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05/01/2017

O Retorno de José

Meninos no Rio (Domingos Ferreira)



Domingos Ferreira

A corveta se deslocou de lado, no remanso junto ao barranco alto, conforme as espias (cordas grossas de amarração) eram entradas pelo cabrestante (guincho) na proa e pelo poderoso guincho da popa, com retornos em troncos de árvores da margem. O comandante achou desnecessário largar o ferro de bombordo (lançar n’água a âncora da frente esquerda), como recurso para puxar melhor a proa para fora, na próxima desatracação, programada ocorrer na manhã do dia seguinte.
Para sair dali, pareceu-lhe bastante contar somente com o emprego das máquinas. O fato de o navio ter dois hélices (masculino na Marinha), bem afastados um do outro, sempre facilitava esse tipo de manobra. Em poucos minutos, empurrado pelo forte rodamoinho na água, o navio chegou à posição desejada e a prancha foi passada para terra. Ela ficou apoiada a partir do passadiço (convés de comando), único lugar possível para acomodá-la, devido à altura da margem. Um atento e silencioso aglomerado de caboclos e índios assistia a atracação.
O major, comandante da Companhia de Fronteira, entrou a bordo acompanhado de seus oficiais. Foi recebido pelo comandante com as honras de estilo do cerimonial naval, incluindo uma guarda de fuzileiros navais, do pequeno destacamento que sempre embarcava nessas longas viagens. Os trinados do apito do contramestre e o movimento das armas da guarda causaram sensação no público e agitaram de vez as muitas crianças, até então quietas como os adultos.
Seguiu-se uma breve confraternização de oficiais da tropa e do navio, na praça-d'armas (refeitório dos oficiais). Cerca de meia hora depois, o comandante e o major saíram de bordo, juntos com seus oficiais, para uma visita protocolar ao quartel da Companhia, situado próximo da margem do rio, a algumas centenas de metros abaixo de onde estava a corveta.
Na saída, o comandante, acompanhado pelo major e pelo imediato, fez questão de percorrer o barranco por todo o comprimento do navio, para observar as condições de atracação, feita por boreste (bordo direito) da corveta e aproada à correnteza. A profundidade do canal, logo ao lado do remanso onde se abrigara o navio, era de absurdos vinte e dois metros, e sua correnteza fora estimada em quatro nós (7,3 km/hora), apesar de estarem a mais de quatro mil quilômetros da foz do imenso rio. Ali ocorria, ainda, uma permanente passagem de troncos e galhos, alguns avantajados. Dois vigias da faxina-do-mestre (grupo do convés) guarneceram a proa, munidos de longos croques (varas com ganchos) reforçados, para manter afastada da corveta a galharia que eventualmente enganchasse nela.
Do barranco, o comandante observava tudo aquilo com muita satisfação e orgulho do seu navio. Entretanto, ao se aproximar da popa, viu uma meia dúzia de meninos maiores que mergulhavam no remanso. Isso era feito a partir da borda baixa do navio a ré, e também de pontos altos dos conveses superiores, inclusive do passadiço, mais a vante, pelo lado de fora da atracação. Ele não gostou daquela brincadeira e cogitava mandar cessá-la, quando o imediato interrompeu seus pensamentos, avisando que o major os esperava junto às viaturas para levá-los ao quartel. Na pressa, o comandante arquivou o assunto e partiu com o companheiro do Exército.
A chegada de um navio da Marinha naquelas lonjuras era sempre motivo de muita festa. A recepção ao comandante da corveta e seus oficiais foi carinhosa, muito além das formalidades. Como homem do mar, ele ficou muito emocionado ao passar em revista a Companhia de Fronteira, ao som da canção “Cisne Branco”, entoada pelas crianças da escola do grupamento, em uniformes azul e branco, e agitando pequenas bandeiras brasileiras feitas por elas. A tropa era integrada por jovens caboclos e índios das diversas aldeias da região, e se apresentou de forma impecável.
