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30/01/2017

Arco da Aliança


Heraldo Palmeira
A Natal da minha infância e juventude tinha seus ícones particulares, como qualquer cidade. Aquelas figuras populares que todos conhecemos do cotidiano das ruas com uma enorme falsa intimidade. Quando morrem, reviramos o baú do esquecimento até percebermos que perambularam na periferia das nossas vidas com certa intensidade e nada sabíamos a respeito deles.
Com a notícia de que uma dessas figuras do patrimônio popular natalense havia silenciado, dei um enorme passo para trás no tempo para reencontrar uma cidade encantadora em pleno fulgor da virada dos anos 60/70, prenhe dos sonhos traçados pela nossa juventude e pelo intenso caldeirão político-cultural que sacudia o mundo naquele momento.
Tínhamos um elenco local com ares chaplinianos, três ou quatro “artistas oficiais”. Um pintor sempre debaixo de um chapelão de palha e vestido de branco angelical lambuzado de tintas e cores, algo extremamente psicodélico! Um eterno rei momo, monarca indiscutível da tribo foliã, um nobre da bagunça. Um cego que vendia bilhetes de loterias, rei do chiste que distribuía sua alegria gratuita como prêmio maior. Um fotógrafo de baixíssima estatura e bigode monumental que quase servia de acessório às suas Rolleiflex e Yashicas. Alguns ainda vivos. E havia uma figura enigmática: André da Rabeca.
Tempos em que as festas particulares não careciam de produção alguma e bastava amontoar um bocado de amigos ao redor de um bom motivo. Não houve festa de aniversário ou qualquer acontecimento familiar de maior destaque sem a presença daquela criatura extremamente triste. Triste como seu arremedo de cantoria e o som do instrumento que virara sua cara-metade. Quando entrava em ação, era difícil distinguir entre atração artística e curiosidade humana.
Falava pouco, com uma fala quase incompreensível, e o estrabismo reforçava o ar perdido do seu olhar. Um boné surrado – na mesma cor café com leite que a polícia usava na época – com alguns emblemas costurados denunciava algum fetiche militar, talvez um sonho secreto de ser soldado por profissão. Algo que merecia o zelo extremo de manter à mão agulha e linha para refazer as costuras diante do menor sinal de necessidade de reparo. Urgência que não poupava da espera qualquer plateia. Afinal – devia pensar entre seus botões –, figurino é figurino.
Na verdade, aquele homem era tão incompreensível quanto a música que imaginava tocar na rabeca, cujo repertório era centrado em clássicos nordestinos e cirandas pernambucanas. Viveu espremido na exata divisa entre passado e futuro, trilhando um presente cruelmente incerto todos os dias. Caminhava sobre partituras imaginárias onde o som acabava a qualquer momento, sem um mínimo de cerimônia e podendo retornar instantes depois. Era como se sua música e sua vida transcorressem nesses lapsos, em arranjos sem notas precisas, sem maestro e sem nexo.
Nos últimos tempos escolhera dois pontos para sua mendicância musical: uma sorveteria reduto da classe média e uma ponta de calçada na rua Princesa Isabel, na outrora fulgurante microrregião comercial do Centro, denominada Grande Ponto. Instalado no passeio sob sol devastador, tocava para as almas num palco imaginário. Desaparecia no meio da indiferença dos passantes, à espera das moedas que teimavam em não cair na caixa do instrumento, surrada como a própria vida.
Encerrou seu espetáculo solitário num domingo de janeiro, talvez desconfiado de mais um ano que teria de enfrentar com as mesmas armas. Tinha 65 anos e se curvou ao enfisema pulmonar. Músico de muitas limitações, André da Rabeca foi um desses anjos tortos que permitiu à música roçar as vidas de outras criaturas que, como ele, vagaram pelas ruas incertas da ilusão antes de descobrirem que o nome disso é desilusão.
Quando perdemos esse tipo de referência urbano-cultural tomamos um susto, talvez alertados pela consciência de que estamos morrendo um pouco também. André da Rabeca se foi como um paradoxo, deixando um legado silencioso: o tempo feliz que representou sem saber. Um tempo que ainda podemos visitar revendo filmes e fotografias, relendo livros e ouvindo as velhas canções que nos fizeram acreditar no paraíso terreno.
Um lugar que ele tentou conquistar deslizando um arco sobre as quatro cordas intangíveis da sua rabeca. Vã tentativa de estabelecer aliança com um paraíso que lhe acolheu por simples caridade, e que não lhe permitiu um passo além da dureza das suas calçadas. Um paraíso de mentira que transformou aquele pobre homem numa esfinge.    

(*) Agradecimentos especiais a Marcus Guedes, por ajudar a organizar estas memórias com sua memória prodigiosa.


16 comentários:

  1. Wilson Baptista Junior30/01/2017, 11:29

    Heraldo, belíssima crônica, que traz a cada um de nós lembranças desses tipos que passaram por nossas vidas (ou nós que passamos pelas deles?), contada como só você sabe fazer. Parabéns.

