fotografia Moacir Pimentel |
Moacir Pimentel
Desde os finais do século VII e durante mais de um milênio toda a orla marítima portuguesa - do
Algarve ao Alto Minho - foi alvo de expedições protagonizadas por corsários e
piratas mouriscos à caça de escravos ibéricos que eram, em seguida, comercializados
nos mercados de Argel, Marrakech ou Trípoli.
Face a isto, as aldeias costeiras de
Portugal viviam em permanente estado de alerta de maneira a prevenir suas
populações do perigo e dar-lhes chance de fuga. Pelas praias erguiam-se inúmeros
postos de vigia, do alto dessas torres o horizonte era vigiado e quando lá
surgiam as velas dos navios árabes, o sentinela gritava desesperadamente:
“Há mouro na costa!”
Em seguida fogueiras eram acesas e
sinais de fumaça enviados e o povo alertado ou se armava para o confronto ou
abandonava as vilas praianas e dirigia-se para o interior, onde os corsários
não se atreviam a penetrar. Há relatos desses episódios em pleno século XIX.
Na t’rrinha o grito “Há
mouro na costa!” passou a ser uma expressão de uso popular para
advertir alguém de um eventual perigo.
Dizem as “velhas da praia” que um
desses postos de vigia foi erguido em Viana do Castelo, bem no local onde hoje
mora o imponente Santuário de Santa Luzia que ilustra o post com sua silhueta
mourisca.
Durante
muitos séculos a Península Ibérica foi povoada e governada por vários povos –
dentre eles os muçulmanos - que se cruzaram entre si, misturando sangues,
culturas, costumes e conhecimentos.
No ano de 711, tropas oriundas do norte da África
cruzaram o estreito de Gibraltar e venceram, na batalha de Guadalete, o visigodo
Rodrigo, um dos muitos reis germânicos que dominaram as províncias ibéricas depois da
queda do Império Romano. Esta conquista árabe
entrou para a História com o nome de Invasão Islâmica da Península Ibérica.
O curioso é que a ocupação islâmica foi incentivada
e facilitada pelo povo que habitava a região hoje conhecida como Algarve, no
sul de Portugal. Naquelas paragens várias tribos visigodas convertidas ao
cristianismo viviam às turras, envolvidas em disputas territoriais e de poder.
Por causa dessa rivalidade, os inimigos do então rei
visigótico Rodrigo resolveram pedir ajuda ao líder árabe Musa ibn Nusayr, que
reinava absoluto no norte da África, argumentando que segundo a xaria, a lei
islâmica, era dever do mulçumano defender os povos do Livro: judeus e cristãos.
Musa não só atendeu ao pedido como aproveitou para
tomar para si toda a Península, invadindo-a com tropas sob o comando do temido
general Tarique.
É preciso registar que chegada dos árabes foi
saudada com muito entusiasmo pelos sefarditas, os judeus de Portugal e Espanha. Pudera! Desde o
tempo das navegações fenícias, os judeus tinham vivido e prosperado em Sefarad
– o nome em hebraico da Península Ibérica - até que começaram a ser perseguidos
pelos reis cristãos visigóticos que os condenaram à escravidão e proibiram de
comercializar com os cristãos.
Não é de estranhar, portanto, que muitos judeus
sefarditas tenham aberto as portas das cidades para facilitar o avanço das
tropas islâmicas e se colocado às ordens dos invasores.
A invasão moura da Península Ibérica foi longa na
duração e rápida na conquista. Durante mais de vinte anos, o avanço mouro
enfrentou pouca resistência e só foi barrado pelos francos, o povo cristão que
habitava o território francês, a menos de trezentos quilômetros de onde hoje
fica Paris.
Os mouros precisaram de menos de uma década para
dominar completamente a Península que chamaram de “al-Andalus” e que permaneceria sob seu controle durante quase oito
séculos.
E o que significava “ al-Andulus” ? A resposta é que não se sabe ao certo. A denominação
deu o ar da graça dela, pela primeira vez, em 716, em uma moeda árabe de nome dinar, na qual cunharam de um lado e em
latim Hispania e do outro al-Andalus.
