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11/01/2017

Os Demônios do Oleiro

 
fotografia Moacir Pimentel
 

Moacir Pimentel

Confesso que a visão que tive, há poucos dias, da arte de Francisco Brennand foi influenciada sim, pela leitura de trechos do diário dele, escrito desde 1949 até hoje, que vem sendo publicado em doses homeopáticas. Se bem que no diário em vez de falar sobre a sua obra ele aborde, em um estilo personalíssimo, temas como as mulheres, a arte em geral, os grandes mestres, a literatura, a filosofia, o cinema, o envelhecer, a natureza, enfim, o vasto mundo, Brennand nos auxilia a compreender o seu trabalho, compartilhando com seus leitores o seu olhar de artista, o qual como diz o dono, “nem se queixa nem se explica”.

fotografia Moacir Pimentel


Porém, o leitor atento descobre nas pretinhas de um mestre da cor a sua paixão pela arte da pintura a óleo e pelos afrescos italianos, o seu fascínio por Tomaso Masaccio e – que grata surpresa! – por Piero della Francesca, por cuja Madonna del Parto eu fui enfeitiçado aos vinte e poucos anos.

Percebemos, mesmo enquanto lemos as picantes aventuras amorosas do artista, o quanto a sua compulsão pela pintura sempre foi dominante, e nos fica claro porque depois de uma fase intermediária voltada para a cerâmica, ele se reencontrou com a pintura: o mesmo amor da juventude na maturidade.

De resto os pedaços do diário nos escancaram que o ciclo das “viagens” dele e os seus “sonhos de forasteiro” estão prestes a terminar, e sabedor disso, talvez eu tenha olhado para aquelas maravilhas como se pela última vez:

“Todavia, o que pareceu impossível foi cumprido, como alguém que mesmo no deserto, se pondo na rota das caravanas, depara com beduínos e camelos, prosseguindo com eles em demanda aos oásis de águas claras ou, quem sabe, os de águas turvas... Daí em diante, nada será impossível. O pouco que presenciei e o muito que pude ver me pareceram suficientes e propícios a sonhar os milênios, num deliberado anacronismo, como se todas as coisas tivessem acontecido ao mesmo tempo, ou seja, num certo momento do sonho e neste desarrumado mosaico".

    
Reiteradas vezes Brennand tem se definido com pintor. Diz ele:

“Acredito que no fundo não posso me desvencilhar da minha alma de pintor. O terrível é que acabo assombrado descobrindo que sou sempre eu, tentando explicar o inexplicável.”



E ele questiona se essas esculturas todas, relevos, murais, tapetes cerâmicos, instalações, anfiteatros, colunas, totens, construções, lagos, fontes, espelhos d'água, não são pedaços de uma tela maior?

Nesta tentativa de comunicar a beleza do trabalho de Francisco Brennand, encontramos um texto da lavra do Mestre Ariano Suassuna - um dos amigos definitivos do artista - que versa, justamente, sobre a carga sexual na obra do amigo, às vezes tão mal interpretada.

Diz Mestre Ariano:

“Pode-se realmente diante de alguns destes desenhos, falar de formas obscenas. Mas isto somente porque a sensualidade é a origem do obsceno e tem seu princípio no simples fato de se olhar insistentemente o mundo. Olhar e desejar são dois momentos do mesmo ato e os pintores são, talvez, entre todos os homens, os que mais treinam a vista, tão apurada e sequiosa, quanto a de uma ave de rapina ou de um animal de presa. Os pintores tudo olham e tudo vêm, por isso tudo desejam. É daí que se origina sua sede, sua incansável ânsia de posse”.



Ora, Brennand ao esculpir não perde o “olhar do pintor”, mas uma profunda mudança se opera no artista quando ele amassa o barro, como se o lado oculto das coisas se revelasse ao escultor “apátrida que mergulha no abismo” e que passa a traduzir a si mesmo em imagens perturbadoras, concebidas no limite entre a realidade e o delírio.


fotografia Moacir Pimentel


Na entrada do Templo, ao lado de suas feras guardiãs, Brennand se auto retratou numa escultura denominada de O Feiticeiro:

fotografia Moacir Pimentel


Brennand, é claro, é o velho oleiro, o mais antigo senhor do fogo, o fazedor de feitiços primordiais. A descoberta do fogo pelo homem foi considerada pecado tão grave pelos deuses gregos, que nenhum dos castigos que imaginaram para Prometeu foi capaz de acalmar a galera divina.

Afinal o bicho-homem fora capaz de apressar o ritmo da Mãe Natureza, passando a fazer em alguns dias o que a toda poderosa antes fizera em milhões de anos. Não há magia maior do que o domínio humano do processo acelerado de transmutação das coisas, das profundas modificações físicas da matéria.

