Heraldo Palmeira
Como Belo
Horizonte é uma cidade cheia de colinas, naquele quase final de manhã eu estava
resignado como um alpinista diante do seu desafio. Deixei para trás a galeria
do Edifício Maletta, e o primeiro trecho de caminhada na Avenida Augusto de
Lima impunha uma subida relativamente branda e curta até seu topo, na Espírito
Santo.
Depois, um
despencar até lá embaixo – como uma alegoria do mapa do Brasil, depois da
Espírito Santo eu cruzei Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba, e aportei no
plano diante do Mercado Central. Desci o ladeirão já sofrendo pelo esforço de
subida que faria na hora de voltar para o hotel.
Sexta-feira
animada aquela! Gente por todo lado transformando os longos corredores do velho
mercado numa festa. Aqui e acolá a gritaria de moças pregoeiras fisgando gente
na multidão para suas cervejas estupidamente geladas, enquanto as trempes espalhavam
calor e sustentavam panelas com delícias prestes a invadir a boca da cena
gastronômica. Bares apinhados onde os clientes ficam em pé, num conversado fascinante
que mistura política, negócios, futebol, prosa rasa, fofoca e tudo o mais que puder
ocupar a língua entre um gole e outro.
Segui o
fluxo da pequena multidão sem tentar abrir caminho. Afinal, um dos grandes
prazeres de Minas é a sábia prática de andar sem pressa. No final do corredor,
uma escadaria larga e de poucos degraus leva até o restaurante Casa Cheia. Inaugurado em 1978, virou
destaque do Mercado Central e ponto obrigatório da gastronomia de Belo
Horizonte.
A fila de
espera é uma das tradições do restaurante, e onde o freguês pode abrir os
trabalhos com o apoio irrestrito dos garçons. O lugar tem duas entradas amplas:
do lado de lá para quem pretende apenas bebericar e beliscar; do lado de cá para
quem já sabe que vai avançar sobre o cardápio. Na verdade, o Casa Cheia é um desses pés-sujos que
tomam banho diariamente. Devidamente instalado, nem me dei ao trabalho de abrir
o cardápio e parti para a indicação de amigos mineiros: rabada com agrião,
prato do dia das sextas-feiras.
As mesas são
muito próximas e não há como falar baixo no recinto. Enquanto esperava a
comida, fui cercado pela atmosfera do casal da mesa ao lado. Estavam levemente alcoolizados
e, sem qualquer tom de inconveniência, trocavam aquelas farpas que a vida madura
armazenou. Alternavam momentos delicados e ariscos, afagos e olhares
desafiadores. Felizmente as palavras deles acabavam se perdendo no vozerio
geral.
Em dado
momento, a mulher ficou sozinha. Pensativa. Longamente pensativa, de cabeça inclinada
na direção do tampo da mesa. Olhos imóveis num vazio estarrecedor. Não demorou
o choro sereno, de belíssima lágrima na ponta do nariz, quase uma joia sob o
efeito da claridade que vinha em contraluz. Eu daria meu pobre reino para
desvendar o pensamento que verteu aquela preciosidade.
Acendeu um
cigarro, mas o garçom mal esperou que ela terminasse a tragada profunda
primeira. Era proibido fumar ali; só podia lá fora. Ela apagou o cigarro com um
sorriso triste, como se perdesse o único ponto de apoio no exato momento em que
o homem sentou novamente ao seu lado. Manteve o sorriso triste e virou para
mim, falando da dificuldade de ser fumante nos dias de hoje. Ele entrou na
conversa com simpatia.
Em pouco
tempo eu sabia que eles dois namoravam há muitos anos, mas o homem era casado,
tinha filhos e morava com a esposa. Ela falou diversas vezes do imenso amor que
sentia, apesar do ar distante de quem perdeu todas as esperanças de final feliz
– que ela traduzia em morarem juntos. Aquele amor era um paciente moribundo e
desenganado, que seguiria vivendo até que alguma circunstância determinasse a
definitiva separação de corpos.
Talvez o fim
ocorresse sem lamúrias, apenas com o derradeiro fechar de porta do homem indo
embora da casa dela numa tarde qualquer. Ele sairia sem fazer os barulhos
conhecidos, sem uma palavra, sem esboçar um movimento sequer em sua direção. Sobraria
o retrato de um amor incapaz de qualquer gesto de amor.