Dizem os doutos que a palavra al-Andalus pode estar relacionada com Vandalicia, o vocábulo usado pelo povo vândalo para denominar a Bética
romana tomada por ele no século V. Há quem ache, diferentemente, que a palavra
seria uma arabização de landa-hlauts, outra denominação da mesma Bética,
só que na língua goda, aquela
do povo bárbaro que dominou a Lusitânia. E quem acredite que al-Andalus poderia ser interpretada como
uma tradução infiel para a ilha perdida de Atlântida.
O que interessa no escopo desse post é que a
Lusitânia romana, a região ocidental da Península Ibérica que foi chamada pelos
árabes de al-Gharb al-Andalus,
significando o Ocidente do al-Andalus,
era o atual território português.
Esse Portugal mouro, esse Gharb al-Andalus - que não se limitava apenas à atual região do
Algarve como o seu apelido árabe al-Gharb leva a crer - foi uma região
periférica em relação à próspera vida econômica, social e cultural da província
que depois se tornou um emirado e que por fim chegou a ser o califado de al-Andalus, na região da atual Andaluzia.
Nos séculos seguintes, os muçulmanos foram os donos
da península e as conquistas
territoriais e militares resultaram em influência cultural. A invasão dos
mouros deu origem a uma sociedade muito heterogênea na qual os judeus
sefarditas também deixaram profundas digitais, uma delas na música. Uma das
mais belas canções sefarditas em ladino, a língua híbrida por eles falada, é o
acalanto Durme, durme, querido:
O processo da reconquista cristã prolongou-se
durante todo o período da Idade Média. Em 1139, encorajado por uma brilhante vitória
contra os árabes em Ourique, Afonso Henriques declarou-se liberto das rédeas de
Castela e um Portugal independente surgiu sob a sua própria coroa.
A partir dessa data, Portugal
começou a desenvolver uma identidade nacional distinta daquela dos galegos,
leoneses, catalães, castelhanos e outros reinos ibéricos, que mais tarde se
uniram para se tornar a Espanha.
Em meados do século XIII,
Afonso III conquistou Faro, a atual capital do Algarve, que era então o último
reduto dos árabes. Com a sua queda, em 1249, os cinco séculos de domínio árabe
que tanto enriqueceram Portugal, tiveram um ponto final.
Mas continuaram a existir várias comunidades
mouras, sobretudo no Algarve e no Alentejo. Como o seu nível cultural era
superior ao dos nativos, foi grande o influxo da cultura muçulmana na vida
portuguesa.
Finalmente, após oitocentos anos de tentativas, no
início da chamada Idade Moderna, durante o reinado dos reis católicos Fernando
e Isabel, os muçulmanos foram expulsos também das terras que viriam a ser a
Espanha.
Francisco Pradilla - A Rendição de Granada |
A
vitória final sobre os invasores muçulmanos que aconteceu a 2 de janeiro de
1491 quando da Tomada de Granada foi pintada pelo artista Francisco Pradilla,
no século XIX, num quadro onde se pode ver Boabdil, ou Maomé XII, o último
sultão de Granada, entregando as chaves da cidade aos reis Fernando e Isabel.
Note
que no mesmo ano da rendição da Granada, um genovês de nome Cristóvão Colombo
chegou à América, patrocinado pelos mesmos reis e mudou a história do mundo.
Este conjunto de acontecimentos históricos teve uma
importância imensa pois a unificação e a expansão dos reinos português e
espanhol resultou na era dos descobrimentos, do colonialismo e do apogeu da
civilização ocidental.
A mesma civilização ocidental que criou tudo isso
também formou o espírito crítico que permitiu ver essa narrativa gloriosa,
desde o início, com todos os seus atos de heroísmo e crueldade, acertos e
erros, injustiças e inovações, generosidade e abusos de lado a lado.
A gente se encanta ao ler o poema El Cantar de Mio Cid ou ao escutar Le Cid, a ópera de Massenet em homenagem
a Rodrigo Díaz de Vivar, chamado por seus inimigos de El Cid – do árabe Sidi
para senhor - e de El Campeador por
seus pares, sempre com igual respeito por sua valentia.
