Meninos no Rio (Domingos Ferreira) |
Domingos
Ferreira
A corveta se deslocou de lado, no remanso junto ao barranco alto,
conforme as espias (cordas grossas de amarração) eram entradas pelo cabrestante
(guincho) na proa e pelo poderoso guincho da popa, com retornos em troncos de
árvores da margem. O comandante achou desnecessário largar o ferro de bombordo
(lançar n’água a âncora da frente esquerda), como recurso para puxar melhor a
proa para fora, na próxima desatracação, programada ocorrer na manhã do dia
seguinte.
Para sair dali, pareceu-lhe bastante contar somente com o emprego das
máquinas. O fato de o navio ter dois hélices (masculino na Marinha), bem
afastados um do outro, sempre facilitava esse tipo de manobra. Em poucos
minutos, empurrado pelo forte rodamoinho na água, o navio chegou à posição desejada
e a prancha foi passada para terra. Ela ficou apoiada a partir do passadiço (convés
de comando), único lugar possível para acomodá-la, devido à altura da margem.
Um atento e silencioso aglomerado de caboclos e índios assistia a atracação.
O major, comandante da Companhia de Fronteira, entrou a bordo
acompanhado de seus oficiais. Foi recebido pelo comandante com as honras de
estilo do cerimonial naval, incluindo uma guarda de fuzileiros navais, do
pequeno destacamento que sempre embarcava nessas longas viagens. Os trinados do
apito do contramestre e o movimento das armas da guarda causaram sensação no
público e agitaram de vez as muitas crianças, até então quietas como os
adultos.
Seguiu-se uma breve confraternização de oficiais da tropa e do navio, na
praça-d'armas (refeitório dos oficiais). Cerca de meia hora depois, o
comandante e o major saíram de bordo, juntos com seus oficiais, para uma visita
protocolar ao quartel da Companhia, situado próximo da margem do rio, a algumas
centenas de metros abaixo de onde estava a corveta.
Na saída, o comandante, acompanhado pelo major e pelo imediato, fez
questão de percorrer o barranco por todo o comprimento do navio, para observar
as condições de atracação, feita por boreste (bordo direito) da corveta e
aproada à correnteza. A profundidade do canal, logo ao lado do remanso onde se
abrigara o navio, era de absurdos vinte e dois metros, e sua correnteza fora estimada em quatro nós (7,3 km/hora), apesar de estarem a mais de quatro mil quilômetros da foz
do imenso rio. Ali ocorria, ainda, uma permanente passagem de troncos e galhos,
alguns avantajados. Dois vigias da faxina-do-mestre (grupo do convés) guarneceram
a proa, munidos de longos croques (varas com ganchos) reforçados, para manter
afastada da corveta a galharia que eventualmente enganchasse nela.
Do barranco, o comandante observava tudo aquilo com muita satisfação e
orgulho do seu navio. Entretanto, ao se aproximar da popa, viu uma meia dúzia
de meninos maiores que mergulhavam no remanso. Isso era feito a partir da borda
baixa do navio a ré, e também de pontos altos dos conveses superiores,
inclusive do passadiço, mais a vante, pelo lado de fora da atracação. Ele não
gostou daquela brincadeira e cogitava mandar cessá-la, quando o imediato interrompeu
seus pensamentos, avisando que o major os esperava junto às viaturas para
levá-los ao quartel. Na pressa, o comandante arquivou o assunto e partiu com o
companheiro do Exército.
A chegada de um navio da Marinha naquelas lonjuras era sempre motivo de
muita festa. A recepção ao comandante da corveta e seus oficiais foi carinhosa,
muito além das formalidades. Como homem do mar, ele ficou muito emocionado ao
passar em revista a Companhia de Fronteira, ao som da canção “Cisne Branco”,
entoada pelas crianças da escola do grupamento, em uniformes azul e branco, e
agitando pequenas bandeiras brasileiras feitas por elas. A tropa era integrada
por jovens caboclos e índios das diversas aldeias da região, e se apresentou de
forma impecável.
