Heraldo Palmeira
A Natal da
minha infância e juventude tinha seus ícones particulares, como qualquer cidade.
Aquelas figuras populares que todos conhecemos do cotidiano das ruas com uma enorme
falsa intimidade. Quando morrem, reviramos o baú do esquecimento até
percebermos que perambularam na periferia das nossas vidas com certa intensidade
e nada sabíamos a respeito deles.
Com a
notícia de que uma dessas figuras do patrimônio popular natalense havia
silenciado, dei um enorme passo para trás no tempo para reencontrar uma cidade
encantadora em pleno fulgor da virada dos anos 60/70, prenhe dos sonhos traçados
pela nossa juventude e pelo intenso caldeirão político-cultural que sacudia o
mundo naquele momento.
Tínhamos um
elenco local com ares chaplinianos, três ou quatro “artistas oficiais”. Um
pintor sempre debaixo de um chapelão de palha e vestido de branco angelical lambuzado
de tintas e cores, algo extremamente psicodélico! Um eterno rei momo, monarca
indiscutível da tribo foliã, um nobre da bagunça. Um cego que vendia bilhetes
de loterias, rei do chiste que distribuía sua alegria gratuita como prêmio
maior. Um fotógrafo de baixíssima estatura e bigode monumental que quase servia
de acessório às suas Rolleiflex e Yashicas. Alguns ainda vivos. E havia uma
figura enigmática: André da Rabeca.
Tempos em
que as festas particulares não careciam de produção alguma e bastava amontoar
um bocado de amigos ao redor de um bom motivo. Não houve festa de aniversário
ou qualquer acontecimento familiar de maior destaque sem a presença daquela
criatura extremamente triste. Triste como seu arremedo de cantoria e o som do
instrumento que virara sua cara-metade. Quando entrava em ação, era difícil
distinguir entre atração artística e curiosidade humana.
Falava
pouco, com uma fala quase incompreensível, e o estrabismo reforçava o ar
perdido do seu olhar. Um boné surrado – na mesma cor café com leite que a
polícia usava na época – com alguns emblemas costurados denunciava algum
fetiche militar, talvez um sonho secreto de ser soldado por profissão. Algo que
merecia o zelo extremo de manter à mão agulha e linha para refazer as costuras
diante do menor sinal de necessidade de reparo. Urgência que não poupava da
espera qualquer plateia. Afinal – devia pensar entre seus botões –, figurino é
figurino.
Na verdade,
aquele homem era tão incompreensível quanto a música que imaginava tocar na
rabeca, cujo repertório era centrado em clássicos nordestinos e cirandas
pernambucanas. Viveu espremido na exata divisa entre passado e futuro,
trilhando um presente cruelmente incerto todos os dias. Caminhava sobre
partituras imaginárias onde o som acabava a qualquer momento, sem um mínimo de
cerimônia e podendo retornar instantes depois. Era como se sua música e sua
vida transcorressem nesses lapsos, em arranjos sem notas precisas, sem maestro
e sem nexo.
Nos últimos
tempos escolhera dois pontos para sua mendicância musical: uma sorveteria reduto
da classe média e uma ponta de calçada na rua Princesa Isabel, na outrora fulgurante
microrregião comercial do Centro, denominada Grande Ponto. Instalado no passeio
sob sol devastador, tocava para as almas num palco imaginário. Desaparecia no
meio da indiferença dos passantes, à espera das moedas que teimavam em não cair
na caixa do instrumento, surrada como a própria vida.
Encerrou seu
espetáculo solitário num domingo de janeiro, talvez desconfiado de mais um ano
que teria de enfrentar com as mesmas armas. Tinha 65 anos e se curvou ao enfisema
pulmonar. Músico de muitas limitações, André da Rabeca foi um desses anjos
tortos que permitiu à música roçar as vidas de outras criaturas que, como ele,
vagaram pelas ruas incertas da ilusão antes de descobrirem que o nome disso é
desilusão.
Quando
perdemos esse tipo de referência urbano-cultural tomamos um susto, talvez
alertados pela consciência de que estamos morrendo um pouco também. André da
Rabeca se foi como um paradoxo, deixando um legado silencioso: o tempo feliz
que representou sem saber. Um tempo que ainda podemos visitar revendo filmes e
fotografias, relendo livros e ouvindo as velhas canções que nos fizeram acreditar
no paraíso terreno.
Um
lugar que ele tentou conquistar deslizando um arco sobre as quatro cordas intangíveis
da sua rabeca. Vã tentativa de estabelecer aliança com um paraíso que lhe
acolheu por simples caridade, e que não lhe permitiu um passo além da dureza
das suas calçadas. Um paraíso de mentira que transformou aquele pobre homem
numa esfinge.
(*) Agradecimentos especiais a Marcus Guedes, por ajudar a organizar estas memórias com sua memória prodigiosa.
(*) Agradecimentos especiais a Marcus Guedes, por ajudar a organizar estas memórias com sua memória prodigiosa.
