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20/01/2017

Prelúdio

Bar Casa Cheia - imagem tripadvisor.com



Heraldo Palmeira
Como Belo Horizonte é uma cidade cheia de colinas, naquele quase final de manhã eu estava resignado como um alpinista diante do seu desafio. Deixei para trás a galeria do Edifício Maletta, e o primeiro trecho de caminhada na Avenida Augusto de Lima impunha uma subida relativamente branda e curta até seu topo, na Espírito Santo.
Depois, um despencar até lá embaixo – como uma alegoria do mapa do Brasil, depois da Espírito Santo eu cruzei Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba, e aportei no plano diante do Mercado Central. Desci o ladeirão já sofrendo pelo esforço de subida que faria na hora de voltar para o hotel.
Sexta-feira animada aquela! Gente por todo lado transformando os longos corredores do velho mercado numa festa. Aqui e acolá a gritaria de moças pregoeiras fisgando gente na multidão para suas cervejas estupidamente geladas, enquanto as trempes espalhavam calor e sustentavam panelas com delícias prestes a invadir a boca da cena gastronômica. Bares apinhados onde os clientes ficam em pé, num conversado fascinante que mistura política, negócios, futebol, prosa rasa, fofoca e tudo o mais que puder ocupar a língua entre um gole e outro.
Segui o fluxo da pequena multidão sem tentar abrir caminho. Afinal, um dos grandes prazeres de Minas é a sábia prática de andar sem pressa. No final do corredor, uma escadaria larga e de poucos degraus leva até o restaurante Casa Cheia. Inaugurado em 1978, virou destaque do Mercado Central e ponto obrigatório da gastronomia de Belo Horizonte.
A fila de espera é uma das tradições do restaurante, e onde o freguês pode abrir os trabalhos com o apoio irrestrito dos garçons. O lugar tem duas entradas amplas: do lado de lá para quem pretende apenas bebericar e beliscar; do lado de cá para quem já sabe que vai avançar sobre o cardápio. Na verdade, o Casa Cheia é um desses pés-sujos que tomam banho diariamente. Devidamente instalado, nem me dei ao trabalho de abrir o cardápio e parti para a indicação de amigos mineiros: rabada com agrião, prato do dia das sextas-feiras.
As mesas são muito próximas e não há como falar baixo no recinto. Enquanto esperava a comida, fui cercado pela atmosfera do casal da mesa ao lado. Estavam levemente alcoolizados e, sem qualquer tom de inconveniência, trocavam aquelas farpas que a vida madura armazenou. Alternavam momentos delicados e ariscos, afagos e olhares desafiadores. Felizmente as palavras deles acabavam se perdendo no vozerio geral.
Em dado momento, a mulher ficou sozinha. Pensativa. Longamente pensativa, de cabeça inclinada na direção do tampo da mesa. Olhos imóveis num vazio estarrecedor. Não demorou o choro sereno, de belíssima lágrima na ponta do nariz, quase uma joia sob o efeito da claridade que vinha em contraluz. Eu daria meu pobre reino para desvendar o pensamento que verteu aquela preciosidade.
Acendeu um cigarro, mas o garçom mal esperou que ela terminasse a tragada profunda primeira. Era proibido fumar ali; só podia lá fora. Ela apagou o cigarro com um sorriso triste, como se perdesse o único ponto de apoio no exato momento em que o homem sentou novamente ao seu lado. Manteve o sorriso triste e virou para mim, falando da dificuldade de ser fumante nos dias de hoje. Ele entrou na conversa com simpatia.
Em pouco tempo eu sabia que eles dois namoravam há muitos anos, mas o homem era casado, tinha filhos e morava com a esposa. Ela falou diversas vezes do imenso amor que sentia, apesar do ar distante de quem perdeu todas as esperanças de final feliz – que ela traduzia em morarem juntos. Aquele amor era um paciente moribundo e desenganado, que seguiria vivendo até que alguma circunstância determinasse a definitiva separação de corpos.
Talvez o fim ocorresse sem lamúrias, apenas com o derradeiro fechar de porta do homem indo embora da casa dela numa tarde qualquer. Ele sairia sem fazer os barulhos conhecidos, sem uma palavra, sem esboçar um movimento sequer em sua direção. Sobraria o retrato de um amor incapaz de qualquer gesto de amor.
Naquela manhã havia um tom indecifrável de perda, algo muito além de uma daquelas enésimas despedidas temporárias. No domingo seguinte, ele embarcaria para o exterior.
O garçom chegou com minha comida e aliviou o tom da prosa. Até rimos enquanto a mulher rabiscava algo num guardanapo e elogiávamos a qualidade da cozinha. Almocei com intenso prazer aquela delícia mineira, emoldurada por uma cerveja “mofada”.
Nos despedimos com apertos de mãos rápidos e nem dissemos nossos nomes. O homem e a mulher permaneceram sentados. Dei o primeiro passo na direção da saída. A mulher disse lacônica: “Ele é militar, vai para o Haiti”. Desejei boa sorte.
Saí do mercado e refiz o caminho por aquele mapa alegórico em busca do hotel. Subi a ladeira tremenda cruzando Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia quase sem perceber o esforço, pois a minha mente estava dominada por Haiti, a monumental música de Gil e Caetano. De repente, aqueles homens e mulheres, quase todos pretos e cercados de pobreza e lixo, não paravam de passar em câmara lenta na minha cabeça, como um documentário sem tela sobre o país que nunca teve chance.
A voz do próprio Gil quebrou o ritmo do meu filme imaginário, saindo de dentro de uma loja no meio daquela muvuca e recomendando andar com fé.
Meses depois o mundo foi sacudido pela notícia do terremoto no Haiti. Sobre todas as desgraças particulares mostradas pela televisão, vi cair aquela lágrima translúcida que ficara teimosamente dependurada no nariz da mulher do mercado, que chorava a partida do seu homem. Um amor há muito destroçado como o Haiti. Agora tão indefeso quanto o Haiti. Na minha cabeça o refrão tocou de novo como última esperança de fé – “Pense no Haiti, reze pelo Haiti” – porque a fé não costuma “faiá”.



