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29/08/2016

A Não Negação de Pedro


Moacir Pimentel

Eis outra joia rara que mora no Rijksmuseum da bela Amsterdam. A NEGAÇÃO DE PEDRO é o nome deste Rembrandt. Um tema bíblico que pretendia seguir ao pé da letra o Evangelho:

«E vendo-o a criada, tornou a dizer aos que ali estavam: Este é um deles. Mas de novo o negou.» ( Marcos 14:69-70)

Só que a tríplice traição, na realidade, não chega a acontecer nesse espaço cênico, que tem algumas das densidades mágicas e irreais de um Vermeer. Quando eu olho para essa tela, que me desculpe o Mestre, tudo o que vejo são as duas figuras no centro da tela. O homem velho e a jovem mulher.



É estupenda essa cena noturna iluminada pela chama, essa aparição aí dos dois protagonistas, que se descobrem, com imprevista surpresa, quando ela acende uma vela, cuja luz dá aos dois consistência e, ao mesmo tempo, os torna surreais e fantásticos pela contraluz.

Ao redor deles, uma verdadeira orquestração de tons vermelhos, castanhos, cinzas, e sanguíneos libera ou abafa esplendores. É com dificuldade que, em torno dos dois atores principais, percebemos os claros e escuros que dão forma aos soldados em primeiro plano, figuras tão tristes e trágicas que desaparecem entre pinceladas, desfocadas e desagregadas. À direita e à margem mal percebemos outras figurinhas sumárias como que absorvidas pelo fundo.

O fato luminoso, provocado pela vela, priva de qualquer credibilidade a narrativa bíblica, criando uma estranha inversão de valores, um outro script paralelo, mágicos avanços e recuos , um novo espaço denso, tenso e psicológico. A tela foge de controle, torna-se maior do que o nome com o qual foi idealizada, descreve sua própria história, se recusa a cumprir o seu destino, passa a emoldurar apenas a surpresa iluminada que se apossa do velho senhor e desta jovem mulher.

As figuras roubam o show e passam a ser donas do palco. Quem seriam essas pessoas? Pai e filha? Senhor e serva? Marido e mulher? Amantes se encarando com uma ponta de desejo? O que este homem e esta mulher significariam um para a outra, e o estariam se dizendo nessa noite escura?

Presenciamos, então, o convívio da irrealidade e do símbolo, da desmaterialização dos personagens e da superação do episódio a ser descrito, num todo que enfatiza a profunda participação humana e passa a ter muitas interpretações - misteriosa, comovida e até patética ou agudamente dolorosa - dos dois personagens, sempre irresolvidos, numa atormentada captação de vibrações de duas almas que apenas se olham com assombro.


6 comentários:

  1. Monica Silva29/08/2016, 09:40

    Moacir, eu cheguei a conclusão que você tem alma de artista. Eu jamais pensaria em São Pedro negando Jesus Cristo ao olhar esse quadro escuro. Isso é verdade. Mas tudo que consigo ver, sem viajar nas suas palavras, são duas pessoas interagindo e outra observando. Talvez pelo fato do homem ser mais velho e a mulher bem jovem, tive a impressão de que ele está repreendendo-a. Você tem razão quando diz que a gente foca na luz e que essas duas criaturas podem significar muitas coisas e estarem sentindo as mais diferentes emoções. É só a gente soltar a imaginação e como se a obra de arte tivesse ficado mais bonita. Obrigada por estes artigos diferentes que me fazem repensar muita coisa e não só a arte.

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  2. 1)Eis a beleza da Arte, permitindo interpretações múltiplas. Leituras várias.

    2) Eis eu, novamente em Amsterdam, visitando o museu, tendo como guia o Moacir.

    3) Vejo Luz e Escuridão: Santidade e pé no chão: Altruísmo e ação.

    4)Ação = movimento = pessoas querendo dizer algo, expressando o seu momento, cada um deduzindo ...

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  3. Flávia de Barros29/08/2016, 17:49

    Moacir,


    Não vai dar para brincar de 'pra além da imaginação' porque eu já conhecia esta lindíssima pintura de Rembrandt. Gosto muito dos auto-retratos dele que são como capítulos de uma biografia, tipo cada um uma nova confissão. Tem um quadro que vi há muito tempo em Londres que é fantástico no quesito luz, Moacir. Não lembro o nome mas tenho certeza que você conhece. É uma passagem bíblica que mostra a mão de Deus escrevendo na escuridão. Um trabalho encantador como este seu artigo.


    Um abraço para você

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  4. Dulce Liporace29/08/2016, 17:53

    Boa tarde, amigos. Gostaria de colocar aqui os versículos anteriores a esse que nosso querido Moacir citou : Mc 14-66,72 " Estando Pedro em baixo, no pátio, chegou uma das criadas do Sumo Sacerdote e, vendo Pedro aquecer-se, fixou nele os olhos e disse-lhe : " tu também estavas com o Nazareno, com Jesus ". Ele porém negou, dizendo : " Não sei nem entendo o que dizes ". Depois, saiu para fora, para o vestíbulo, e o galo cantou. A criada vendo-o de novo, começou a dizer aos que ali estavam : " Este é dos tais". Mas ele negou segunda vez. Pouco depois, de novo, os presentes disseram a Pedro " És com certeza um deles , pois és também galileu". Então, Moacir vejo que Rembrandt retratou sim a cena da Negação de Pedro. Este queria estar perto de Jesus, mas tinha medo, então juntou-se aos guardas e outras pessoas para não aparecer e fou surpreendido pela criada que reconheceu-o. A luz da vela iluminado-o, pegou-o de surpresa, levando com que todos o vissem , daí ( acredito ) a expressão assustada de Pedro. Essa revelação fez com que se realiza-se a profecia de que Pedro iria negar três vezes Jesus. // Na cena vejo pelo gestual de Pedro, como se ele estivesse dizendo : " Como assim ? Eu não sei de nada. Você está enganada. " E a criada convicta de sua afirmação. Interpreto o quadro desta forma, por sinal uma bela pintura e tão bem detalhada por você. Abraços

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  5. Boa. Noite, Ofélia. Gosto de viajar nas artes e fui buscar o quatro mencionado por você. Trata-se do " Festim de Baltazar " Daniel,5:6 - outra pintura esplendida de Rembrandt, que nosso amigo Moacir poderá fazer uma bela esplanação sobre ela. Abraços

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  6. Moacir Pimentel31/08/2016, 08:57

    Mônica, a nossa era é marcada pelas cores de imagens que muitas vezes falam mais alto do que as palavras, é verdade. Eu, ao contrário de muita gente, ainda prefiro o livro ao filme para o qual serve de roteiro. Porque o que IMAGINO quando leio é sempre mais largo e bonito do que o resumo que termino vendo nas telinhas. O Antônio chegou muito perto daquilo que eu tinha em mente ao rascunhar este arrazoado ao falar das interpretações múltiplas que a arte permite, de pessoas querendo expressar suas dualidades e contradições , da "conversa" que sempre rola ou deveria rolar entre nós e uma obra de arte, pois ao fim e ao cabo, nos projetamos nas nossas deduções. À Flávia e à Dulce, eu agradeço pela lembrança e informações - que só enriquecem o post - de outra tela estupenda desse mestre pintor - não só do chiaro nel buio mas da emoção humana! Enrolado na real, acho que não poderei , pra já , falar-lhes da mão judia e divina naquele fantástico Festim de Rembrandt que mora na National Gallery de Londres. Mas voltaremos ao assunto qualquer dia destes. Obrigado pela leitura e comentários e abraços para todos

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