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24/01/2017

As Mulheres do Oleiro

Moacir Pimentel

fotografia Moacir Pimentel


A mulher é o grande tema na escultura, o centro da sua criação artística de Francisco Brennand. Há fases florais, nas quais o artista  se apossa do reino vegetal e amplia e alonga e incha e puxa e encolhe, sem se preocupar se o seu traço contraria a forma original. Segundo o artista lhe é impossível, no entanto, criar qualquer forma nova, garantindo que tudo o que faz é apenas inventar variantes das formas originais que lhe são propostas pela natureza.

Já nas galerias, nos Salões das Esculturas, se misturam todas as personagens da mente delirante de Brennand, inclusive na forma original de maquetes.

fotografia Moacir Pimentel


A partir da década de 70, as esculturas passaram a ter forte carga sexual, mas sempre relacionada com um dos temas obsessivos da obra do artista: a reprodução. Se nas formas vegetais - o onipresente caju e a saliente castanha - a sexualidade era apenas insinuada, nas fases que se seguiram ela passou a ser trabalhada mais à flor das peles. No entanto, Francisco Brennand rejeita veementemente a simplificação do seu trabalho como “erótico”, como lemos abaixo:

“Tenho insistido nos símbolos do amor e da reprodução; ainda mais categórico pareço, quando ouso afirmar que a reprodução seria o equivalente a eternidade. Nada mais espiritual do que o próprio fato da reprodução da espécie. A reprodução, em todas as suas mais variadas formas sexuadas ou assexuadas, se estende a todos os seres vivos e alcança, inclusive, a nossa interpretação do universo: as estrelas também nascem, vivem e morrem. Continuo a afirmar que o meu trabalho de escultura nada tem de erótico. Não é erótico, na medida em que é acompanhado por uma pesada carga sexual, sempre enigmática, dolorosa e nunca resolvida.”

fotografia Moacir Pimentel


Nos anos oitenta e noventa as mulheres de Brennand se tornaram greco-romanas. Como a Galatea, devolvendo a vida ao belo amante, na forma de um rio de águas cristalinas formado pelas lágrimas choradas por ela.


fotografia Moacir Pimentel


As gregas e as romanas de Brennand – umas doze pelo menos – irmanadas com outras figuras femininas retiradas da história se encontram em Porto Alegre, numa exposição chamada Senhor da Várzea, da Argila e do Fogo e, infelizmente, não puderam ser fotografadas.

Todas as senhoras são criaturas absolutamente infelizes, profundamente estressadas, cujas cabeças de longos cabelos negros são violentamente lançadas para trás, o que lhes ressalta as gargantas disformes e salientes nos fazendo pensar que lhes quebraram os pescoços. Elas são carinhosamente chamadas de... As Degoladas. O que inspirou Brennand a esculpi-las é aquilo que elas têm em comum: a angústia e o infortúnio. Diz o artista:

“Há uma quantidade enorme de mulheres da mitologia greco-romana e de figuras femininas retiradas da história – às vezes da ficção – que na verdade só me atraíam por seu infortúnio. Um infortúnio feminino como centro de gravidade do universo passional. Eu não explico nada, porque não saberia explicar. Simplesmente convivi com elas e ainda convivo”.

Sobre suas musas o artista, inclusive, recita:

“Minha escultura Galatea, a donzela branca, mais do que as outras, exemplifica esta imagem de uma dor permanente. Tenho ainda os casos de Antígona, de Hiera, de Halia, de Lara. Há, ainda, Maria Antonieta na Conciergerie, mas isso é uma outra história, como disse a poetisa Deborah Brennand no final de seu poema Cadafalso”.

“E não voltou a face, sabe-se.
A brisa era que em sombras passava.
 Ergueu, sim, nos cabelos aromas raros
 para espanto da plebe que uivava.
 Que uivasse!

Não era bela sua nuca alva?”