Seguiu-se uma palestra, na maior sala do colégio, na qual o major discorreu sobre os diversos aspectos da existência do grupamento, naquele ponto distante do território nacional. O encontro terminou em um modesto coquetel, com a presença das famílias dos oficiais, que sempre participavam de todas as atividades civis do grupamento.
Já anoitecia, quando o comandante regressou para bordo a fim de vestir roupas civis, por haver aceito o convite do major para jantar em sua casa. Nas proximidades do barranco de atracação, percebeu um movimento anormal, com gente correndo em direção ao local. Ao descer da camioneta, notou que o oficial-de-servico estava ausente do portaló (local da prancha). O sargento-contramestre não o esperou entrar a bordo e veio correndo pela prancha para lhe dar a má notícia. Desaparecera, debaixo do navio, um dos garotos maiores que estavam mergulhando do passadiço e, carregados pela correnteza, subiam para bordo na popa.
Foi um soco no estômago. Uma perplexidade dolorida tomou conta do comandante. Pensou, imediatamente, nos pais do menino. Ele mesmo tinha um filho pré-adolescente, a paixão de sua vida. Entretanto, em instantes, reassumiu o papel de comandante, para o qual tivera anos de preparação. Sabedor de que o oficial-de-servico estava na popa, dirigiu-se apressadamente para lá. Antes, porém, enviou um sargento à Companhia para avisar ao imediato do ocorrido e dizer-lhe que regressasse para bordo com todos os oficiais. Além disso, o imediato deveria informar pessoalmente ao major o que estava se passando.
Encontrou o oficial-de-servico supervisionando a colocação de luminárias na popa para clarear a superfície da água, na qual vários homens mergulhavam em sequência, na tentativa desesperada de encontrar o garoto. Dentre eles, destacava-se um que exercia uma certa coordenação do grupo. Era um caboclo alto e desempenado o qual, ao ver o comandante, dirigiu-se a ele, acompanhado pelas demais pessoas ali presentes. O comandante teve um pressentimento logo confirmado. Era o pai do menino. Ele começou a falar de forma descontrolada. Estava todo molhado, com os olhos injetados de sangue, e ajustava nervosamente o calção velho, que insistia em descer da cintura, enquanto gesticulava trêmulo.
O pobre homem via no comandante a última esperança de salvar seu filho. Ele não conseguia se fazer entender e ficava cada vez mais nervoso. De repente, tentou segurar as mãos do seu salvador e se ajoelhou em frente a ele, em um choro convulsivo. O comandante e o oficial-de-serviço tentaram ajudá-lo a levantar-se, mas o homem insistia em ficar de joelhos. Em seguida, deitou-se no convés e foi se encolhendo, aos prantos, até ficar em posição fetal, gemendo baixinho. A perplexidade e o constrangimento dominavam a cena.
Súbito, ouviu-se a voz de uma mulher que chegava. Era a mãe, também desesperada com a situação. Ela já havia chorado muito, tudo que pudera... Contudo, ao ver seu homem naquelas condições, reagiu da forma que só as mulheres sabem fazer, em especial as mães. Abraçou-se com ele e o fez se levantar, dizendo palavras carinhosas ao seu ouvido, passando-lhe a mão no rosto e nos cabelos.
O pai, já mais recomposto e cercado pelos companheiros, dirigiu-se ao comandante, de forma muito respeitosa e lhe fez um pedido irrecusável, nas circunstâncias trágicas da ocasião. Ele queria que o navio fosse tirado dali logo, para poderem mergulhar mais livremente e ter alguma chance de encontrar o corpo do seu filho menino, o José.
