definitivo da Terra e da Lua está o cabelo suntuoso da Danaide que flui no lado
direito da composição entalhado em belas ondas
misturadas com as nuvens do céu.
No novo conjunto também foi usada a pretérita cabeça
da Mártir e Rodin colocou
a sua antiga Fadiga de lado, em pé
e de perfil, de modo que o corpo formasse um arco tenso, quando antes estava deitado numa posição horizontal.
Embora as figuras não tenham sido originais, isto não
compromete ou limita o grau de liberdade da mão de Rodin no momento em que a
nova obra prima foi esculpida:
os dois corpos fluidos,
as duas figuras sinuosas estão completamente fora do centro e parecem emergir
do enorme bloco de mármore. O artista deixou o mármore parcialmente em seu estado bruto: vestígios do ataque do cinzel foram intencionalmente mantidos na sua parte inferior, enquanto a parte superior foi esculpida com grande delicadeza para evocar a cabeleira da figura
feminina.
Depois de tudo isso, a única coisa que restava era
encontrar um título, que foi sugerido por um escritor
amigo de Rodin. A pequena dimensão das figuras em relação ao bloco talvez tenha
inspirado quem a batizou a visualizar o universo e nele nosso planeta e seu satélite. Ou - quem sabe? - a emancipação do espírito da matéria bruta. O título sugere um contraste entre o mundano e o etéreo.
Entenda, Rodin nunca cedeu ao
desejo e/ou a pressões para representar um tema em particular, mas sim, procurou reunir formas que pareciam adequadas para complementar umas às outras,
para experimentar. O significado que essas novas composições assumiriam à luz do simbolismo não lhe
interessa minimamente. Mais tarde alguém trataria do
batismo das suas novidades para ele.
O artista não hesitou em levar a cabo versões adicionais
da Terra e da Lua, mais
uma vez modificadas, em
mámore e em bronze, dessa feita sob o título
de Eternas Primaveras - nove esculturas ao todo! - das
quais a oitava também nos
alegra a vida, vez por outra, em Buenos Aires.
Rodin fragmentou o Inferno. Reinventou-o mais de uma
centena de vezes, emendando
seus pedaços. Recriou em
cima do que já estava feito e bem feito. Revolucionou , copiando a si mesmo, mas aprimorando a
cada golpe de cinzel o tratamento de escultura
dinâmica.
Fragmentou ainda a forma humana nas suas posturas
soltas e naturais,com suas
superfícies irregulares, com a inquietante tensão trabalhada nos
músculos ,nos nervos das suas figuras, que por sua vez
o levaram a uma muito especial interação
entre as áreas de luz e sombra.
E Rodin fez tudo isso enquanto teve Camille Claudel ao seu lado. Ela
ajudou-o a criar uma nova linguagem escultórica - essencialmente realista e
física, mas altamente carregada de emoções – transmitindo a sensualidade humana
mais diretamente do que nunca. Os maiores trabalhos de Rodin, aqueles que
contêm as qualidades que descrevo acima, foram realizados durante o produtivo e
longo caso de amor e parceria artística com Camille Claudel.
Veja, no sentido horário, a maravilhosa Danaide – cujo modelo foi Camille –
uma das muitas Eternas Primaveras, o Torso de Adele e o Eterno Ídolo esculpidas
nesse fértil período. Tais esculturas são pura paixão expressa por jovens
corpos masculinos e femininos nus e vivos, cujos braços e pernas parecem dançar
nas alturas do êxtase e sem as profundezas do sofrimento.
Existe no Museu Rodin, um salão dedicado aos trabalhos de Camille, que nos
enche os olhos e a alma funda. Que talento o desta mulher atormentada! Porém
descobrir Camille nos trabalhos de Rodin é mais fascinante ainda. Enquanto estiveram
juntos no estúdio dele, eles foram seus próprios modelos. Camille o amava, o
desejava, posava para o amante, esculpia-lhe as extremidades das obras e
gravitava na órbita do artista, enquanto ele produzia suas visões de pedra em
série, idealizando a paixão e o sentimento que os moviam.
Mas do amor de Camille e Rodin duas obras dão melhor testemunho. Em Amor
Fugitivo um casal transforma um bloco de pedra em cama de paixão, gritando-nos a
evanescência do amor. A mulher está nua e deitada de bruços com as costas
arqueadas, num esforço supremo, que é expresso pelos lábios firmemente cerrados,
as pernas estendidas e tensionadas e as mãos levadas à cabeça e mergulhadas nos
cabelos. Para que tanto esforço? Ela literalmente luta para fugir através dos
dedos do amante que tenta retê-la segurando-lhe uma mama.