Diz a lenda que Jimena, a mulher de Rodrigo, ferido
de morte defendendo sua cidade de Valência, mandou amarrar o corpo do seu homem
ao cavalo e uma espada à sua mão e o colocou à frente de suas tropas no campo
de batalha. Ao ver El Cid – que
julgavam morto e sepultado - em cima do seu cavalo os árabes fugiram e,
desorganizados, foram facilmente perseguidos e derrotados pelo exército de Don
Rodrigo de Castella, o herói nacional dos espanhóis.
Alguns de vocês se lembrarão desta cena no final do
filme de Anthony Mann:
Mas não se pode admirar menos Ṣalaḥ ad-Din Yusuf ibn Ayyub, o Saladino, que apesar de ter sido a nêmesis dos cruzados,
conquistou o respeito de muitos deles, incluído Ricardo Coração de Leão.
Segundo os cronistas cristãos de seu tempo, longe de se tornar uma figura
odiada na Europa, o sultão mouro, além de ser adorado por seu povo, foi um
exemplo dos princípios da cavalaria medieval para os cristãos.
O personagem Saladino de Sir Walter Scott, um guerreiro
refinado e cavalheiresco, fictício mas totalmente plausível pois fundamentado
em fatos históricos, merece ser lido nas
páginas do seu livro Talismã e, bem assim, o líder histórico Ṣalaḥ ad-Din tem que ser descoberto nos
capítulos do Livro de Saladino, da lavra do escritor paquistanês Tariq Ali, que nos remete ao universo da cultura muçulmana e
nos apresenta as Cruzadas não como uma aventura de cavaleiros em armaduras
reluzentes, lutando para civilizar povos bárbaros e libertar Jerusalém do julgo
muçulmano, mas pela perspectiva islâmica e, mais interessante ainda, pela do
narrador da “conversa”, o escriba judeu Ibn Yakub, cuja própria vida é contada
nos intervalos do drama principal.
Moral das leituras? “A moeda tem duas faces”, como repetem os portugueses.
Os vestígios materiais da longa e próspera
permanência árabe em Portugal não são tão notórios quanto deveriam,
principalmente porque a política cristã de reconquista foi a de terra arrasada.
Cada localidade retomada dos árabes era destruída e
tanto os objetos de arte como as construções do inimigo infiel eram queimados
em fogueiras que ardiam durante dias. Mas restaram alguns elementos reveladores
deste período da vida portuguesa, principalmente nas ruínas das muralhas e dos
castelos, bem como no traçado de ruelas e becos de várias cidades, notadamente
do sul do país, já que a retomada cristã forçou gradualmente os árabes para o sul.
Mas não se pode negar que o
período islâmico em Portugal deixou poucos monumentos importantes enquanto que,
na Andaluzia, os árabes produziram tesouros arquitetônicos como a Giralda de
Sevilha, a Grande Mesquita de Córdoba e o Palácio da Alhambra em Granada.
Em Portugal, na fronteira sul
da Europa com o mundo muçulmano, os governantes árabes investiram pouco nas
construções grandiosas. Assim, o legado
artístico e arquitetônico islâmico em Portugal limita-se a ruínas de
fortificações, muitas delas posteriormente alteradas.
Das artes
da construção militar e civil nada chegou intacto até o nosso tempo mas o Castelo de Silves, o Castelo dos Mouros em
Sintra e a Igreja Matriz de Mértola são algumas das relíquias deixadas pelas
gerações de ibéricos e mouros e judeus que conviveram durante mais de
quinhentos anos.
O Palácio Nacional de Sintra
apenas ecoa o design mouro nas suas alvas torres, construído que foi no século
XV. Da mesma forma, no Palácio da Pena edificado no século XVI, a influência árabe também se verifica no
revestimento de paredes e chãos e nos mosaicos, com técnicas específicas e uma
linda paleta de cores importadas da Espanha mourisca.
Montagem Moacir Pimentel |
Cidades como Coimbra, Lisboa, Faro, Évora, Mértola e
outras foram islamizadas e em todas elas ainda se encontram vestígios mouros
nos muros, portas, fontes, jardins e mesquitas.É notório, nos últimos anos, um
incremento de interesse pelo legado árabe de Portugal dessas cidades tanto que em Lisboa, por exemplo, tem-se
investido na restauração de parte das muralhas da cidade moura.
É preciso salientar que em
todos os recantos da t’rrinha os lusitanos, mouros e sefarditas conviveram nas ruas tortas e
estreitas e viveram em casas quase desprovidas de janelas em bairros separados.