Heraldo, belíssima crônica, que traz a cada um de nós lembranças desses tipos que passaram por nossas vidas (ou nós que passamos pelas deles?), contada como só você sabe fazer. Parabéns.
ResponderExcluirMano,
ExcluirGrato pelo comentário. Tenho certeza de que há esse movimento de passar pelas vidas entre nós e eles. Seguirei atento aos movimentos que me cercam.
Oi Mano Wilson. Por que sua fotinha está na minha página do UOL? Bem no alto? Faz tempo que você, barbucho como Papai Noel, está lá, ou aqui. Você sabia?
ExcluirE Heraldo, seus textos como sempre encantadores. Estive fora da internet. Devo continuar, não sei ainda. O computer deu tilt. Parabéns.
Ofélia,
Excluirnão tenho a menor idéia, nem tenho email do UOL. Mistérios da Web :)
Mano, se eu clico na fotinha, aparece o texto do Heraldo, Prelúdio.
ExcluirTudo muito doido nesse computer.
of;elia, talvez o UOL guarde os sites mais visitados, e tenha guardado o do blog.
ExcluirAlguma vez você entrou no blog digitando só "Conversasdomano" na página do UOL?
Se for assim ele deve guardar. Ou então ele achou o post no Facebook, onde eu aviso cada post que é publicado,lá tem minha foto. Deve ter sido um dos dois.
'xa pra lá, Mano. Digito no Google, não uso Facebook pra acessar vcs nem a TI.
ExcluirPor que a sua fotinha se ela nem faz parte do blog?
Ah, eu adoro coisas malucas. Essa é uma delas.
Boa noite.
Amigo Heraldo
ResponderExcluirEsse coração de Poeta escreve e descreve coisas lindas.
Parabéns
Domingos
Caro Domingos,
ExcluirObrigado. Ficamos todos aguardando seus escritos sempre grandiosos.
1) Bom texto, resgatando figuras públicas em uma cidade grande.
ResponderExcluir2) Dom de cronista, parabéns !
3)Lembrei da minha temporada em Natal, em 2002. Capital belíssima, povo hospitaleiro.
Ana,
ResponderExcluirAcredito que essas figuras existem em qualquer lugar do mundo, são resultado dos dramas humanos de cada sociedade. Imagino que figura deve ser a dona Olímpia, que trilhou de um extremo a outro do status social da cidade até estacionar na sarjeta!
Não consegui acessar os dois links que você sugeriu.
Heraldo, corrijo aqui os links do comentário da Ana:
ResponderExcluirhttps://tccolympia.wordpress.com/
http://www.ouropreto-ourtoworld.jor.br/donolimpia.htm
Mano Véio,
ResponderExcluirEsse texto foi prá "torar" o coração.
Sobretudo ao lembrar do querido e saudoso André da Rabeca, que deliciou as nossas infâncias e juventudes com os seus "celestiais e imagináveis" sons. E que nos deixou órfãos de uma das mais belas e singulares figuras humanas que Deus nos deu a graça de conhecer.
Saudades, também, do nosso querido "cego" Raimundo, o dono do melhor "golpe de vista" que conhecemos. Doce também é rever na memória a figura chapliniana de Dany Cooper, o fotógrafo, notadamente nos períodos carnavalescos quando, em cima da sua Studebaker vermelha, ele se travestia de figuras ilustres da história, inclusive do próprio Chaplin.
Ah, e quando você vier a Natal, avise. Quem sabe possamos dar um pulo no "Café São Luís" e lá bater um papo com o grande Grilo, o nosso Salvador Dali! Aliás, tenho a imensa alegria e honra de trabalhar com um filho dele, também pintor como o pai, que carrega um nome invejável: AMENHOTEP AMENOFIS AKENATON AMURAB DE OLIVEIRA GRILO. Para nós, apenas "seu" Amin!
Mais uma vez, Nota 10!!
E grato por renovar os tempos felizes da nossa infância/juventude, idos dos anos 70, lembrando dessas figuras humanas notáveis que nos ensinaram o verdadeiro valor da vida.
Xêro.
Mano Véio,
ExcluirOra, pois, você é bastante responsável por essa historieta. Afinal, me ajudou a puxar da memória do tempo tanta coisa que nos marcou naqueles tempos inesquecíveis de uma Natal orgulhosa e serena. E que "seu" Amin siga os passos do pai, inclusive entoando óperas enquanto colore o mundo.
Muito legal e poético!
ResponderExcluirMeu jovem amigo,
ResponderExcluirAcho que nessa você se superou. Tirou da cartola nomes que marcaram a nossa juventude e que estavam escondidos n'algum lugar da nossa falha memória, mas que bastou serem mencionados, que saltaram à ribalta cada um, de forma exageradamente viva e forte! Muito mais que emocionante, é um texto vivo que resgatou cada personagem tão bem conhecida pela nossa geração. No mais, ressaltar mais uma vez o enorme privilégio de poder ler o Heradão!!!
Forte abraço,
Wagner Monteiro