Saídas do éter, aqui estão a Lara, a ninfa do reino dos mortos, a Vênus de Anatólia e Halia antes de se jogar ao mar.

fotografia Moacir Pimentel


Tomemos a anglo-saxã Ofélia de Brennand como exemplo da eterna mater dolorosa presente nas obras do artista. Por ela não morreriam de amores os pintores pré-rafaelitas. Era uma vez a moça de longos cabelos e rodeada de flores, deslizando sobre águas transparentes. Na escultura de Brennand, Ofélia é altiva, orgulhosa, pura vingança, prestes a desencadear uma série de mortes. É como se o artista, um cavaleiro andante, vingasse as heroínas trágicas de todas as eras.

foto Paulo Maia


É estranho e inesperado esse estar em Recife e, de repente, experimentar a experiência de pular de continente, de viajar de volta ao passado. Do lado de dentro, nos galpões, pelos corredores e nas longas galerias retangulares, debaixo dos arcos, das traves dos telhados, entre milhares de testemunhas cerâmicas imóveis, tudo nos fala de um reino antigo, de um rei maluco e estrangeiro ou de um Barba Azul de barbas brancas.

imagens Facebook



Experimenta-se uma sensação de tensão, de fatalidade iminente, de desastre inevitável, de que alguma coisa está para acontecer. Paira sobre aquelas paragens um clima trágico, agônico, primo legítimo dos martírios dos grandes santos. O lugar é onírico, mas nada tem de doce a curiosidade e o fascínio que nos empurram para além da nave central na direção de mais mistérios desse amor fecundo entre o barro e o fogo.


11 comentários:

  1. 1) De fato, bonito e trágico. Um texto que nos faz refletir na vida... sobre a vida ... com a vida...

    2) Essas mulheres com os pescoços para trás me fez lembrar de uma etnia que existe na Ásia, entre Myammar (antiga Birmânia) e Tailândia.

    3) Desde crianças as meninas vão colocando argolas em seus pescoços e com isso eles vão aumentando, esticando. Charme local, mas dizem... se tirar aquelas argolas, quando adultas o pescoço quebra e elas morrem...

    4)A leitura me levou a esta viagem...

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    1. Moacir Pimentel24/01/2017, 15:16

      Antônio,
      Esta "viagem" feita por você é a de todos nós. Ela tem como destino a memória onde armazenamos pensamentos e experiências e ideias e visões pretéritas às quais recorremos sempre que nos deparamos com alguma coisa nova, nunca vista , para qual precisamos achar um significado. Nossos cérebros movidos pela lei do menor esforço, em vez de elaborar novidades preferem antes recorrer ao "estoque".Dizem que é só quando da memória não conseguem resgatar velhas respostas, é que os preguiçosos começam a trabalhar.
      Mas sim eu entendi a conexão: os pescoços das heroínas trágicas de Brennand o levaram às mulheres girafas - vi-as na Tailândia mas creio que oriundas do Tibet e da Birmânia - que, para viver, não podem se libertar das suas argolas.
      Obrigado pelo comentário
      Abraço

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  2. Monica Silva24/01/2017, 12:16

    Depois de ler seus artigos da próxima vez que eu for a Recife vou quer voltar no espaço Brennand com os seus olhos.
    Mas será que vou gostar mais sabendo do que gostei quando não tinha noção do que era tudo aquilo?
    Quando descobrir venho te contar. Como sempre você arrasou nas fotos, Moacir. Obrigada

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    1. Moacir Pimentel24/01/2017, 15:24