Sob o domínio islâmico em Portugal as medinas, as judiarias e os bairros
cristãos e moçárabes eram vizinhos.
As três mais populosas cidades
muçulmanas lusitanas foram, pela ordem, Silves, Lisboa e Mértola, cujo museu abriga uma estupenda
coleção de arte árabe.
No entanto é Silves, conhecida
como Shalb enquanto era a capital árabe do Algarve e competia com Cordoba para
ser o centro intelectual do mundo islâmico ocidental, a cidade guardiã do mais
rico legado mouro. O místico Ibn Qasi, o rei- poeta de Sevilha al-Mutamid e o
poeta Ibn'Ammar nasceram todos dentro de suas muralhas.
Devastada quando foi
reconquistada, a cidade nunca mais atingiu o tamanho ou a glória anteriores e
hoje é uma terra modesta, cuja economia depende fortemente do turismo.
Apenas o castelo árabe, que
além de Palácio das Varandas era conhecido como a Alcazaba - de al-Qasabah, significando fortaleza – permanece
altaneiro nas duas primeiras fotos da montagem acima, com suas paredes de
arenito vermelho e as torres quadradas, onde a corte real muçulmana se reunia
para concertos, leituras de poesia e festas, segundo o poeta Ibn’Ammar
“Saúda, por mim, Abu Bakr,
os queridos lugares de Silves
e diz-me se deles a saudade
é tão grande quanto a minha.
Saúda o Palácio das Varandas,
da parte de quem nunca o esqueceu,
morada de leões e de gazelas
salas e sombras onde eu
doce refúgio encontrava
entre ancas opulentas
e tão estreitas cinturas.
Moças níveas e morenas
atravessavam-me a alma
como brancas espadas
como lanças escuras.
Ai quantas noites fiquei,
lá no remanso do rio,
preso nos jogos do amor
com a da pulseira curva,
igual aos meandros da água,
enquanto o tempo passava…
ela me servia vinho:
o vinho do seu olhar,
às vezes o do seu copo,
e outras vezes o da boca.
Tangia-me o alaúde
e eis que eu estremecia
como se estivesse ouvindo
tendões de colos cortados.
Mas se retirava as vestes
grácil detalhe mostrando,
era ramo de salgueiro
que me abria o seu botão
para ostentar a flor.”
os queridos lugares de Silves
e diz-me se deles a saudade
é tão grande quanto a minha.
Saúda o Palácio das Varandas,
da parte de quem nunca o esqueceu,
morada de leões e de gazelas
salas e sombras onde eu
doce refúgio encontrava
entre ancas opulentas
e tão estreitas cinturas.
Moças níveas e morenas
atravessavam-me a alma
como brancas espadas
como lanças escuras.
Ai quantas noites fiquei,
lá no remanso do rio,
preso nos jogos do amor
com a da pulseira curva,
igual aos meandros da água,
enquanto o tempo passava…
ela me servia vinho:
o vinho do seu olhar,
às vezes o do seu copo,
e outras vezes o da boca.
Tangia-me o alaúde
e eis que eu estremecia
como se estivesse ouvindo
tendões de colos cortados.
Mas se retirava as vestes
grácil detalhe mostrando,
era ramo de salgueiro
que me abria o seu botão
para ostentar a flor.”
Pois é. Aparentemente, os
mulçumanos de antigamente, com muita sensatez, não estavam nem aí para aquelas
quarenta virgens esperando por eles no além à beira daquele rio de mel. E
gozavam das delícias do paraíso aqui mesmo na Terra, em solo lusitano.
Desse passado ameno
sobreviveram ainda, em precárias condições, a cisterna abobadada que abastecia d’água
os mouros e um dos portões da medina
de Silves. Sua Catedral ainda retém tênues vestígios da mesquita sobre a qual
foi construída.
Na cidade de Mértola, no Algarve, a Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, também
conhecida como Igreja Matriz – veja
na última foto da montagem
acima - é o único exemplar de arquitetura religiosa
islâmica remanescente em Portugal. Ela foi construída como mesquita no século
XII e foi transformada em Igreja após a Reconquista, no
século XIII.