Ele tenta segurá-la de qualquer maneira, convencê-la com carícias, fazê-la
permanecer, mas é inútil. Ela está exausta do peso dele e dos grilhões. Deseja
se arrancar do abraço desse homem despido, deitado sob as costas dela, ombro a
ombro, bunda com bunda. Que também parece querer arrancar sua carne da dela,
mas é traído por aqueles seios que enlouquecem-lhe os dedos.
O que se adivinha é que jamais o pobre coitado se libertará do seu destino:
aquele peito escultural. E como eles se odeiam, esses dois seres, quase tanto
quanto se amam. Porque sim eles se amaram e isto está desenhado nesses músculos
e nervos exaustos, nos corpos exauridos pelo próprio fogo.
Eles não estariam assim tão absorvidos em tão grande batalha, se antes não
tivessem morrido entre selvagens carícias, a “pequena morte” da qual nos falou
Galleano...
“Pequena morte, chamam
na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntarmo-nos, e
perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena
morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce”.
E agora que não se olham mais, que suas bocas se evitam, que suas almas se
amaldiçoam, a sensualidade ainda ata os dois protagonistas dessa escultura com
cordas invisíveis. Essa é uma descrição literal da relação de amor e ódio
vivenciada por Camille Claudel e Auguste Rodin.
Quem são essas figuras? Bem lá atrás, na Divina Comédia, Dante encontrou
Paolo Malatesta e Francesca da Rimini, no Quinto Círculo do seu Inferno, as
almas penadas dos trágicos amantes acusados do pecado da luxúria, assassinados e
depois eternizados, como símbolo maior da iconografia do século XIX, numa
ilustração de Gustave Doré, feita em 1861 e por muitas outras paletas.
No poema de Dante Francesca narra assim o seu triste romance:
“Líamos um dia a sós, sobre o amor que seduziu Lancelote. Várias vezes
essa leitura nos ergueu olhar a olhar. Mas foi quando chegamos àquele ponto que
falava do sorriso que desejava ser beijado por um perfeito amante, que este
aqui que nunca me seja apartado, tremendo, beijou-me na boca naquele instante”
Paolo e Francesca também foram imortalizados - embora quase ninguém saiba
disso - noutra escultura de Rodin feita sob o feitiço de Camille – a famosa O
Beijo aí em cima na montagem - mas nela os infelizes enamorados mortos pelo
marido dela que, por acaso, era irmão dele, desaparecem dando lugar a um homem
e a uma mulher em extase amoroso. Rodin e Camille , é claro.
Esse beijo que a gente mal enxerga - pois na escultura os lábios mal se
tocam - está por toda a obra. Ele mora nas expressões dos rostos, na tensão dos
corpos das cabeça aos pés, em cada fibra das costas arqueadas das figuras, nas
pernas se entrelaçando, nos pés da garota mal tocando o chão ao se erguer com
todo o seu ser para ele, em ardoroso voo.
O Beijo está em cada diminuta parte destes dois corpos amorosos. E é isso
que fascina o observador das obras desta fase da arte de Rodin: o desejo
comunicado pelo mármore. Nessa estátua apenas um pequeno detalhe alude aos
personagens dantescos: o homem tem na mão esquerda o livro de Lancelote, aquele
que a Francesca confessou a Dante que...
“Nós não mais lemos naquele
dia”.
Em vez das duas sombras voando juntas e abandonando-se ao vento, no lugar
dos atormentados corpos flutuantes agarrando-se um ao outro desesperadamente
para não serem separados no inferno, os amantes de Rodin nesse beijo, sob a
administração da Camille, são uma das mais fortes imagens do amor físico da
humanidade. Na obra o sofrimento desaparece em favor da sensualidade.
Sem dúvida, Rodin criou algumas das imagens escultóricas mais eróticas e
mais ousadas já conhecidas - imagens como a Íris - Mensageira dos Deuses, Eu
Sou Linda, Mulher Agachada, Ascendência, Mulher Amaldiçoada e tantas outras retratando
Camille até o último dos retratos que fez dela, que chamou de Adeus, um
assamblado do rosto da amante e de mãos masculinas alienígenas, na minha
interpretação as dele, finalizando o romance. Colocando a cabeça e as mãos
sobre um bloco de gesso, Rodin lançou luz e sombra sobre o rosto que anunciava
investigações do século XX de escultores como Giacometti. Veja..