Brennand não nos deixa esquecer, seja lá para onde olhemos dentro da Oficina, do elemento encantatório, do quanto há de mágico na cerâmica em si, na argila primordial insuflada pelo sopro divino, no fato de que, para trabalhar o barro o homem se acumpliciou com os quatro elementos – fogo, terra, água e ar – com os fornos, com o domínio das chamas.

Pois foi esse instante, perdido na noite dos tempos, nada mais nada menos que o registro de nascimento da espécie humana, do povo que dominou as trevas e caçou as feras.

  
Ao descrever, no seu diário, o seu trabalho como escultor Brennand deixa clara também, a angústia do processo criativo:

“Retomo o trabalho das esculturas, intensificando a procura desesperada das formas humanas, uma cruel aventura, o maior dos vícios. Mas a esta altura dos acontecimentos, encontro-me sozinho nesse grande anfiteatro ao lado de corpos esquartejados dos quais posso dispor de todos os meios para reconstruir à vontade, peça por peça, até atingir uma anatomia que pretende retomar do vício, a virtude. A virtude de ser só, a virtude do narcisismo e mesmo do autismo, levadas as últimas consequências”.



A arte de Brennand é pensada e realizada como um panorama do absurdo da vida, de suas crueldades, de seus embates e mentiras, sem saída nem luz de esperança a não ser... pela própria arte.

 É como se, de capítulo em capítulo, de escultura em escultura os fragmentos desse artista se juntassem num mosaico, numa visão pessimista do mundo, que a sensibilidade à flor da pele do artista não permite ser passiva, e isso se evidencia na transformação da velha olaria que teve por intenção a posse de um mundo fechado, completo, onírico e intocado, variando apenas e eternamente através das horas do dia.

Durante décadas o artista trabalhou em um espaço sem janelas, criando sob uma lâmpada elétrica. Quando, quase que à sua revelia, abriram uma janela no atelier, Brennand se maravilhou:

“Essa é a minha única ligação com o mundo”.

imagem Facebook


E é pelo janelão que ele acompanha a trajetória do sol, a maior ou menor presença das nuvens sobre os seus guerreiros estáticos, suas aves hieráticas, seus animais fantásticos, e os passarinhos reais pousados na verticalidade de tantas figuras, que nos recordam, às vezes, a imponência daqueles moais de Rapa Nui.

Sobre essa posse que o artista precisa exercer sobre tudo no seu microfeudo e alhures, muito nos “alumia” como sempre o Mestre Suassuna:

“A sabedoria da linguagem antiga ensina que conhecer é possuir: de um homem que possuíra uma mulher, dizia-se que a tinha conhecido. E estribados nesta certeza, os artistas passam a fabricar seu mundo de sombras, convencendo-se assim, de que o possuem porque o conhecem melhor”.

fotografia Moacir Pimentel


Há algo nesse universo mitológico de Brennand que faz pensar, nas Quimeras, famosos sonetos de um poeta francês de nome Gerard de Nerval, cujos versos o autor ia mudando de lugar, de estrofe, até mesmo de soneto, misturando as estações, mudando os nomes dos deuses, inventando uma mitologia própria, quase um samba do crioulo doido.

É isto que encontramos na Oficina de Brennand: esculturas que se movem das galerias para o jardim, e vice-versa, peças rachadas acidentalmente pelo fogo colocadas em pedestais, novas instalações delirantes, enxertos de peças antigas em outras recém nascidas, intercâmbio de membros, genealogias delirantes, uma amálgama de cultos extintos e fatos históricos.

fotografia Moacir Pimentel


Como explicar a multiplicidade de formas e cores dessas esculturas, o voo delirante das figuras e bichos e flora nascidos de raízes mitológicas e históricas e das brumas do inconsciente do seu criador? Mais uma vez pedimos a ajuda do grande Suassuna:


“É que o olhar de um pintor como este erra, indiferentemente, por todas as coisas. Para alguém cujos pés estão plantados como raízes no íntimo da natureza, é bem clara a sensação de que tanto faz nos faltar uma só coisa como todas. Estranho e triste destino dos homens, coitados, sempre sôfregos por alguma coisa que infelizmente não se encontra aqui”.

No centro da Oficina os pássaros Rocca, protetores do supersticioso artista, se encontram no alto das paredes e no meio dos gramados arribados de um livro do Doktor Freud, Un Souvenir D’Enfance de Léonard De Vinci, no qual o psicanalista comenta à exaustão o quadro A Virgem, o Menino e a Santa Ana no qual fizera a curiosa descoberta da presença de um abutre na silhueta do manto de Maria.