Naquela
manhã havia um tom indecifrável de perda, algo muito além de uma daquelas
enésimas despedidas temporárias. No domingo seguinte, ele embarcaria para o
exterior.
O garçom chegou
com minha comida e aliviou o tom da prosa. Até rimos enquanto a mulher
rabiscava algo num guardanapo e elogiávamos a qualidade da cozinha. Almocei com
intenso prazer aquela delícia mineira, emoldurada por uma cerveja “mofada”.
Nos
despedimos com apertos de mãos rápidos e nem dissemos nossos nomes. O homem e a
mulher permaneceram sentados. Dei o primeiro passo na direção da saída. A
mulher disse lacônica: “Ele é militar, vai para o Haiti”. Desejei boa sorte.
Saí do
mercado e refiz o caminho por aquele mapa alegórico em busca do hotel. Subi a
ladeira tremenda cruzando Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e
Bahia quase sem perceber o esforço, pois a minha mente estava dominada por Haiti, a monumental música de Gil e
Caetano. De repente, aqueles homens e mulheres, quase todos pretos e cercados
de pobreza e lixo, não paravam de passar em câmara lenta na minha cabeça, como
um documentário sem tela sobre o país que nunca teve chance.
A voz do
próprio Gil quebrou o ritmo do meu filme imaginário, saindo de dentro de uma
loja no meio daquela muvuca e recomendando andar com fé.
Meses depois
o mundo foi sacudido pela notícia do terremoto no Haiti. Sobre todas as
desgraças particulares mostradas pela televisão, vi cair aquela lágrima
translúcida que ficara teimosamente dependurada no nariz da mulher do mercado, que
chorava a partida do seu homem. Um amor há muito destroçado como o Haiti. Agora
tão indefeso quanto o Haiti. Na minha cabeça o refrão tocou de novo como última
esperança de fé – “Pense no Haiti, reze pelo Haiti” – porque a fé não costuma
“faiá”.
1) Boa crônica.
ResponderExcluir2) Me fez lembrar da canção antiga:
3)"Ó Minas Gerais, ó Minas Gerais/Quem te conhece não esquece jamais/Ó Minas Gerais".
4) Pelos aspectos positivos, pois os negativos enfeiam este belo Estado.
Pense num camarada emocionado... Que lindeza de crônica! Esta deve ser peça obrigatória de seu livro com os big hits! Parabéns, HP! Vou espalhar essa preciosidade para os amigos do Caralivro.
ResponderExcluirNão é à toa que você tem Amorosino no nome.
ExcluirMestre Heraldo,
ResponderExcluirClap, Clap, Clap!!! Traduzindo: de pé, batendo palmas e pedindo bis.
Abração
Caríssimo,
ExcluirDeixe disso, vou ficar encabulado. Você terá "tris", pois o próximo texto - já no cofre digital do nosso Mano, só esperando a hora - fecha a trilogia mineira e encerra essa (uma de muitas) minha viagem inesquecível e querida pelas Geraes.
"Se descobrir que aquele homem maravilhoso que você conheceu em Nova York e com quem combinou de se encontrar em Paris - e a passagem já está na sua bolsa - é casado, desista da viagem. E dele."
ResponderExcluirDa sábia Danuza Leão (Na Sala Com Danuza).
Proximidade física é fogo. Se não sofrer agora, sofrerá depois, em dobro. A gente é que não tem juízo.
Heraldo, acho que você não é do tempo do bonde de que nos fala Sabino. O tal que subia Baía e descia Floresta.
Você conseguiu me deixar com vontade de visitar Belô. Sei que não vou, não irei. Mas me deixou a vontade de.
Ofelia,
ExcluirDanuza tornou-se sábia depois de, por amor, deixar o marido poderoso para casar com um então casado cronista, brigão, sedutor e boêmio insuperável. O amor tem mesmo suas dores e seus motivos insondáveis.
Não alcancei os tempos gloriosos dos bondes, apenas seus descendentes trólebus (no mesmo Recife e em São Paulo). Claro, fui usuário quase diário dos bondes de Santa Teresa (Rio), quando morei naquele bairro adorável. Mas estes não contam porque, dado o abandono do poder público, existem mas não existem.
Se puder ir visitar Belô, vá. Se não puder, vá também.Para isso, há textos, imagens, produtos, costumes, amigos mineiros...