Do primitivo templo islâmico são testemunhas as
quatro portas de estilo árabe, o mirabe indicando a direção de Meca, as delgadas colunas e os minaretes
que mais do que qualquer outro elemento evidenciam que a construção era uma vez
uma mesquita.
Em Mértola tem sido feito um valente trabalho de
restauração desde o bairro mouro até a necrópole islâmica. Recentes escavações também
descobriram uma rua de paralelepípedos e fundações de praí uma dúzia de casas
muçulmanas, debaixo de antigos conventos e das muralhas defensivas da antiga
cidade costeira de Tavira.
Nesse património árabe são notórias certas
características arquitetônicas como a abóbada, o arco em ferradura e a
ornamentação que, sem dúvida, foi um dos aspetos que mais contribuiu para a
unificação e fama da arte islâmica.
Ainda que tenham sido utilizados na Península
Ibérica antes dos mouros, pela originalidade das suas estruturas e dos seus
motivos ornamentais, tais elementos deram origem à uma paisagem portuguesa
tipicamente muçulmana e passaram a ser as imagens mais icônicas da ocupação
mourisca na t’rrinha.
As arcadas com colunas encimadas por capitéis, por
vezes ricamente trabalhadas, foram soluções estruturais muito utilizadas, porém
o arco em ferradura, de influência visigótica, é a própria imagem de marca da
civilização muçulmana em Portugal.
Embora os arcos em ferradura apareçam do Norte do
país até o Algarve, poucos
deles resistiram intactos até aos dias de hoje. Em bom estado de conservação
lembro-me apenas daquele do Castelo de Silves – veja a segunda foto da montagem
-
dos que adornam as portas da Vila de Faro e da
Medina de Elvas, e daqueles que embelezam as quatro portas da Mesquita de
Mértola.
É preciso não confundir a arte islâmica unida à
arquitetura e baseada na tradição clássica das artes bizantina e persa - desenvolvida
em Portugal entre 712 e 1249 – com a arte neo-árabe, mais contemporânea, feita
no final do século XIX com a intenção de recriar com luxo e exotismo a
arquitetura muçulmana.
É o caso da Praça de Touros de Lisboa e do
maravilhoso Salão Árabe azulejado do Palácio da Bolsa no Porto.
Diferentemente da influência
moura na Andaluzia espanhola tão marcante na arquitetura - fontes, jardins
internos e salões com paredes decoradas por poemas escritos em árabe - em Portugal a arte árabe e moçárabe é sobretudo móvel.
Nela os arabescos geométricos estilizados são o
principal elemento decorativo, embora apareçam também, aqui e ali, representações
vegetais e animais nas peças de cerâmica utilitária.
A grande profusão de superfícies decoradas e o
preenchimento decorativo de absolutamente todos os espaços tem a peculiar denominação
de “horror do vazio”.
A repetição de motivos – geométricos, cosmológicos,
de origem vegetal - as belíssimas caligrafias e a combinação de diversos
materiais e texturas criam um efeito tridimensional que confere aos edifícios
uma certa aura de mistério e harmonia, para a qual contribuem igualmente a luz
e a presença da água.
A rejeição de qualquer imagem figurativa que é,
como sabemos, outra característica da arte islâmica deve-se ao repúdio que os
muçulmanos têm pela idolatria, ou seja, a veneração de imagens que simbolizem
seres divinos.
Uma tradição decorativa árabe
que tem sofrido para se tornar parte da moderna identidade portuguêsa é a dos azulejos. A palavra vem do árabe al-zulayj, significando pedra polida.
Nas paredes de casas, igrejas,
mansões, estações de trem e metrô, restaurantes, museus e em inúmeras outras
estruturas, lá estão os onipresentes azulejos acentuando a beleza de cada
edifício que adornam.
As lindas paredes de azulejos
que encontramos em cada cidade e aldeia da t’rrinha harmonizam-se com todos os Portugais:
do mouro ao manuelino e dele ao barroco, este último desenvolvido em grande
parte por Francisco Arruda, um admirador da arte árabe e um dos melhores
arquitetos portugueses no período posterior aos Descobrimentos.
Durante o século XVIII, a
idade de ouro dos azulejos, a influência holandesa foi marcante e introduziu
novidades pictóricas tais como animais, castelos, navios, flores, pessoas e
cenas religiosa e históricas monocromáticas: azul sobre branco.