Leonardo da Vinci - A Virgem e o Menino com Santa Ana (imagem rrmuseui.it)



Na verdade é visível, sim, no azul do manto mariano o recorte do bico, a cabeça, o pescoço, o tronco, as asas e a cauda da ave que, é claro, Freud explicava como sendo a materialização de um trauma impresso no inconsciente do pintor florentino.


No entanto, o artista conta ainda uma outra história: que certa vez, olhando para a rua da janela de um oitavo andar, vira desenhado no asfalto pelas rodas dos carros que haviam passado por cima da tinta fresca com a qual haviam marcado a via pública, a silhueta gigantesca do pássaro.

fotografia Moacir Pimentel


Como temos na parede uma gravura de um pássaro Rocca diferente, emplumado e azul e assinado por Brennand em 1976, prefiro continuar acreditando que o pássaro nos chegou oriundo da oralidade árabe, que escapou da saga de Simbad o Marítimo, onde defendia suas crias - os ovos! - jogando pedras nas naus que cruzavam os mares, hoje representados pelos espelhos d'água.

fotografia Moacir Pimentel


Os Pássaros contradizem pela verticalidade essa ideia única da volumetria horizontal da obra de Brennand. Suas esculturas, que ocupam grandes espaços na Várzea e além, provam, ao contrário, que ele sempre foi afeito aos altos desafios na escultura.

fotografia Moacir Pimentel


Na Oficina o ato de mostrar é o de mostrar-se, o de livrar-se da peçonha, do vampiro da culpa, dos desejos viciantes, das fantasias torturantes e até mesmo de uma ponta de sadismo tendo em vista as mutilações, as fragmentações, as deformações que o artista comete nas formas que cria compulsivamente e sem remorsos. Não há como não pensar que toda essa arte angustiada é apenas a maneira como o artista encontrou de conviver consigo mesmo e de domesticar os seus demônios.

fotografia Moacir Pimentel





10 comentários:

  1. Monica Silva11/01/2017, 10:19

    Nossa, que fotos!
    Muito boa a sacada do feiticeiro e a explicação do pássaro e dos ovos, Moacir. Adorei.
    Se toda essa arte foi o jeito que o artista achou de tentar botar ordem na loucura dele só valeu a pena porque é bonito demais.

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    1. Moacir Pimentel12/01/2017, 12:56

      Mônica,
      Como está gravado em um paredão de cerâmica lá na Oficina dele, o grande Brennand "não se queixa nem se explica".
      Pudera! Está, aos 89 anos, ocupado demais fazendo "o 7". Para mim está de bom tamanho.
      Abração

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  2. Flávia de Barros11/01/2017, 13:55

    Moacir,

    Sua pauta é um casamento perfeito de palavras e fotos para ser lida e contemplada muitas vezes.Você é um homem de grande sensibilidade quando escreveu que olhou para tudo pela última vez querendo dizer que da próxima o velho oleiro pode já não estar lá. Muito linda e merecida a sua homenagem.
    Destaco as palavras de Ariano Suassuna e deixo um abraço

    "Estranho e triste destino dos homens, coitados, sempre sôfregos por alguma coisa que infelizmente não se encontra aqui”.


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    1. Moacir Pimentel12/01/2017, 13:02

      Flávia,
      É escusado dizer-lhe que sou um grande admirador do artista Francisco Brennand. Uma das características mais marcantes da delirante arte da sua Oficina, é que ela muda, evolui, se transforma a cada uma das minhas visitas.Sou sempre , invariavelmente, por ela surpreendido. É disto, dessa qualidade mutante, irrequieta e inesperada que sentirei falta um dia.
      Como diz Bandeira, no seu melancólico Madrigal :
      "O que adoro em ti, lastima-me e consola-me:
      O que eu adoro em ti é a vida!"
      Abraço

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  3. Dulce Regina11/01/2017, 16:08

    Olá Moacir. Seus artigos são sempre uma fonte de conhecimentos. Costumo lê-los várias vezes, tirando o maior proveito das informações e detalhes escritos por você. Entrar nesse mundo de Brennand exige um olhar atento, minucioso, curioso e uma certa dose de psicanálise . Como já falei, estive lá somente uma vez e, só pude admirar o que me atraiu de imediato . Só com um mergulho profundo nessas obras e na vida do artista, pode-se entender suas imagens perturbadoras. Tem que ser feito mesmo, em doses homeopáticas. Este ano ele completa 90 anos e está sendo programado vários eventos, como exposições, documentários, lançamento de livros. Então, nosso blog está de parabéns pela atualização feita através das pretinhas fantásticas do Moacir. Um abraço meu amigo e obrigada. Dulce

