Heraldo Palmeira
O sol reapareceu finalmente em Belo Horizonte. Saí
do hotel ainda sonolento e fui ao Edifício Maletta, que acabara de completar cinquenta
anos dominando a cena na esquina da Rua da Bahia com a Avenida Augusto de Lima,
centrão da cidade. O prédio foi construído no local em que funcionou o famoso Grande
Hotel.
O Grande Hotel, empreendimento do
italiano Archangelo Maletta, abriu suas portas em 6 de agosto de 1897, quatro
meses antes da inauguração da nova capital dos mineiros. Hospedou em seus cinquenta
e dois quartos todas as grandes personalidades que visitaram a cidade na
primeira metade do século 20 – gente como Rui Barbosa, Olavo Bilac, Oswaldo
Cruz e Getúlio Vargas. Também foi ali que Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral,
Mário de Andrade e o escritor suíço Blaise Cendrars se encontraram com os
representantes do Modernismo mineiro, e Mário de Andrade foi à sacada declamar
os versos de Noturno de Belo Horizonte,
que acabara de criar.
Há quem garanta que Orson Welles
também ocupou um dos aposentos quando passou pelo Brasil, e que, em 1940, o
prefeito Juscelino Kubitscheck almoçou com Oscar Niemeyer no hotel e encomendou
o colossal conjunto arquitetônico da Pampulha.
O Maletta foi erguido já antecipando
a ideia de shopping centers misturados
com flats. Sua galeria serve de
passarela diária para cerca de vinte mil pessoas e ostenta a primeira escada
rolante de Minas Gerais – inoperante há anos e sempre sob promessa de reparo –,
além da maior quantidade de sebos por metro quadrado de que se tem notícia. Abriga
o frenesi de quem trabalha ou mora no edifício, uma fauna variada que junta
principalmente universitários, boêmios e intelectuais.
Na verdade, o Maletta é uma
grife, um estilo de vida que segue vencendo com garbo o ar decadente que se
mistura ao cheiro de gordura que sai dos restaurantes – a joia da coroa é a Cantina do Lucas (onde eu jantara na
noite anterior), que parece ter parado no tempo, desde 1997 tombado pelo
patrimônio histórico e cultural da cidade. Um território boêmio que se renova
pelas memórias dos tempos em que abrigava nas mesas de inúmeros bares os
rapazes do Clube da Esquina e de todos os segmentos artísticos. Um palco onde
as mulheres, pela primeira vez, podiam chegar desacompanhadas, pedir cerveja e
cigarros, e sair livres de qualquer preconceito e sem que ninguém as tomasse
por prostitutas.
Saracoteando por tantas riquezas humanas
entrei no Salão Máximo, que domina a
cena da galeria. Como a agenda apertada dos últimos dias me deixara com uma
barba por fazer de muitos dias, me entreguei aos cuidados de Maciel,
proprietário do lugar – que disse morar num dos apartamentos do Maletta – e fiz
uma espécie de viagem no tempo. Então com setenta e três anos, o velho barbeiro
era um retrato de maestria no ofício que escolhera ainda moço.
Sentado confortavelmente numa das
seis daquelas cadeiras de barbeiro de antigamente – “já foram sete”, ele me disse
– fui sendo brindado com um desfile de cremes e toalhas quentes e frias, sempre
em branco imaculado. A mão de seda daquele homem fazia a lâmina deslizar quase transcendente
pelo meu rosto.
Falamos de profissões como
aquela, que foram desaparecendo com o tempo, dos escândalos políticos do dia, até
chegar o momento do arremate final com uma das inúmeras loções disponíveis. Não
sem antes Maciel me pedir para escolher entre “loção que queima pouco ou que
queima muito”. Também havia a possibilidade do álcool. Direto, pancadão. Preferi
“fogo brando” e o creme Nívea chegou numa massagem, como última filigrana
daquele fidalgo ritual.
Sempre que a cadeira voltava à
posição original, Maciel oferecia seu último requinte: passava o pente no
cabelo do cliente, para remover o amassado causado pelo apoio de cabeça. Jogada
de craque. Detalhe que fazia toda a diferença, revelando um profundo conhecimento
daquele ofício nobre.
Levantei, paguei a conta
extasiado com a velha máquina registradora, e me despedi de Maciel prometendo
voltar ao salão sempre que fosse a Belo Horizonte. Promessa que nunca cumpri e
já nem sei se o velho barbeiro continua em atividade ou mesmo se está vivo. Atravessei
a galeria do Maletta, troquei cumprimentos com desconhecidos que já bebericavam
àquela hora da manhã na Cantina do Lucas
e desemboquei na muvuca da Avenida Augusto de Lima.
Apontei minha bússola para o
Mercado Central, em busca do restaurante Casa
Cheia. Ouvira falar maravilhas de uma rabada com agrião que pontificava no
cardápio da casa.
Heraldo, grandes lembranças. Da Cantina do Lucas, onde provei minha primeira pizza, servida pelo seu Olímpio, ainda nos tempos de colégio, de uma tia da Ana, que morou lá muitos anos, aos sebos onde enriqueci minha biblioteca e à loja de fotografia que um amigo de meu pai e meu teve por muitos anos e onde ficávamos jogando conversa fora...
ResponderExcluirMano,
ExcluirEssas grandes lembranças das nossas juventudes, quando formamos nossos gostos culturais e vivemos certamente grandes momentos, viraram alicerces das nossas vidas, algo como diplomas de experiências pessoais, certificados de que fomos felizes.