Mas são os primeiros azulejos,
de inspiração mourisca, estilo geométrico e padrões coloridos, que mostram mais
claramente os laços com a arte árabe.
Fora de Lisboa, azulejos de
padrões intrincados embelezam as paredes e pisos do Palácio Nacional e do
Castelo da Pena em Sintra, a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo nas Caldas da
Rainha, a Igreja da Misericórdia em Vila do Conde e muitas outras estruturas
enriquecidas pela excelente arte árabe.
Mas é no sul, especialmente no
belo Algarve, nas suas características geográficas, nos seus campos de oliveiras, sobreiros, alfarrobeiras e cítricos, nas suas videiras e pomares
de romãs e amendoeiras, nos seus castelos, nos portões e muros e telhados de
suas brancas habitações e nas cidades de nomes estrangeiros, onde se escuta
mais alto os ecos desse passado com imenso sotaque mouro e se vislumbra mais
claramente a presença árabe.
Para se mergulhar na paisagem
moura de Portugal, mais do que passear pela literatura ou provar a pastelaria ou se
encantar com a tecelagem de tapetes lusitanos islamizados, há que se estar no
Algarve diante dos milhões de chaminés que adornam os lares do Sul...
Cones, cubos, prismas,
cilindros, pirâmides, balões, finas colunas, altas estruturas, brancas, lisas,
coloridas e rendilhadas, todas essas descrições se ajustam às chaminés
algarvias. Se há uma coisa que caracteriza o sul ensolarado de Portugal, são as
suas chaminés ornamentais que nos trazem à mente os minaretes e fazem com que as casas brancas e brilhantes cochilando à sombra perfumada de pomares,
debaixo de preguiçosos telhados vermelhos de terracota, pareçam mesquitas em
miniatura.
Mas atenção! A arquitetura
tradicional da região algarvia tem uma forte influência árabe sim, no cal das
habitações, nos painéis de azulejos das fachadas, nos telhados, nos terraços
chamados de açoteias, que servem para
secar as frutas tradicionais, para recolher água e, é claro, como um espaço relaxante
onde as pessoas se sentam e apreciam a vista durante as quentes noites de
verão. Mas as charmosas chaminés só começaram a aparecer no Algarve no século
XVII, muito tempo depois dos mouros terem partido.
Não foram os mouros, ao
contrário do que se pensa,que conceberam as mais belas chaminés de Portugal para suas
habitações simples, lineares e abobadadas. A arquitetura árabe em
Portugal nem sequer tinha chaminés.
Loulé, famosa por seu mercado
e ciganos e muralhas do século XII, é talvez a cidade do Algarve cujas casas
são mais enfeitadas por terraços atraentes e chaminés coloridas. Da mesma
forma, nos centros históricos de Olhão e Tavira, ambas arquitetadas em estilo
kasbah com ruas estreitas, as chaminés nos fazem acreditar estar em solo
africano e não europeu.
É a mesma falsa sensação que
se tem na Alfama, o velho bairro lisboeta que nos dá testemunho da convivência
pacífica e da inovação promovida pela mistura das culturas árabe e ibérica.
Apesar de ter sido fundada
pelos fenícios e mais tarde embelezada por romanos e visigodos, os árabes
batizaram esta esquina de Lisboa como al-Hammah
- fonte de água quente.
Supõe-se que na Alfama
existissem os banhos públicos, que
funcionavam não só como espaços de higiene, mas também de convívio. Os banhos
islâmicos apresentavam uma estrutura semelhante à dos banhos romanos, com
várias salas com piscinas de água fria, morna e quente.
Apesar de nada disso ter sobrevivido
em meio ao labirinto das ruas estreitas da Alfama, uma aura muçulmana ainda
perdura...
Mas onde exatamente?
Não se sabe. Talvez nos becos
e escadarias estreitas, nos tapetes dependurados nas janelas, no cheiro de
maresia e de jasmim ou das trepadeiras em flor nos vasos dos pátios, quem sabe
na falta de espaço?
O fato é que a ambiência da
Alfama e seus habitantes parecem ter mais em comum com o Marrocos, por exemplo,
do que com uma capital europeia.
Portugal tem mais belas
mourarias que merecem leitura, mas elas ficam para outra conversa.
