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04/08/2016

Expansão

Moacir Pimentel

Tem uma canção da banda Pink Floyd - meus heróis de juventude! - chamada "Mais Alto Que As Palavras", cujos versos dizem, em livre tradução…

“Falam mais alto do que palavras / Essas coisas que fazemos / A maneira como elas rolam / A soma de nossas partes / A batida de nossos corações / Essa coisa que eles chamam de alma / Que está lá pulsando / Mais alto do que as palavras.”

Têm razão os velhos poetas roqueiros. Há coisas nessa vida que dispensam palavras. Dia destes eu li que esta estátua aí embaixo esteve em exposição na marginal do Tâmisa, em Londres. Mas foi à beira de um outro rio e contra outro horizonte que a conheci, há já alguns valentes anos. Minha caçula passou quatro meses em Nova York, quando adolescente. No final do seu programa de intercâmbio cultural fomos buscá-la e, juntos, conhecemos a Nova York dela, a cidade que ela aprendera a amar. Foi a primeira vez, por exemplo, que eu fiz um tour para ver street art - a arte urbana e efêmera que hoje se espalha pelas paredes, calçadas, postes e telhados de todo o vasto mundo. Confesso que, desde então, fiquei viciado.

Dentre todas as maravilhas que a minha filha nos apresentou naqueles dias, uma é inesquecível. É justamente essa impressionante escultura moderna que tive a sorte de contemplar, numa exposição temporária no Brooklyn. A artista chama-se Paige Bradley e a obra foi batizada de EXPANSÃO. Para mim, as imagens dessa obra de arte falam mais alto do que as palavras.

Fui apresentado a ela ainda sob a luz do sol. Assim:

Imagem: pagebradley.com


Aos poucos, o dia foi acabando, o sol foi se despedindo e ela foi se iluminando e... extrapolando. Em expansão.

Imagem: hexapolis.com

 Deveria ser assim com a gente. Mas não. Penso que a partir do momento em que nascemos o mundo tende a nos fabricar um recipiente, um container, sob as nossas medidas, para que possamos nos acomodar caladinhos lá dentro: uma certidão de nascimento, um número de RG, outro de CPF, um título de eleitor, um CEP, um diploma, um gênero, uma raça, uma profissão, um crachá, um estado civil, uma religião, uma língua, uma ideologia, uma classe na pirâmide social, um QI.

Eu fiquei ali olhando para a estátua e matutando... Somos percebidos e definidos mais pelo recipiente no qual sobrevivemos espremidos - pelas nossas casquinhas civilizantes e pelos nossos moldes civilizatórios - do que por aquilo que contidos, somos por dentro. Será que nós reconheceríamos, a nós mesmos, se pudéssemos expandir além de nossos corpos? Nos livrarmos do ralo verniz ? Será que os nossos amores, os nossos amigos ainda nos amariam se deixássemos para trás os nossos invólucros? Será que seríamos capazes de coexistir se fôssemos totalmente transparentes?

Talvez não. Mas cada vez mais, eu sinto que as nossas emoções estão trancadas em um casulo existencial. Essa estátua me lembra a espécie humana buscando fazer contato, procurando significado, estendendo a mão para indivíduos que deveriam ser singulares e inteiros, mas encontrando, tantas vezes, apenas seres fragmentados e muita alienação.

As pessoas se escondem, se disfarçam, se conectam sim, mas em profundidade cada vez menor. Não interagem, não se somam, não se acrescentam conhecimento e emoção. Por outro lado, é preciso mergulhar na nossa escuridão, antes de linkar-nos seja lá com quem for, antes de deixar que os nossos demônios conscientes ou inconscientes mostrem os dentes.

Lembro que ficamos ali, naquele parque, esperando pelo por do sol. Queríamos ver a obra sob os tons avermelhados do poente e, depois, na escuridão da noite bordada pelas luzes da cidade. Valeu a pena e até mesmo o hot-dog borrachudo que tivemos que comer em vez de jantar. Como um leve sangramento para fora do corpo feminino, foi como se dele brotasse a vida... como incontida luz.

Essa escultura reúne, num único momento de pura beleza, o liberto e contido. Ela está em expansão. E ao evoluir, ao crescer, ao se derramar para fora dos seus limites, ela nos intriga e provoca e inspira. É claro que um especialista em iluminação construiu um sistema qualquer para fazê-la brilhar de dentro para fora. Mas quem liga? Ela é linda !!

Eu imagino os bichos homens assim rachados, assim quebrados sob a luz do sol. Consigo visualizar nesta estátua as minhas cicatrizes, as memórias das minhas perdas, se contorcendo nos meus esconderijos secretos. Posso senti-las nas sombras, tremendo, nas profundezas das minhas paredes lascadas.