O comandante foi apanhado de surpresa pela solicitação e não concordou de pronto. Disse ao homem angustiado que iria pensar no assunto e lhe daria uma posição dentro de algum tempo. Dirigiu-se para a câmara, onde se trancou, deixando antes instruções para o imediato vir falar com ele assim que chegasse a bordo. Sua cabeça estava a mil, pois a primeira idéia a lhe ocorrer era de o corpo do menino poder estar preso ao leme, entre os dois hélices. Quase certamente, seria necessário usar as máquinas para abrir (afastar) a proa do barranco e sair dali com o navio. Maldita hora em que não lançara n’água o ferro de bombordo, cuja falta agora iria complicar toda a manobra. Em outra palavras, o corpo do José corria o risco de ser despedaçado pelos hélices, girando necessariamente acelerados durante a manobra.
Muito ansiosos, ele e o imediato discutiram o assunto durante algum tempo. Examinaram todos os aspectos da manobra de desatracação do navio de onde ele estava, a ser seguida por seu deslocamento e fundeio em frente à posição atual, a cerca de cem metros da margem. Nas circunstâncias existentes, seria quase imprevisível o efeito das correntes sobre a corveta durante os poucos minutos que ela levaria para chegar à posição de fundeio, após largar da margem, girar para fora e cruzar o canal em frente, com sua forte correnteza.
Além disso, seria fundamental que toda a manobra fosse feita com o mínimo emprego dos hélices, de preferência um de cada vez, de modo a evitar ou minimizar o pior, isto é, seu provável efeito no corpo do menino. Sob esse aspecto, isso poderia ter sido muito facilitado se o ferro de bombordo tivesse sido largado n’água na chegada, possibilitando o navio ser puxado por ele, para se afastar do barranco na saída. Para complicar ainda mais as coisas, a noite lá fora estava um breu, perdendo-se bastante as referências de distância da margem, inclusive pelo radar, muito impreciso de tão perto.
A parte mais difícil, naquele momento, seria falar com os pais do José para alertá-los das possíveis consequências da manobra. De qualquer maneira, a desatracação teria de ser feita logo, como eles pediram, ou quando o navio prosseguisse viagem, na manhã do dia seguinte. Essa conversa ocorreu na câmara, com a presença do casal, do comandante, do major - que viera dar apoio ao navio - do imediato e do médico de bordo. Foi um momento de alta dramaticidade, por todas as circunstâncias e que terminou com os pais do menino destroçados e todos os presentes chorando. Dela, decorreu também a ordem do comandante ao imediato para que nada fosse comentado a bordo a respeito, até o navio continuar a viagem no dia seguinte.  
Tomada a decisão, o comandante e o imediato foram para o passadiço, a fim de executar a manobra. Os pais de José, o major e o médico desembarcaram em seguida e ficaram no barranco, em frente ao navio. Eles foram cercados pelos fuzileiros navais, que também estavam em terra, para controlar qualquer agitação por parte do povo, que assistia silencioso aos acontecimentos. Enquanto o imediato tomava as providências rotineiras para a desatracação, o comandante se isolou na escuridão, do lado de fora do passadiço.
Nesses poucos minutos, sua ansiedade atingiu um ponto quase insuportável. Ele se sentia responsável por tudo aquilo e inteiramente só. Entretanto, nada poderia ser demonstrado por ele daí em diante, até terminar toda a manobra, com o navio devidamente fundeado na posição predeterminada, afastado do barranco. O imediato, muito tenso, veio lhe informar que o navio estava pronto para ser movimentado, com exceção da rotineira experiência com os hélices, que não havia sido feita, por razões óbvias.
O comandante entrou no passadiço e iniciou a manobra.
Sua primeira ordem foi mandar largar os cabos de vante e de ré (recolher as cordas grossas de amarração), que ainda mantinham o navio junto ao barranco. A corveta, mesmo livre, não se mexeu. O rodamoinho no remanso, que não podia ser visto na escuridão, continuava a empurrá-la contra a margem. Decorridos alguns minutos, o comandante, com um nó na garganta, começou a usar os hélices devagar - o de dentro para vante e o de fora para ré - sem mexer no leme, na tentativa de girar a proa da corveta para o meio do rio. Dessa forma, ela sofreria influência da forte correnteza do canal e, naturalmente se afastaria do barranco. De novo, o navio não se mexeu.
