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Heraldo
Palmeira
A sinfonia urbana invade nossas
vidas sem licença, sem parcimônia. Alguns sons diretos; outros carecendo de
tradução para que se entenda a cidade que nos rodeia a partir dos seus sonidos.
Estou convencido de que certas coisas
só existem para cultuar o sadismo. Ou há alguma explicação razoável para que
britadeiras, furadeiras e serras elétricas comecem a destruir o mundo
britanicamente no primeiro segundo do horário permitido?
Desmancham nossas camas,
esculhambam qualquer oração matinal, desandam qualquer conversa familiar ao
redor do café... Claro, demoram o suficiente para nos expulsar e calam. Quem
prestar atenção verá que raramente funcionam de tarde.
Na cena comovente de todas as
tardes, o rapaz percorre a área comum do condomínio ajudado por outro. É um
caminhar longo para ele. Sofrido. Emite o mesmo som, “Uuufff!”, a cada passo
custosamente dado. Sou testemunha ocular daquela luta diária pelo dia seguinte,
amparada numa relação de afeto e dedicação do cuidador cuidando pacientemente
do seu paciente.
De vez em quando, o mesmo cachorrinho
reclama em latidos aflitos da solidão em que foi deixado pelos seus donos. Soa,
naquela angústia do bichinho, o retrato dessa covardia de criar animais de
forma e em locais inadequados. Coisa de humanos que desenham um afeto oblíquo, obrigando
essas pobres criaturas a sofrer para cumprir a função de acalentar falências
emocionais de gente.
Preciso ser justo: o cachorrinho
é um lorde, só late quando – imagino – está em seu próprio limite nervoso. E o
faz de forma delicada, como se tentasse incomodar o mínimo possível. Apenas quer
chamar atenção e deixar claro que cachorro detesta ficar sozinho.
Em dois ou três momentos do dia, gritos
esganiçados e longos. Sempre três. E somem misteriosamente. O porteiro mais
antigo garante que é um jovem com distúrbios mentais que mora na vizinhança. O
zelador aposta que é um papagaio não sei de quem. Parece haver certa lenda,
ninguém sabe quem realmente emite aqueles sons.
Há outro som que entra quase cerimonial
pela minha janela. Uma sirene que toca pontualmente ao meio-dia. De domingo a
domingo. Há quem afirme que está num prédio comercial da Paulista. Há quem garanta
estar no prédio em frente, o da Gazeta.
Tenho inclinação pela segunda
hipótese, pois há uma tradicional instituição de ensino funcionando naquele
edifício clássico. Imagino, por minha conta e risco, que em tempos mais antigos
tocasse em diversos horários de entrada e saída das aulas. Sobrou o toque único
ao meio-dia, como que tentando não apagar um tempo que já não existe.
Esse toque também ganhou aspecto
de lenda: todo mundo diz alguma coisa a respeito e ninguém sabe direito do que
se trata. Continuamos apenas ouvindo o aviso diário de que o dia chegou ao
meio. Como um sinal de comando para o paulistano lembrar que é hora de almoço, de
dar uma parada.
Mais para o final da tarde,
meninos e meninas quase sempre solitários chutam bolas contra a parede atrás de
uma das traves da quadra do condomínio. Sem qualquer preocupação de fazer gols,
dar belos chutes sonhando estar num jogo de estádio lotado. Nada além de
descarregar a agressividade e apurar a paciência da vizinhança.
Ao redor de tudo, sobre tudo, o
rugido impaciente do trânsito transformado em território de feras – talvez
antigos chutadores de bolas em paredes. Buzinas, aceleradas, xingamentos e imprudências
dominam a cena, como se esse elenco de impaciências pudesse pulverizar o carro ou
qualquer outro obstáculo que está à frente.
Volta e meia, a voz rouca das
ruas, as multidões espalhadas pela grande e mais paulista das avenidas para
festejar ou protestar, lançam seu som inconfundível janela adentro. Chegam como
alertas ou convites para o movimento de sair ou não de casa.