      Mônica,
      Quando eu era muito menino, praí uns quatro anos, ganhei um caleidoscópio. Quando coloquei o cilindro diante de um olho arregalado e vi os belos efeitos visuais a cada movimento da minha mão, aquelas combinações variadas de desenhos simétricos e sempre diferentes do que tinham sido há um segundo, todas aquelas formas brilhantes e coloridas se juntando e afastando e formando novos arabescos, fiquei literalmente mediunizado. Na minha cabeça aquilo era um tesouro tanto que , dizia minha mãe, não houve conversa capaz de me fazer largar o brinquedo e eu dormia agarrado com ele.
      Ter aprendido, mais tarde, que a magia chama-se refração e reflexão da luz e ter confeccionado numa aula de ciência com contas de vidro colorido e três espelhos o meu próprio milagre não diminuiu em nada o meu encanto e ficou em mim o gosto pelos padrões de desenho geométrico. Mas a emoção primeira jamais se repetiu.
      Talvez seja sempre assim com a beleza que vislumbramos: a
      primeira "brechada" é inigualável.
      Abraço

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  3. Flávia de Barros24/01/2017, 13:11

    Moacir,

    Mais um artigo lindo. As fotos da Ofélia e da Galateia são estupendas. Concordo com você que a mulher impera na arte de Brennand embora uma mulher mutante porque nas esculturas ela é trágica e na pintura sensual. Destaco a poesia da Débora ( a primeira esposa dele ) e deixo-lhe um abraço.

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    1. Moacir Pimentel24/01/2017, 15:47

      Flávia,
      Falaremos oportunamente nas mulheres pintadas pelo Oleiro (rsrs) Para já recomendo-lhe , se é que ainda não conhece , a poesia de Deborah Brennand. Dela só li o livro Poesia Reunida há já valentes anos. Ela é notável. Lembro de um verso - não me recordo o nome do poema - no qual ela inventa um sol "raiando de negro" os cabelos de alguém. Em vez de , como todos os do seu ofício,colocar o brilho do sol nos cabelos , Deborah dotou o sol com a escuridão deles, querendo e conseguindo lindamente evocar a juventude - um sol jovem (rsrs) Para você um dos poemas mais conhecidos dela e outro abraço

      Punhal Tingido
      Deborah Brennand

      Não estremeças a mão

      Desmancha ferozmente, igual ao vento,
      Estas pétalas de sangue, ainda vivas,
      Armadas na desordem de uma flor.

      Quem fui? Que sou?

      Agora, um senhora antiga
      Que na tarde silenciosa de abril,
      Borda sonhos na forma
      De perfeita e sangrenta rosa.

      E tu quem és agora?

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  4. Alexandre Sampaio24/01/2017, 18:43

    Parabéns pelos textos irretocáveis. Muito louvável a homenagem que a coluna faz ao artista ainda em plena atividade aos 90 anos.

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    1. Moacir Pimentel25/01/2017, 09:20

      Prezado Alexandre Sampaio
      Não escrevi sobre o artista, pelo menos conscientemente, com a intenção de homenageá-lo mas de mostrar o trabalho que ele desenvolveu teimosa e magnificamente ao longo de seus quase 90 anos que, no meu entender, merece ser lido. Muito obrigado pelo comentário e espero poder continuar merecendo a sua leitura
      Abraço

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  5. Olá Moacir,
    Mais um texto muito especial sobre este artista fantástico.
    Não conhecia a poesia de Deborah Brennand. Achei impressionante e fiquei curiosa.
    Como diz o Antônio, gratidão.

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    1. Moacir Pimentel25/01/2017, 09:27

      Donana,
      Minha saudosa mãe gostava muito da poetisa - ela e Dona Deborah foram conterrâneas e contemporâneas - e o livro Poesia Reunida foi um daqueles que a gente "surrupia" daquelas velhas estantes das casas das nossas infâncias.
      "Gratidão" e abração, não só para rimar.

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  6. Francisco Bendl26/01/2017, 15:13

    Mais um artigo de tua autoria que copiei e arquive como os demais.

    Importante o que vens fazendo neste blog extraordinário, Pimentel, escrevendo textos primorosos e e informativos sobre a arte mundial, e suas localidades mais impressionantes, agregadas às suas culturas e tradições.

    Da minha parte, resta apenas agradecer.

    Um forte abraço.
    Saúde e Paz!

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