23 comentários:

  1. 1) Boa crônica.

    2) Me fez lembrar da canção antiga:

    3)"Ó Minas Gerais, ó Minas Gerais/Quem te conhece não esquece jamais/Ó Minas Gerais".

    4) Pelos aspectos positivos, pois os negativos enfeiam este belo Estado.

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  2. Pense num camarada emocionado... Que lindeza de crônica! Esta deve ser peça obrigatória de seu livro com os big hits! Parabéns, HP! Vou espalhar essa preciosidade para os amigos do Caralivro.

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    1. Heraldo Palmeira20/01/2017, 11:43

      Não é à toa que você tem Amorosino no nome.

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  3. Moacir Pimentel20/01/2017, 12:23

    Mestre Heraldo,
    Clap, Clap, Clap!!! Traduzindo: de pé, batendo palmas e pedindo bis.
    Abração

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    1. Heraldo Palmeira20/01/2017, 12:57

      Caríssimo,
      Deixe disso, vou ficar encabulado. Você terá "tris", pois o próximo texto - já no cofre digital do nosso Mano, só esperando a hora - fecha a trilogia mineira e encerra essa (uma de muitas) minha viagem inesquecível e querida pelas Geraes.

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  4. "Se descobrir que aquele homem maravilhoso que você conheceu em Nova York e com quem combinou de se encontrar em Paris - e a passagem já está na sua bolsa - é casado, desista da viagem. E dele."

    Da sábia Danuza Leão (Na Sala Com Danuza).

    Proximidade física é fogo. Se não sofrer agora, sofrerá depois, em dobro. A gente é que não tem juízo.

    Heraldo, acho que você não é do tempo do bonde de que nos fala Sabino. O tal que subia Baía e descia Floresta.

    Você conseguiu me deixar com vontade de visitar Belô. Sei que não vou, não irei. Mas me deixou a vontade de.

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    1. Heraldo Palmeira20/01/2017, 14:02

      Ofelia,
      Danuza tornou-se sábia depois de, por amor, deixar o marido poderoso para casar com um então casado cronista, brigão, sedutor e boêmio insuperável. O amor tem mesmo suas dores e seus motivos insondáveis.

      Não alcancei os tempos gloriosos dos bondes, apenas seus descendentes trólebus (no mesmo Recife e em São Paulo). Claro, fui usuário quase diário dos bondes de Santa Teresa (Rio), quando morei naquele bairro adorável. Mas estes não contam porque, dado o abandono do poder público, existem mas não existem.

      Se puder ir visitar Belô, vá. Se não puder, vá também.Para isso, há textos, imagens, produtos, costumes, amigos mineiros...

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    2. Eu sei da história, Heraldo. Danuza deixou Samuel Wainer pra ficar com o jornalista e compositor Antonio Maria. O amor, quando chega, já não há mais jeito de evitá-lo. Foi o que aconteceu com a Danuza. O amor chegou chegando e tomou conta dela. E dele. Que não era rico, não era bonito, mas falava ao coração dela. Que partiu o dele, não muito forte.