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    1. Heraldo Palmeira30/01/2017, 17:15

      Mano,
      Grato pelo comentário. Tenho certeza de que há esse movimento de passar pelas vidas entre nós e eles. Seguirei atento aos movimentos que me cercam.

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    2. Oi Mano Wilson. Por que sua fotinha está na minha página do UOL? Bem no alto? Faz tempo que você, barbucho como Papai Noel, está lá, ou aqui. Você sabia?

      E Heraldo, seus textos como sempre encantadores. Estive fora da internet. Devo continuar, não sei ainda. O computer deu tilt. Parabéns.

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    3. Ofélia,
      não tenho a menor idéia, nem tenho email do UOL. Mistérios da Web :)

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    4. Mano, se eu clico na fotinha, aparece o texto do Heraldo, Prelúdio.
      Tudo muito doido nesse computer.

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    5. of;elia, talvez o UOL guarde os sites mais visitados, e tenha guardado o do blog.
      Alguma vez você entrou no blog digitando só "Conversasdomano" na página do UOL?
      Se for assim ele deve guardar. Ou então ele achou o post no Facebook, onde eu aviso cada post que é publicado,lá tem minha foto. Deve ter sido um dos dois.

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    6. 'xa pra lá, Mano. Digito no Google, não uso Facebook pra acessar vcs nem a TI.
      Por que a sua fotinha se ela nem faz parte do blog?
      Ah, eu adoro coisas malucas. Essa é uma delas.
      Boa noite.

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  2. Amigo Heraldo
    Esse coração de Poeta escreve e descreve coisas lindas.
    Parabéns
    Domingos

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    1. Heraldo Palmeira30/01/2017, 17:17

      Caro Domingos,
      Obrigado. Ficamos todos aguardando seus escritos sempre grandiosos.

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  3. 1) Bom texto, resgatando figuras públicas em uma cidade grande.

    2) Dom de cronista, parabéns !

    3)Lembrei da minha temporada em Natal, em 2002. Capital belíssima, povo hospitaleiro.

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  4. Heraldo Palmeira30/01/2017, 17:13

    Ana,
    Acredito que essas figuras existem em qualquer lugar do mundo, são resultado dos dramas humanos de cada sociedade. Imagino que figura deve ser a dona Olímpia, que trilhou de um extremo a outro do status social da cidade até estacionar na sarjeta!

    Não consegui acessar os dois links que você sugeriu.

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  5. Heraldo, corrijo aqui os links do comentário da Ana:

    https://tccolympia.wordpress.com/

    http://www.ouropreto-ourtoworld.jor.br/donolimpia.htm

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  6. Marcus Guedes31/01/2017, 15:40

    Mano Véio,

    Esse texto foi prá "torar" o coração.
    Sobretudo ao lembrar do querido e saudoso André da Rabeca, que deliciou as nossas infâncias e juventudes com os seus "celestiais e imagináveis" sons. E que nos deixou órfãos de uma das mais belas e singulares figuras humanas que Deus nos deu a graça de conhecer.
    Saudades, também, do nosso querido "cego" Raimundo, o dono do melhor "golpe de vista" que conhecemos. Doce também é rever na memória a figura chapliniana de Dany Cooper, o fotógrafo, notadamente nos períodos carnavalescos quando, em cima da sua Studebaker vermelha, ele se travestia de figuras ilustres da história, inclusive do próprio Chaplin.
    Ah, e quando você vier a Natal, avise. Quem sabe possamos dar um pulo no "Café São Luís" e lá bater um papo com o grande Grilo, o nosso Salvador Dali! Aliás, tenho a imensa alegria e honra de trabalhar com um filho dele, também pintor como o pai, que carrega um nome invejável: AMENHOTEP AMENOFIS AKENATON AMURAB DE OLIVEIRA GRILO. Para nós, apenas "seu" Amin!
    Mais uma vez, Nota 10!!
    E grato por renovar os tempos felizes da nossa infância/juventude, idos dos anos 70, lembrando dessas figuras humanas notáveis que nos ensinaram o verdadeiro valor da vida.
    Xêro.

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    1. Heraldo Palmeira31/01/2017, 18:28

      Mano Véio,
      Ora, pois, você é bastante responsável por essa historieta. Afinal, me ajudou a puxar da memória do tempo tanta coisa que nos marcou naqueles tempos inesquecíveis de uma Natal orgulhosa e serena. E que "seu" Amin siga os passos do pai, inclusive entoando óperas enquanto colore o mundo.

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  7. Wagner Monteiro10/02/2017, 11:10

    Meu jovem amigo,
    Acho que nessa você se superou. Tirou da cartola nomes que marcaram a nossa juventude e que estavam escondidos n'algum lugar da nossa falha memória, mas que bastou serem mencionados, que saltaram à ribalta cada um, de forma exageradamente viva e forte! Muito mais que emocionante, é um texto vivo que resgatou cada personagem tão bem conhecida pela nossa geração. No mais, ressaltar mais uma vez o enorme privilégio de poder ler o Heradão!!!
    Forte abraço,
    Wagner Monteiro

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