Angustiado, o comandante ordenou meia-força para as máquinas, o que aumentou bastante a rotação dos hélices, fazendo o navio vibrar um pouco, porém sem sair do lugar. O leme, onde poderia estar preso o corpo de Jose, foi então carregado (girado) para bombordo, de modo a auxiliar na tentativa de afastar o navio para fora. Nada aconteceu. Suando frio, o comandante ordenou “toda-força” para ambos os hélices. A corveta finalmente reagiu e, com forte vibração, começou a girar devagar para bombordo e avançar em direção ao canal. Ao chegar lá, devido à velocidade da correnteza, foi necessário manobrar várias vezes com o leme e com os hélices, de modo a atingir a posição predeterminada e nela fundear (ancorar) com segurança.
 A manobra toda durou cerca de vinte minutos. Ao terminá-la, com o navio firmemente fundeado na posição escolhida, o comandante desceu desarvorado para a câmara e jogou-se chorando no beliche, sem tirar a roupa. Dormiu um sono sobressaltado por um pesadelo terrível, no qual o menino José e seu filho se afogavam no rio e eram despedaçados por hélices enormes, em alta rotação. Acordou no meio da noite, alagado de suor e se sentindo mal. Avisou ao médico, sendo logo atendido por ele, acompanhado pelo imediato. Foi-lhe aplicado um forte calmante que o fez dormir até tarde no dia seguinte. O imediato suspendeu (saiu do porto) cedo com o navio, dando prosseguimento a viagem.
O comandante quase não saiu da câmara nos dois dias seguintes. Quando ia ao passadiço, permanecia taciturno e calado, sentado em sua cadeira privativa e olhando fixamente para o rio. Fazia as refeições sozinho, em seus aposentos. O navio todo se preocupava muito com ele, por ser uma pessoa justa e boa. O moral da tripulação estava muito baixo.
No terceiro dia, chegou uma mensagem-radio do major para ele, informando que o corpo do José fora encontrado nas águas paradas da boca de um igarapé, vários quilômetros rio abaixo. Estava inteiro, salvo os efeitos naturais de morte por afogamento. O comandante da Companhia dizia também que José fora enterrado no pequeno cemitério local. Estiveram presentes sua família e boa parte da população da pequena cidade. Foram-lhe prestadas honras militares por um grupo-de-combate de jovens soldados da Companhia-de-Fronteira.
O filho José havia retornado. A corveta prosseguiu viagem em paz.



6 comentários:

  1. Domingos, triste história, belamente contada. A gente sente com o escritor a angústia dos pais e do capitão.
    Um abraço do
    Mano

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    1. Estimado amigo Mano
      Muito obrigado por suas palavras. Essa experiência foi uma das que mais me marcou em minha saga amazônica.
      A próxima será mais alegre.
      Abraço fraterno.

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  2. Heraldo Palmeira06/01/2017, 20:59

    Mestre, mais um belíssimo. Como torci para o fim que terminou ocorrendo, o menos pior diante da situação. Abraço.

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    1. Estimado amigo Heraldo
      Sou-lhe muito grato pela oportunidade que você criou de eu participar deste blog de alto nível do Mano. Vou continuar caprichando.
      Um grande abraço, com o desejo de que este ano seja melhor para todos nós do que o esquisitíssimo 2016.
      Vade Retro Satana!
      Domingos

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  3. 1)Torci para que o menino reaparecesse vivo...

    2)Eis a vida e suas impermanências.

    3)Escreve bem o autor, parabéns !

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    1. Estimado Antonio
      Muito obrigado por suas palavras.
      De fato, a vida marinheira é aventurosa e cheia de impermanências. É uma paixão que vale a pena.
      Um abraço fraterno
      Domingos

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