Esses ambientes me fascinam e as queridas Geraes são repletas deles, de histórias fundamentais contadas pelos jeito de ser desse povo maravilhoso, titular absoluto da encantadora mineirice.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirA mineirada toda a postos!
Ninguém conseguiria descrever melhor o Ed. Maletta, um submundo da nossa vidinha meio idiota de shoppings, zona sul, barzinhos elegantes e padarias refinadas para o café da manhã. Nada de pão na chapa, só croissants e muffins. ( bom também...)
Foi um agrado para nós mineiros neste domingo chuvoso.
Mudando de assunto - estou lendo Rimas da Vida e da Morte, de Amós Oz, e logo nas
primeiras páginas me deparei com a descrição de uma moça, seu jeito , suas cores e suas roupas. Lembrou-me muito seu estilo de descrever mulheres.. Li para o Mano e fiz adivinhação. E ele logo respondeu, Heraldo!
Bom domingo!
Ana,
ExcluirOra veja, que orgulho pelo seu comentário, que ratifica o que senti para descrever o que vi e vivi no Maletta. Entendo que, além de cenários viscerais como aquele, a vida ainda nos permite esses outros mais modernos e refinados, que podem ser compreendidos como os originais repaginados pela curiosidade e inquietação humana. Ou não seria o croissant nada além do que um pão na chapa metido a besta? E quem garante que o muffin não passa de um velho e bom sonho traduzido para outro mundo?
Também me senti recompensado por virar motivo de adivinhação entre você e Mano, ainda mais porque a resposta dele foi de primeira.
Quer dizer que vc andou pelas geraes? Ou a crônica não é datada? Realmente o Maleta é a melhor expressão do universo de Beagá. Deste meus tempos de estudante de jornalismo, a Cantina do Lucas era o ponto de encontro da intelectualidade e das reuniões de pauta dos jornais alternativos. Infelizmente, perdemos Seu Olímpio e, agora, em dezembro e Edmar. Mas o lugar continua congregando a fauna da melhor estirpe.
ResponderExcluirhttp://www.uai.com.br/app/noticia/gastronomia/2017/01/07/noticias-gastronomia,199872/morre-edmar-roque-proprietario-da-cantina-do-lucas-e-da-casa-dos-cont.shtml
Estamos todos assim. meio "old fhashioned", é assim que se grafa em inglês Wilson? andei ,muito pelo Maletta tbem, "Sagarana", "Lua Nova ou Cheia"? no Luccas sempre pedia o tradicional Parmegianna, servido é claro, pelo seu Olimpio. Perdemos não so o seu Olimpio, como também o seu Oswaldo, irmão da minha primeira paixão, Mercedes Tonionni. Idos de 70. As memorias ai estão, e os monumentos estão lá. Não vamos esquecer...
ResponderExcluirPaulo armond
Grande HP!! Texto elegante como de hábito com uma precisão de retratista que nos remete de pronto a imaginar a cena física e humana do lugar descrito. Abraço!!
ResponderExcluirOi Heraldo, gostei muito do seu texto sobre belzonte. Mas o que mais mexeu comigo foi a expressão do seu amigo Paulo, 'old fashioned'.
ResponderExcluirAh, Heraldo, como foi bom cantar e dançar com Aznavour.
Tô mandando a música pra você lembrar. Vai ver que lá atrás você também foi fã da canção, cantou e dançou com ela.
Bom dia, Heraldo. E obrigada ao Paulo seu amigo pela lembrança que me trouxe.
Minha lembrança de belzonte é de menina, e de passagem pela cidade. Pena. Mas tenho foto para provar, com laço de fita no cabelo e tudo.
Abraço
https://www.youtube.com/watch?v=j4KHg3_-Cm8
Querido HP,
ResponderExcluirVou compartilhar com os conhecidos mineiros do Caralivro! Como sempre, texto impecável e interessante! Deu muita vontade de conhecer o Maletta!
Grande Heraldo! Sempre mestre na descrição, transportando-nos literalmente para o lugar; senti até o aroma agradável do bom café mineiro ...
ResponderExcluirAbçs
Heraldo escreve de um jeito que nos transporta para a cena e nos faz sentir parte daquele universo. Parabéns amigão e parceiro. Tua Suzy
ResponderExcluirMano Véio,
ResponderExcluirNovo quadro pintado com palavras!
Coisa que só a sua sensibilidade e a sua "pena" sabem produzir.
Ao falar do Maciel, em sua barbearia, obviamente fui levado à lembrança do saudoso "Toinho Barbeiro", meu pai, que você conheceu.
Ninguém consegue, Mano Véio, desenhar cenas humanas da forma que só você sabe fazer.
Xêro!
Mano Véio,
ExcluirObrigado por suas palavras.
Sim, enxerguei no velho Maciel o nosso querido Toinho Barbeiro, sempre prosa com sua boa prosa. As cenas humanas são escritas pelos protagonistas; eu apenas tenho a sorte de ter papel e lápis, ou teclas por perto. O resto é só relato. Xêro!
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirUm texto onde o seu melhor "tremeluziu". Você disse tudo e de modo impecável. Deixo-lhe apenas uma dica para quando voltar à Lisboa que tanto aprecia: o Barbeiro de Sevilha, lá na Rua do Alecrim, na Alfama.
Abração
Caríssimo,
ExcluirDica devidamente anotada para a próxima visita. Nada ainda marcado na agenda da vida, mas destino registrado no futuro diário de bordo. Pode contar. Abração.
Queria ter barba crescida só para provar do toque de seda regado à creme Nívea, deslizando por sobre meu eu cansado rosto, cuja pele, lá se vão anos, já foi de alabastro.
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