Seguiu-se uma palestra, na maior sala do colégio, na qual o major
discorreu sobre os diversos aspectos da existência do grupamento, naquele ponto
distante do território nacional. O encontro terminou em um modesto coquetel,
com a presença das famílias dos oficiais, que sempre participavam de todas as
atividades civis do grupamento.
Já anoitecia, quando o comandante regressou para bordo a fim de vestir
roupas civis, por haver aceito o convite do major para jantar em sua casa. Nas
proximidades do barranco de atracação, percebeu um movimento anormal, com gente
correndo em direção ao local. Ao descer da camioneta, notou que o oficial-de-servico
estava ausente do portaló (local da prancha). O sargento-contramestre não o esperou
entrar a bordo e veio correndo pela prancha para lhe dar a má notícia.
Desaparecera, debaixo do navio, um dos garotos maiores que estavam mergulhando
do passadiço e, carregados pela correnteza, subiam para bordo na popa.
Foi um soco no estômago. Uma perplexidade dolorida tomou conta do
comandante. Pensou, imediatamente, nos pais do menino. Ele mesmo tinha um filho
pré-adolescente, a paixão de sua vida. Entretanto, em instantes, reassumiu o
papel de comandante, para o qual tivera anos de preparação. Sabedor de que o
oficial-de-servico estava na popa, dirigiu-se apressadamente para lá. Antes,
porém, enviou um sargento à Companhia para avisar ao imediato do ocorrido e
dizer-lhe que regressasse para bordo com todos os oficiais. Além disso, o
imediato deveria informar pessoalmente ao major o que estava se passando.
Encontrou o oficial-de-servico supervisionando a colocação de luminárias
na popa para clarear a superfície da água, na qual vários homens mergulhavam em
sequência, na tentativa desesperada de encontrar o garoto. Dentre eles,
destacava-se um que exercia uma certa coordenação do grupo. Era um caboclo alto
e desempenado o qual, ao ver o comandante, dirigiu-se a ele, acompanhado pelas
demais pessoas ali presentes. O comandante teve um pressentimento logo
confirmado. Era o pai do menino. Ele começou a falar de forma descontrolada.
Estava todo molhado, com os olhos injetados de sangue, e ajustava nervosamente
o calção velho, que insistia em descer da cintura, enquanto gesticulava
trêmulo.
O pobre homem via no comandante a última esperança de salvar seu filho.
Ele não conseguia se fazer entender e ficava cada vez mais nervoso. De repente,
tentou segurar as mãos do seu salvador e se ajoelhou em frente a ele, em um
choro convulsivo. O comandante e o oficial-de-serviço tentaram ajudá-lo a
levantar-se, mas o homem insistia em ficar de joelhos. Em seguida, deitou-se no
convés e foi se encolhendo, aos prantos, até ficar em posição fetal, gemendo
baixinho. A perplexidade e o constrangimento dominavam a cena.
Súbito, ouviu-se a voz de uma mulher que chegava. Era a mãe, também
desesperada com a situação. Ela já havia chorado muito, tudo que pudera...
Contudo, ao ver seu homem naquelas condições, reagiu da forma que só as
mulheres sabem fazer, em especial as mães. Abraçou-se com ele e o fez se
levantar, dizendo palavras carinhosas ao seu ouvido, passando-lhe a mão no
rosto e nos cabelos.
O pai, já mais recomposto e cercado pelos companheiros, dirigiu-se ao
comandante, de forma muito respeitosa e lhe fez um pedido irrecusável, nas
circunstâncias trágicas da ocasião. Ele queria que o navio fosse tirado dali logo,
para poderem mergulhar mais livremente e ter alguma chance de encontrar o corpo
do seu filho menino, o José.
