-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

26/01/2017

Chamada de Cana

imagem Abu Badalia (Wikimedia Commons)


Heraldo Palmeira
Eu estava num local que não faz parte do meu trajeto tradicional. Precisava entregar uns documentos numa agência bancária e cheguei pouco depois das dez da manhã. Como o banco só abriria as portas às onze, tratei de tomar um café por ali mesmo.
O homem negro, pobre, roupas surradas se aproximou do balcão. Parou no fundo, do meu lado esquerdo. Com certo constrangimento, colocou uma moeda de um real no tampo de azulejo branco, impecavelmente limpo, e murmurou alguma coisa incompreensível para o balconista – que já conhecia de sobra o freguês e o pedido. Ao mesmo tempo do murmúrio, o homem também levantou o polegar, complementando sua comunicação particular.
Em seguida, se aproximou mais de mim trazendo junto um odor menos pior do que eu imaginava. Pensei que me abordaria, talvez para pedir dinheiro ou outra coisa qualquer. Mas ele apenas passou por trás e caminhou na direção do balconista, do outro lado do estabelecimento.
Nesses botecos simples o serviço de bar tem lugar certo no balcão, acompanhando a arrumação das garrafas e copos lá atrás. O balconista colocou um copo grande de plástico sobre o azulejo impecavelmente limpo e tascou cachaça até o meio. O homem pediu limão. Estava em falta. Ele pareceu desapontado e saiu apressado pela outra porta, copo à mão. E circundou o bar por fora.
Eu não o perdi de vista. Ele parou mais adiante, na beira da calçada e, de uma lapada só, tragou toda a bebida. Não pingou um pingo. Não esboçou qualquer careta. Apenas meneou a cabeça levemente para baixo, como se mirasse o chão, e ficou teso como num transe, contraído e imóvel.
Parei de comer por uma eternidade que deve ter durado dez segundos. O homem levantou a cabeça, altivo. Recuperou os movimentos, e eles vieram ampliados. Pisou o asfalto quente – estava descalço –, andou na direção de uma daquelas caçambas de entulho e jogou dentro o copo vazio. Olhou ao redor com ar de responsabilidade e apanhou alguns pedaços de papel picado que estavam por ali. Depois atirou dentro da caçamba. Atravessou a rua e sumiu sem cambalear dos meus olhos.
Voltei ao meu lanche. O balconista olhou para mim e permanecemos em silêncio reverente àquele sobrevivente. Não ousamos qualquer gracejo. Terminei minha pequena refeição, paguei menos de cinco reais e tomei meu rumo.
Documentos entregues no banco, entrei no carro e fui embora pensando naquele homem e sua chamada de cana tomada de uma talagada só. Fiquei com a certeza de que aquela cerimônia era tradicional, diária, com hora marcada. Um rio de mágoas que ele canalizava para a alma todos os dias, numa correnteza devastadora de álcool, sua forma homeopática de ir deixando a vida.


14 comentários:

  1. Moacir Pimentel26/01/2017, 09:11

    Mestre Heraldo,
    Ao narrar o cotidiano, você retira poesia do banal , da cana, da miséria onde não tem nem pro santo, do desespero,do vício, do asfalto e do lixo,dos buracos onde se esconde e desintegra a raça, nos brindando nas suas crônicas com uma visão personalíssima de qualquer assunto ou tema ou personagem neste vasto mundo. Na tinta azul da sua bic se misturam a observação disciplinada e a imaginação irrequieta, a compaixão verdadeira e a estranheza serena, a curiosidade e o distanciamento.
    Você tem estilo, uma marca registrada nestes textos que eu saberia serem seus ainda que não os assinasse e que me agradam tanto que acabo precisando lê-los mais uma vez e de novo. Bravo!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira26/01/2017, 13:37

      Caríssimo,
      Na verdade, penso que, por ter começado a trabalhar muito cedo (aos 12 anos, naquele tempo podia e não fazia mal a ninguém) em atividade que me exigia andar bastante a pé, terminei "treinado" em observar tudo ao redor com um pouco mais de atenção. Somado ao gosto pela Bic e a tinta azul sobre papel, começaram a aparecer os primeiros rabiscos e fui tomando gosto. Obrigado.

      Excluir
  2. Olá Heraldo,
    O que dizer depois do Moacir, que é outro mestre da escrita?
    Só dizer que gostei muito e quero muitas mais.
    Até lá.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira26/01/2017, 13:38

      Ana,
      Não acredite no Moacir, ele é sempre generoso! Obrigado.

      Excluir
  3. Poesia urbana. Assusta pessoas que não vivem o cotidiano dos centros urbanos. Já presenciei coisa igual. Era um calor acima dos 30 no hiper-centro de BH,qdo parei pra comprar uma água gelada. Entrou um senhor, maltratado pelo tempo, pediu uma cachaça e um torresmo, virou o copo na boca de uma vez só, estalou a língua grunhiu um hahhhh de todo tamanho e saiu roendo o torresmo rua afora. Pensei comigo: este negocio deve ser é gostoso...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira29/01/2017, 16:42

      Paulo,
      Obrigado pela leitura. Sem dúvida, os becos urbanos são assustadores, embora, hoje em dia, as coisas sejam muito semelhantes mesmo nas pequenas cidades. Tornou-se muito difícil encontrar algum reduto ainda muito preservado das modernidades e das dores humanas. Na verdade, os sabores do submundo quase sempre terminam indigestos.

      Excluir
  4. Caro Heraldo,
    Parabéns por mais este belo poema que congela em nossas mentes uma comovedora cena em movimento. Um poema puro. Puro como um Cohiba. E, assim, mais uma vez você nos deixa mesmerizados com uma leveza que nos fala fundo de um retrato, uma cena, uma gravura, dessa coisa que conhecemos como Vida. Os comentários do Moacir e do Paulo Armnd complementam, na essência, o que eu desejo expressar com meu modesto comentário.
    Norton Seng

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira29/01/2017, 16:59

      Norton,
      Esses retratos estão congelados em todos os cantos, sempre fazendo o movimento da vida misturar o perfeito e o imperfeito. Como um "puro", um poema urbano pode somente retratar ou matar. Obrigado por estar aqui neste recanto de prosa.

      Excluir
  5. Parabéns, querido HP! Suas crônicas refletem com poesia e estilo o realismo de uma fotografia, nos transportando imediatamente ao local e ao fato. Vamos ao livro!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira27/01/2017, 17:48

      Amorosino,
      Fatos sempre acontecerão aos borbotões. Espero continuar capaz de vê-los e relatá-los adequadamente. Até que o livro se faça.

      Excluir
  6. É sempre gostoso ler tuas crônicas; cria uma expectativa de que virá ainda mais coisas gostosas de saber, e de pensar ...
    Aliás, essa é a grande virtude do bom escritor: fazer o leitor pensar ...
    Abraços amigo!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira29/01/2017, 17:00

      Emerson,
      Obrigado pela leitura; sigo tentando dividir as visões do mundo que passam diante de mim.

      Excluir
  7. 1) Importante crônica Heraldo, parabéns !

    2)Uma realidade (um padrinho, um primo e um amigo)que fizeram durante um tempo eu frequentar o AA - Alcoólicos Anônimos e o Alanon - Familiares e Amigos de AA, mesmo sendo abstêmio.

    3)Aprendi muito com eles.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira29/01/2017, 17:01

      Antonio,
      Obrigado pela leitura.

      Excluir

Para comentar, por favor escolha a opção "Nome / URL" e entre com seu nome.
A URL pode ser deixada em branco.
Comentários anônimos não serão exibidos.