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    1. Moacir Pimentel12/01/2017, 13:08

      Querida Dulce,
      Eu quero, de coração e de público, agradecer a você pela leitura atenta e crítica que há tantodedica às bobices que escrevo. Porque não há autor sem leitor e muitos dos meus presentes textos são oriundos das nossas pretéritas "conversas" que moram lá na pasta da Granny. Obrigado.
      Uma dica: em dezembro, foi publicado finalmente o Diário que Brennand escreveu durante 50 anos: uma box com 4 volumes somando quase duas mil páginas. Como todo mundo perguntava ao comedor de barro se os rascunhos seriam publicados e qual seria o nome do livro, ele batizou a obra de O Nome do Livro, volumes I, II e III. Só que ele ainda escreveu um quarto volume, O Nome do Outro , em ritmo de ficção, no qual se inventou um alterego.
      Recomendo-lhe a caudalosa leitura e muita "mitigação" (rsrs)
      Abraço

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  4. Olá,
    Quando cheguei já tinham dito tudo, Moacir.
    Achei que sua escrita, ou pretinhas, a do Brennand e a do Suassuna têm certa parecença.
    Isso me soa muito bom...
    Até mais.

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  5. Moacir Pimentel12/01/2017, 13:24

    Donana,
    Há sim uma pareçença entre as escritas de Francisco - que li há seis meses atrás - e de Ariano: não de estilo ou de visão de mundo nem de referências mas de alma funda.
    Amigos de uma vida, o saudoso Mestre Ariano - cujos poemas o oleiro ilustrava desde que os dois eram garotos - gostava de Francisco porque o pintor ama a literatura e era correspondido porque também amava a pintura.
    Logo na entrada da Oficina, à esquerda, mora um painel de cerâmica no qual as pretinhas de Ariano descrevem o trabalho de Francisco como um enorme anfiteatro cuja laje central é um altar de pedra erguido como uma "imploração de piedade, como um memorial em defesa da própria raça humana"
    Contemporâneo, moderno e erudito Brennand deu à sua arte um forte sotaque europeu que não destoa, no entanto, daquele outro arrastado , jocoso e sertanejo, do Mestre Ariano. Estranhamente eles falam a mesma língua.
    Faz alguns anos, lá na Oficina, os dois fizeram um juramento solene : não permitiriam que a Morte os vencesse. Diz Brennand:
    “Juramos que não morreríamos e pronto”.
    Suassuna costumava "mangar" da arte dos artistas pernambucanos, seus contemporâneos:
    “Nós, nordestinos, nos preocupamos em sermos fieis à terra, aos mitos, às histórias, às formas e às cores da região. Não nos damos por satisfeitos senão quando sentimos que tais coisas estão agredindo os outros à primeira vista, de dentro de nossas obras.”
    A arte de Brennand desconhece essas regionalidades e nisso ela difere daquela armorial e de cordel do Ariano menestrel, que nunca se aventurou para além dos mares de cana caiana de sua terra natal.
    Francisco Brennand é um comedor de barro nordestino sim, depois de ter se tornado um artista universal. Ariano Suassuna de tão completamente nordestino se tornou um poeta universal. Simples assim.
    Há, no entanto, outra diferença nesses dois gigantes. A ferida que em Mestre Ariano nunca cicatrizou e que o fez poeta: o assassinato do pai então governador da Paraíba, por razões políticas, quando ele era menino. A poesia de Ariano nasceu dessa ausência e seus versos eram o alívio e, com certeza, a única linguagem que ele tinha para "conversar " sobre essa saudade :

    Fazenda Acahuan - Lembranças de Meu Pai

    Aqui morava um rei quando eu menino
    Vestia ouro e castanho no gibão,
    Pedra da Sorte sobre meu Destino,
    Pulsava junto ao meu, seu coração.

    Para mim, o seu cantar era Divino,
    Quando ao som da viola e do bordão,
    Cantava com voz rouca, o Desatino,
    O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

    Mas mataram meu pai. Desde esse dia
    Eu me vi, como cego sem meu guia
    Que se foi para o Sol, transfigurado.
    Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
    Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
    Espada de Ouro em pasto ensanguentado.

    Abraço

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  6. 1) Salve Moacir,

    2) Fotos belas, texto idem.

    3) Me faz lembrar algo da Babilônia. arte babilônica, estilo babilônico.

    4) Espiritualistas dizem que artistas são médiuns ...

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  7. Carlos Azevedo13/01/2017, 09:31


    Fantástico post do começo ao fim.

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