      Não existe nada mais bonito nem mais poderoso, Heraldo. Nem mais inexplicável.

      Tenho parentes em Minas. Em Belzonte já não sei quem mora. Os parentes se espalham por cidades mineiras. Antes da morte dos meus pais era mais fácil saber. Hoje é gente de uma outra geração que não a minha.

      Que pena.

      Acho que a foto, minha, dos meus pais, irmão e primo em BH são da Praça Afonso Pena. Existe?

      O procurador da minha mãe (ela foi professora em MG e ele enviava o pagamento com documentação pro Rio) morava em BH. Balmaceda Tinoco Mineiro era o nome dele, nunca esqueci. Depois uma mulher entrou no lugar dele. Mas dela eu não lembro o nome.

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    3. Heraldo Palmeira21/01/2017, 13:58

      Ofelia,
      Ao que me consta, não existe uma praça Afonso Pena, em Belzonte. Você deve estar se referindo à praça Sete de Setembro (tratada carinhosamente como Praça Sete), marco zero da cidade, localizada no cruzamento das avenidas Afonso Pena e Amazonas, duas das mais importantes vias da cidade, com seu famoso obelisco no meio do asfalto.

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  5. Heraldo,
    Sou suspeito para falar porque vivo em Belo Horizonte desde que nasci (e já vai tempo) mas estou gostando muito das suas crônicas belzontinas. Você consegue realmente transformar momentos em retratos.

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    1. Heraldo Palmeira20/01/2017, 14:03

      Meu caro Mano,
      Não satisfeito em me acolher aqui nesse canto de prosa, ainda me manda um clique deste!

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  6. Dulce Regina20/01/2017, 13:00

    Heraldo, que maravilha de crônica. Gosto de observar as pessoas, de imaginar o que conversam, quando não posso ouví-las e gostaria de ter esse " dom de Deus " para transmitir às pessoas, igual você faz. Seus relatos me levam à cena dos acontecimentos, confesso que fiquei cansada de subir a ladeira, mas o que encontrei foi fantástico ! Tudo que gosto...gente indo e vindo, paradas em grupos num papo descontraído, cervejando e, depois de poder observar de perto uma cena tão emocionante...lágrima de um final amoroso, poder saborear uma deliciosa rabada com agrião é coisa dos deuses. E a volta ? Acho que vou ficar pelo mercado...Rsrsrs Abraços, Dulce

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    1. Heraldo Palmeira20/01/2017, 14:13

      Dulce,
      Eu não passo de um retratista lambe-lambe, que vê as coisas acontecendo, registra na memória e corre para gastar tinta da Bic azul nas cadernetas anotando os pontos principais - pense num medo de esquecer das coisas, a memória pode ser traiçoeira.

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  7. Esqueci: o que é cerveja 'mofada', Heraldo?

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  8. Heraldo Palmeira20/01/2017, 14:09

    Daquelas que, de tão geladas, as garrafas chegam às mesas com aquela capa de gelo parecendo mofo.

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  9. Olá Heraldo,
    Muito bom, muito bom, para não dizer muito ótimo.
    Esperando a última da trilogia.
    Até mais.

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    1. Heraldo Palmeira21/01/2017, 14:00

      Ana,
      Obrigado pela leitura e comentário. Espero que goste do último capítulo da trilogia. Até!

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  10. Amigo Heraldo, sua verve continua imbatível!! Já estou ansioso pela terceira ...

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    1. Heraldo Palmeira21/01/2017, 14:33

      Meu velho,
      Aguarde mais um bocadinho.

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  11. Marcus Guedes22/01/2017, 11:52

    Mano Véio,

    "Não demorou o choro sereno, de belíssima lágrima na ponta do nariz, quase uma joia sob o efeito da claridade que vinha em contraluz."

    Aquilo que já lhe falei tantas vezes: você já viu um quadro pintado com palavras? É isso aí; é o que você escreve!
    E cada vez melhor!
    Afinal, não é qualquer quadro que transforma uma furtiva e dolorida lágrima na ponta do nariz em uma joia de amor partido, de uma forma tão sensível e ao mesmo tempo intensa.
    Mais uma vez, Nota 10!
    Xêro!

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    1. Heraldo Palmeira23/01/2017, 13:24

      Mano Véio,
      Aquela cena era autoexplicativa, só precisava uma memória fotográfica para registrar o instantâneo e a tinta da Bic azul sobre papel para registrar o inesperado. Xêro.

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  12. Gostei muito!!
    Gosto de Belo Horizonte!!

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    1. Heraldo Palmeira23/01/2017, 13:24

      Você é suspeito, seu mineiro danado!

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