Ao fim de cada dia, o som mais
calmo da noite prepara terreno para a balada que toca na madrugada, sempre
insone, sempre macia, saindo de um disco escolhido ou do rádio. O único momento
de afago que nunca falha, que acalma o ouvido, já que o som da chuva é incerto,
só vem quando bem entende para lavar a alma.
A sinfonia urbana toca forte
todos os dias e se renova eliminando velhos sons e inserindo outros novos. Embala
o tempo compondo vidas, quase sempre sem que vidas e sons se deem conta uns dos
outros. Apenas são e soam. Sem controle, sem catalogação, sem importância
aparente. Até que tudo se cala. E o silêncio revela que o som faz falta.
1) Crônica bonita; mazelas do nosso progresso.
ResponderExcluir2)Destaco a bela denúncia, a meu ver, um absurdo criar animais em aptos. Morei em uma casa que tinha quintal e tive até 10 vira-latas, durante 20 anos; hoje, em apartamento, só livros e plantas ...
Heraldo, antigamente tínhamos o apito do guarda noturno, que atravessava o silêncio da noite e nos trazia a segurança de uma época naturalmente segura.
ResponderExcluirHoje, em que todo mundo se entoca em casa à noite (às vezes até durante o dia), faz bem ouvir latidos. Cachorros latem muito de madrugada, reparou? A noite fica menos solitária, coitada, assim como nós. "Tem um cachorro lá fora, acordado", pensamos.
Gostei de ler seus ruídos urbanos, Heraldo. Cada um tem os seus. Quase de estimação.
Ofelia
Amigo Heraldo
ResponderExcluirSou de um tempo mais antigo. Além disso, visceralmente carioca, nascido, criado e vivido na beira da praia, navegando pelos sete mares, na superfície e debaixo d'água. Ouvindo sons diferentes, do marulhar suave e tranquilo ao estrondo das ondas gigantescas de temporais selvagens, emoldurados com raios e trovões, nas maiores demonstrações de forças enlouquecidas da natureza.
Em contraste, no ambiente silencioso de submarinos mergulhados, passei muitas noites ouvindo, nos sonares ultrasensíveis, os ruídos de hélices de navios próximos, cada um com sua assinatura acústica, em ambiente de cacofonia da vida submarina, incluindo baleias,cachalotes, golfinhos, cardumes de camarões,polvos, etc...
Sendo assim, tive poucas oportunidades de ir a São Paulo, onde sempre tentei me adaptar ao ritmo frenético da "paulicéia desvairada". Dormi poucas noites, em hotéis do centro, andares altos, ar condicionado ligado. Um silêncio artificial.
Mas, com certeza, em São Paulo há lugares onde se escutam outros sons familiares, como a própria crônica demonstra. Contudo,sendo uma cidade tão cosmopolita, me parece que faltam alguns sons originais no texto , tais como sinos de igreja, chamamento de fiéis pelos muezins, em seus minaretes,sapos coaxando, galos cantando... Isto mesmo, galos cantando ao amanhecer, sendo respondidos por outros distantes...Aqui no Rio, há algum tempo, um galo renitente, criado no terreiro de uma casa ainda existente em Ipanema, com um bando de galinhas, acordava toda a vizinhança a partir das cinco da manhã. O assunto acabou na delegacia e o galo calou a boca, não sei como...
Domingos
Grande Heraldo,
ResponderExcluirLendo essa crônica maravilhosa, mais uma escrita por você, consegui ESCUTAR lendo. Isso significa para mim VER o som de uma metrópole através de uma narrativa perfeita, com o meu olhar de Arquiteto e Urbanista.
Reitero o privilégio de ler sua obra! grande abraço,
Wagner
Como sempre, o ar simples da escrita observada com clareza a nitidez, nos deixa a ver maravilhas, ouvir sons e sentir cheiros.
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