O comandante foi apanhado de surpresa pela solicitação e não concordou
de pronto. Disse ao homem angustiado que iria pensar no assunto e lhe daria uma
posição dentro de algum tempo. Dirigiu-se para a câmara, onde se trancou,
deixando antes instruções para o imediato vir falar com ele assim que chegasse
a bordo. Sua cabeça estava a mil, pois a primeira idéia a lhe ocorrer era de o
corpo do menino poder estar preso ao leme, entre os dois hélices. Quase
certamente, seria necessário usar as máquinas para abrir (afastar) a proa do
barranco e sair dali com o navio. Maldita hora em que não lançara n’água o
ferro de bombordo, cuja falta agora iria complicar toda a manobra. Em outra palavras,
o corpo do José corria o risco de ser despedaçado pelos hélices, girando
necessariamente acelerados durante a manobra.
Muito ansiosos, ele e o imediato discutiram o assunto durante algum
tempo. Examinaram todos os aspectos da manobra de desatracação do navio de onde
ele estava, a ser seguida por seu deslocamento e fundeio em frente à posição
atual, a cerca de cem metros da margem. Nas circunstâncias existentes, seria
quase imprevisível o efeito das correntes sobre a corveta durante os poucos
minutos que ela levaria para chegar à posição de fundeio, após largar da
margem, girar para fora e cruzar o canal em frente, com sua forte correnteza.
Além disso, seria fundamental que toda a manobra fosse feita com o
mínimo emprego dos hélices, de preferência um de cada vez, de modo a evitar ou
minimizar o pior, isto é, seu provável efeito no corpo do menino. Sob esse
aspecto, isso poderia ter sido muito facilitado se o ferro de bombordo tivesse
sido largado n’água na chegada, possibilitando o navio ser puxado por ele, para
se afastar do barranco na saída. Para complicar ainda mais as coisas, a noite
lá fora estava um breu, perdendo-se bastante as referências de distância da
margem, inclusive pelo radar, muito impreciso de tão perto.
A parte mais difícil, naquele momento, seria falar com os pais do José
para alertá-los das possíveis consequências da manobra. De qualquer maneira, a
desatracação teria de ser feita logo, como eles pediram, ou quando o navio
prosseguisse viagem, na manhã do dia seguinte. Essa conversa ocorreu na câmara,
com a presença do casal, do comandante, do major - que viera dar apoio ao navio
- do imediato e do médico de bordo. Foi um momento de alta dramaticidade, por
todas as circunstâncias e que terminou com os pais do menino destroçados e
todos os presentes chorando. Dela, decorreu também a ordem do comandante ao
imediato para que nada fosse comentado a bordo a respeito, até o navio
continuar a viagem no dia seguinte.
Tomada a decisão, o comandante e o imediato foram para o passadiço, a
fim de executar a manobra. Os pais de José, o major e o médico desembarcaram em
seguida e ficaram no barranco, em frente ao navio. Eles foram cercados pelos
fuzileiros navais, que também estavam em terra, para controlar qualquer
agitação por parte do povo, que assistia silencioso aos acontecimentos. Enquanto
o imediato tomava as providências rotineiras para a desatracação, o comandante
se isolou na escuridão, do lado de fora do passadiço.
Nesses poucos minutos, sua ansiedade atingiu um ponto quase
insuportável. Ele se sentia responsável por tudo aquilo e inteiramente só.
Entretanto, nada poderia ser demonstrado por ele daí em diante, até terminar
toda a manobra, com o navio devidamente fundeado na posição predeterminada,
afastado do barranco. O imediato, muito tenso, veio lhe informar que o navio
estava pronto para ser movimentado, com exceção da rotineira experiência com os
hélices, que não havia sido feita, por razões óbvias.
O comandante entrou no passadiço e iniciou a manobra.
Sua primeira ordem foi mandar largar os cabos de vante e de ré (recolher
as cordas grossas de amarração), que ainda mantinham o navio junto ao barranco.