Eu sei da história, Heraldo. Danuza deixou Samuel Wainer pra ficar com o jornalista e compositor Antonio Maria. O amor, quando chega, já não há mais jeito de evitá-lo. Foi o que aconteceu com a Danuza. O amor chegou chegando e tomou conta dela. E dele. Que não era rico, não era bonito, mas falava ao coração dela. Que partiu o dele, não muito forte.
ExcluirNão existe nada mais bonito nem mais poderoso, Heraldo. Nem mais inexplicável.
Tenho parentes em Minas. Em Belzonte já não sei quem mora. Os parentes se espalham por cidades mineiras. Antes da morte dos meus pais era mais fácil saber. Hoje é gente de uma outra geração que não a minha.
Que pena.
Acho que a foto, minha, dos meus pais, irmão e primo em BH são da Praça Afonso Pena. Existe?
O procurador da minha mãe (ela foi professora em MG e ele enviava o pagamento com documentação pro Rio) morava em BH. Balmaceda Tinoco Mineiro era o nome dele, nunca esqueci. Depois uma mulher entrou no lugar dele. Mas dela eu não lembro o nome.
Ofelia,
ExcluirAo que me consta, não existe uma praça Afonso Pena, em Belzonte. Você deve estar se referindo à praça Sete de Setembro (tratada carinhosamente como Praça Sete), marco zero da cidade, localizada no cruzamento das avenidas Afonso Pena e Amazonas, duas das mais importantes vias da cidade, com seu famoso obelisco no meio do asfalto.
Heraldo,
ResponderExcluirSou suspeito para falar porque vivo em Belo Horizonte desde que nasci (e já vai tempo) mas estou gostando muito das suas crônicas belzontinas. Você consegue realmente transformar momentos em retratos.
Meu caro Mano,
ExcluirNão satisfeito em me acolher aqui nesse canto de prosa, ainda me manda um clique deste!
Heraldo, que maravilha de crônica. Gosto de observar as pessoas, de imaginar o que conversam, quando não posso ouví-las e gostaria de ter esse " dom de Deus " para transmitir às pessoas, igual você faz. Seus relatos me levam à cena dos acontecimentos, confesso que fiquei cansada de subir a ladeira, mas o que encontrei foi fantástico ! Tudo que gosto...gente indo e vindo, paradas em grupos num papo descontraído, cervejando e, depois de poder observar de perto uma cena tão emocionante...lágrima de um final amoroso, poder saborear uma deliciosa rabada com agrião é coisa dos deuses. E a volta ? Acho que vou ficar pelo mercado...Rsrsrs Abraços, Dulce
ResponderExcluirDulce,
ExcluirEu não passo de um retratista lambe-lambe, que vê as coisas acontecendo, registra na memória e corre para gastar tinta da Bic azul nas cadernetas anotando os pontos principais - pense num medo de esquecer das coisas, a memória pode ser traiçoeira.
Esqueci: o que é cerveja 'mofada', Heraldo?
ResponderExcluirDaquelas que, de tão geladas, as garrafas chegam às mesas com aquela capa de gelo parecendo mofo.
ResponderExcluirOlá Heraldo,
ResponderExcluirMuito bom, muito bom, para não dizer muito ótimo.
Esperando a última da trilogia.
Até mais.
Ana,
ExcluirObrigado pela leitura e comentário. Espero que goste do último capítulo da trilogia. Até!
Amigo Heraldo, sua verve continua imbatível!! Já estou ansioso pela terceira ...
ResponderExcluirMeu velho,
ExcluirAguarde mais um bocadinho.
Mano Véio,
ResponderExcluir"Não demorou o choro sereno, de belíssima lágrima na ponta do nariz, quase uma joia sob o efeito da claridade que vinha em contraluz."
Aquilo que já lhe falei tantas vezes: você já viu um quadro pintado com palavras? É isso aí; é o que você escreve!
E cada vez melhor!
Afinal, não é qualquer quadro que transforma uma furtiva e dolorida lágrima na ponta do nariz em uma joia de amor partido, de uma forma tão sensível e ao mesmo tempo intensa.
Mais uma vez, Nota 10!
Xêro!
Mano Véio,
ExcluirAquela cena era autoexplicativa, só precisava uma memória fotográfica para registrar o instantâneo e a tinta da Bic azul sobre papel para registrar o inesperado. Xêro.
Gostei muito!!
ResponderExcluirGosto de Belo Horizonte!!
Você é suspeito, seu mineiro danado!
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