A mesma
erotização, se bem que muito mais suave, também aconteceu na arte de Camille,
mas essa conversa também fica para depois...
1) Obrigado por mais esta aula Moacir !
ResponderExcluir2) Um mergulho nesse magnífico mundo de Rodin e Camille.
"Vamos por partes" kkk Genial, Moacir.
ResponderExcluirSó mesmo o Jack Estripador para me fazer entender a multiplicação dos corpos do Portão. Amei! Que paixão, hein?
Perfeitas as suas explicações e as fotos. Mais do que isso só desenhando. Obrigada
Moacir,
ResponderExcluirUm artigo de grande seriedade e beleza. Concordo sobre a espiritualidade dos artistas sempre em busca de algo que com certeza é Deus. As tres esculturas destacadas são maravilhosas e você descreve o erotismo das obras com elegância. As fotos a citação de Galeano as palavras de Francesca são lindas, tudo combinando e encantando. Parabéns e um abraço.
Parabéns pelo tema irrepreensivelmente desenvolvido.
ResponderExcluir'O erotismo é uma manifestação das civilizações'.
Mario Vargas Llosa
Olá Moacir. Sou tão suspeita para falar sobre seus textos, que nem sei por onde começar. Sempre tive muita admiração por esculturas, eu pouco sabia sobre elas, mas elas atraiam-me como uma luz brilhante e levava-me a ficar extasiada ao admirá-las. Quanta perfeição ! Somente muito talento para transformar um bloco bruto de mármore, em figuras vivas que transmitem emoção, amor, desejo, repulsa, devaneios. Gosto de todas, mas Rodin tem seu lugar cativo nas minhas preferências- você sabe...- e concordo plenamente com o que ele disse : " os verdadeiros artistas são os mais religiosos dos mortais ". Comungo com essa idéia, pois faço das minhas tarefas, minhas orações e quanto mais elas me exaurem , mais valor têm. Imagina a exaustão dessa paixão, revelada por ele em suas obras . Danaide é fascinante ! Li que é alusiva a uma lenda das danaides- outra história de condenação . " Me fascina essa coisa de carregar água, ainda que de modo vão, pela eternidade afora. De certa forma me vejo nessa tarefa. Carrego se esvaindo de mim a imagem liquida do amor ( des ) sentido." Lindo isso ! A escultura Amor Fugitivo foi descrita por você com tanta realidade, que podemos ver os sentimentos no mármore. Sensacional ! Talvez seja essa erotização pueril que mais se sobressaia nesse seu texto. Vou ficar mitigando curiosamente tim-tim por tim-tim, todas as suas pontuações criticas. Amei tudo !!! E como amo !!! Abraços infernais. Dulce Regina
ResponderExcluirOlá Moacir,
ResponderExcluirVocê nos faz gostar mais ainda dessas obras maravilhosas!
Até mais.
Antônio e Mônica, sou eu que lhes agradeço pelo incentivo e boas palavras.
ResponderExcluirFlávia, Rodin foi buscar nas palavras de Dante a inspiração para os seus Portões,de cujos umbrais saiu o melhor da sua arte posterior , fragmentada e erotizada por Camille. Penso que a representação na pedra e no metal da paixão experimentada por estes dois de tão bela só pode ter sido mesmo soprada pelo divino.
Alexandre, grato pelo comentário e concordo com o grande Mario.
Dulce, minha amiga, essa Danaide é sim uma das mais belas criações de Rodin. Veja que ele não a mitou , não a esculpiu sendo punida, tentando cumprir a tal condenação absurda - como fez, por exemplo, o pré-rafaelita Waterhouse com tintas - mas retratou o desespero, a exaustão da figura diante da missão impossível. Eu vejo nas curvas desse corpo - nas costas e pescoço e braços - uma paisagem feminina, um vale, uma ribanceira à beira d'água, representada pelas ondas desses cabelos derramados, descritos por Rilke - que sabia das coisas - como "líquidos". Obrigado pela leitura atenta.
Donana, que bom que a senhora gostou. Aqui entre nós e baixinho: a intenção é exatamente essa! (rsrs)
Abraço geral