A corveta, mesmo livre, não se mexeu. O rodamoinho no remanso, que não podia
ser visto na escuridão, continuava a empurrá-la contra a margem. Decorridos
alguns minutos, o comandante, com um nó na garganta, começou a usar os hélices
devagar - o de dentro para vante e o de fora para ré - sem mexer no leme, na
tentativa de girar a proa da corveta para o meio do rio. Dessa forma, ela
sofreria influência da forte correnteza do canal e, naturalmente se afastaria
do barranco. De novo, o navio não se mexeu.
Angustiado, o comandante ordenou meia-força para as máquinas, o que
aumentou bastante a rotação dos hélices, fazendo o navio vibrar um pouco, porém
sem sair do lugar. O leme, onde poderia estar preso o corpo de Jose, foi então
carregado (girado) para bombordo, de modo a auxiliar na tentativa de afastar o
navio para fora. Nada aconteceu. Suando frio, o comandante ordenou “toda-força”
para ambos os hélices. A corveta finalmente reagiu e, com forte vibração,
começou a girar devagar para bombordo e avançar em direção ao canal. Ao chegar
lá, devido à velocidade da correnteza, foi necessário manobrar várias vezes com
o leme e com os hélices, de modo a atingir a posição predeterminada e nela
fundear (ancorar) com segurança.
A manobra toda durou cerca de vinte
minutos. Ao terminá-la, com o navio firmemente fundeado na posição escolhida, o
comandante desceu desarvorado para a câmara e jogou-se chorando no beliche, sem
tirar a roupa. Dormiu um sono sobressaltado por um pesadelo terrível, no qual o
menino José e seu filho se afogavam no rio e eram despedaçados por hélices
enormes, em alta rotação. Acordou no meio da noite, alagado de suor e se
sentindo mal. Avisou ao médico, sendo logo atendido por ele, acompanhado pelo
imediato. Foi-lhe aplicado um forte calmante que o fez dormir até tarde no dia
seguinte. O imediato suspendeu (saiu do porto) cedo com o navio, dando
prosseguimento a viagem.
O comandante quase não saiu da câmara nos dois dias seguintes. Quando ia
ao passadiço, permanecia taciturno e calado, sentado em sua cadeira privativa e
olhando fixamente para o rio. Fazia as refeições sozinho, em seus aposentos. O
navio todo se preocupava muito com ele, por ser uma pessoa justa e boa. O moral
da tripulação estava muito baixo.
No terceiro dia, chegou uma mensagem-radio do major para ele, informando
que o corpo do José fora encontrado nas águas paradas da boca de um igarapé,
vários quilômetros rio abaixo. Estava inteiro, salvo os efeitos naturais de
morte por afogamento. O comandante da Companhia dizia também que José fora
enterrado no pequeno cemitério local. Estiveram presentes sua família e boa
parte da população da pequena cidade. Foram-lhe prestadas honras militares por
um grupo-de-combate de jovens soldados da Companhia-de-Fronteira.
O filho José havia retornado. A corveta prosseguiu viagem em paz.
Domingos, triste história, belamente contada. A gente sente com o escritor a angústia dos pais e do capitão.
ResponderExcluirUm abraço do
Mano
Estimado amigo Mano
ExcluirMuito obrigado por suas palavras. Essa experiência foi uma das que mais me marcou em minha saga amazônica.
A próxima será mais alegre.
Abraço fraterno.
Mestre, mais um belíssimo. Como torci para o fim que terminou ocorrendo, o menos pior diante da situação. Abraço.
ResponderExcluirEstimado amigo Heraldo
ExcluirSou-lhe muito grato pela oportunidade que você criou de eu participar deste blog de alto nível do Mano. Vou continuar caprichando.
Um grande abraço, com o desejo de que este ano seja melhor para todos nós do que o esquisitíssimo 2016.
Vade Retro Satana!
Domingos
1)Torci para que o menino reaparecesse vivo...
ResponderExcluir2)Eis a vida e suas impermanências.
3)Escreve bem o autor, parabéns !
Estimado Antonio
ExcluirMuito obrigado por suas palavras.
De fato, a vida marinheira é aventurosa e cheia de impermanências. É uma paixão que vale a pena.
Um abraço fraterno
Domingos