Se meus professores de História ensinassem assim eu teria tirado melhores notas kkk Você não se cansa de escrever maravilhas.
ResponderExcluirEu conheci Sintra, Moacir, visitei os castelos. A foto dos azulejos azuis é de lá? Nunca tinha pensado nisso na herança que os árabes deixaram. Os dois vídeos são maravilhosos, as fotos também. Amei o ditado 'há mouro na praia' e a piada sobre a poesia. Obrigada
Mônica,
ExcluirNão , o painel de azulejos não mora nos palácios de Sintra mas no terraço manuelino de outro, o do Buçaco ,
bem pertinho da Mealhada onde se vai para comer aquele Leitão à Bairrada regado por um bruto de um espumante rosso.
Quanto à minha 'piada' sobre a poesia do Mestre Ibn'Ammar na realidade ela é muito triste. É duro constatar como se pensava mais larga e saudavelmente na virada do primeiro para o segundo milênio do que se pensa hoje, no nosso raivoso terceiro.
Obrigado pelas leituras e comentário
Abração
Moacir,
ResponderExcluirUm artigo maravilhoso rico em história e cultura. Nem sei de qual filme gostei mais entre El Cid e Ben-Hur. O Charlton Heston era apaixonante nos dois. Creio que o ditado que diz que a moeda tem duas faces e a meiga cantiga de ninar Dorme querido resumem a sua mensagem de hoje. As mães de todos povos cantam do mesmo jeito para todos os filhos de todos os Livros. Parabéns por nos lembrar.
Um carinhoso abraço e tenha um bom final de semana.
Prezada Flávia,
ExcluirO seu comentário me deixou muito feliz, obrigado. Para você um final de semana melhor ainda e outro abraço
Muito bom ler uma matéria tão bem escrita como esta e parabéns pela escolha de seus temas.
ResponderExcluirAdorei, Moacir.
ResponderExcluirFoi uma viagem no tempo escrita no recuo desse tempo.
O assunto me interessou muito porque acho que o meu avô tinha pinceladas de sangue árabe. Pena que, muitas vezes, a gente tarde demais desperta para as coisas.
A música é linda mas me lembrou também um pouquinho de fado, outras canções portuguesas e um pouco de músicas ouvidas em Israel. Estou errada?
Gratíssima. Verdadeira alegria do saber!
Até mais
Está certíssima Donana.E não só quanto ao sangue do seu avô. Mais de 500 anos depois que os últimos muçulmanos foram expulsos da Península seus antepassados estão prosperando. Um estudo, publicado no American Journal of Human Genetics, baseado no tal do cromossomo Y que permanece inalterado de pai para filho, demonstrou que as proporções de ascendência sefardita e mourisca nas populações de Portugal e Espanha são provavelmente as mesmas quando da Reconquista e que elas são altas. Há evidências de que "19,8% dos espanhóis e portugueses de hoje eram originalmente judeus sefarditas e que outros 10,6 % têm uma composição genética que sugere descendência muçulmana".
ExcluirAssim o polêmico treinador de futebol português José Mourinho ou o nosso querido José Saramago, ou ganhador do Oscar Pedro ALmodóvar, podem ter ancestrais muçulmanos. Só de olhar para a Penélope Cruz - nossinhora! - a gente dispensa o teste de DNA.
O certo é que a minha saudosa sogra , alva como a neve, era mouríssima pelo menos na boca do seu rosto visigótico e - juro-te! - eu vislumbro um brilho beduíno nas pupilas escuras da nossa caçula. Quanto ao fado, que tal esperarmos pelo segundo capítulo da "franquia" moura? (rsrs)
"Até mais"
Mais um texto brilhante, Pimentel, que enriquece os arquivos que tenho a respeito das tuas postagens neste blog extraordinário, do nosso querido amigo Wilson.
ResponderExcluirUm abraço.
Saúde e Paz!
Alexandre Sampaio e caro Chicão,
ResponderExcluirAgradeço-lhes pelas generosas palavras de incentivo torcendo para que continuem lendo o blog
Abraço geral
1)Ótima aula de História, obrigado Moacir !
ResponderExcluir2)No Algarve contemplei as cegonhas que faziam ninhos no alto das chaminés, das lareiras... poesia pura !