Eu posso entender que bandagens invisíveis, unem nossas frágeis peles, nossos ossos, nossas respirações. Nos amassamos, nos rasgamos, mas não avançamos. Somente nosso medo líquido vai gotejando para fora de nós. Tolos que somos, gaguejamos e fechamos as nossas janelas nos contentando a olhar através de vidros, ainda que arrepiados.

Naquela tarde, abraçado à minha filhota, desejei estar sentado, como a garota de pedra, em poças de luz oculta. Queria que as minhas fraturas fossem expostas, que aos poucos a luz fosse incendiando as minhas brechas para, pelo menos, suavizar os crepúsculos e embelezar as noites dos meus.


6 comentários:

  1. Monica Silva04/08/2016, 10:53

    Moacir, seu artigo é como a estátua que nos faz pensar e ilumina. Quando a cabeça não pensa o corpo padece, já diz o ditado. Às vezes, a gente amadurece tranquilamente como uma fruta no pé. Ou então quando tudo parece muito acomodado, acontece alguma coisa que nos sacode completamente e nos tornamos melhores. Outras vezes só aprendemos em meio ao sofrimento, dificuldades e problemas difíceis. Mas mesmo aos trancos e barrancos estamos caminhando na direção da luz. Amei!

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  2. 1) Expansão ... aprendizados ... crescimentos ...

    2) Bela crônica, bela estátua ... vivências ...

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  3. Flávia de Barros04/08/2016, 11:58

    Moacir,

    A força para seguir o caminho que nos leva a espiritualização está dentro de nós e as nossas cicatrizes nos servem de mapa. Nunca duvide da sua luz e obrigada pelas belas palavras.

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  4. Francisco Bendl04/08/2016, 16:17

    Caro Pimentel,

    Marguerite Yourcenar, em seu livro magistral intitulado Memórias de Adriano, descrevia lá pelas tantas a sua admiração pelas estátuas, a beleza, os detalhes magníficos dos sulcos nos rostos, as expressões de cada face ...
    E justamente as apreciava porque era a forma como encontrava de valorizar os gestos, o aperto de mão, o sorriso, a lágrima, a fala, do ser humano!

    O teu excelente artigo - mais um! -, que se chama Expansão, mostra a amplitude intelectual do meu amigo, e cuja mente não aprisiona a sua imaginação e criatividade, mas a expele como um jato de alento para quem admira os teus conhecimentos, cultura e experiência de vida, então reverencia o que escreves.

    Parabéns!

    Um abraço.
    Saúde e Paz!

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    1. Dulce Regina Liporace04/08/2016, 18:12

      Boa Noite, novos amigos. Com prazer que entro nesse blog formado pelo sr.Wilson acompanhado por Antônio, Heraldo ( já conhecido através do blog do nosso querido Setti ) Francisco e meu amigo Moacir , para absorver conhecimentos e dar meus " pitacos " sempre muito atenta. Moacir me indicou esse espaço , sabendo que me interessaria, pois gosto de estar conectada em novos assuntos e aprender cada vez mais. Desde então leio todos os dias as publicações , estou encantada com os textos e tb com os comentaristas. Parabéns a todos pela idéia magnifica. Esse texto do Moacir ( poeta, menino pueril, mestre, detetive -Rsrsrs- ) faz com que meditemos nosso caminhar aqui na terra. Estar conectados com nós mesmos, abertos para o outro, mostrando nosso verdadeiro eu, é muito difícil, mas não é impossível. A medida que amadurecemos e nos certificamos de quem realmente somos, colocando-nos à disposição do outro, nossa alma se ilumina aos poucos, tal qual a linda escultura aqui representada. Abraços, Dulce

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  5. Moacir Pimentel05/08/2016, 10:20

    A diversidade dos comentários sobre a escultura EXPANSÃO , me deixa muito feliz e ecoa o Jorge Luis Borges , o escritor argentino, que dizia que "o leitor é o autor duplicado”.
    Os comentários são um grande elogio à arte de CRIAR porque é como se a estátua tivesse se metamorfoseado em cada um de vocês. É bom verificar que qualquer observador de uma obra de arte a transforma em "vivência" - como apontou o Antônio - se surpreende e é "sacudido" por ela - como disse a Mônica - encontra nela forças para acreditar - como no caso da Flávia - resgata as memórias que em vez do Adriano eram da Marguerite como fez o Bendl - e como um "detetive" - mencionado pela querida Dulce - vai decodificando-a , anotando-lhe as pistas,passa a absorvê-la,a transformá-la em memória. De alguma forma, a arte nos modifica e enriquece.
    Essa escultura muda quem a amassou com as mãos no barro, quem a fotografou no crepúsculo, quem escreveu sobre ela, quem a editou, quem leu e comentou , quem a compartilhou , quem achou tempo para montar as peças desse quebra cabeças e, de fazê-lo - quem sabe? - já não é mais o mesmo pela estrada afora.
    Abraços e muito obrigado a todos

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