Moacir Pimentel
Tem uma canção da banda Pink Floyd - meus heróis de juventude! - chamada
"Mais Alto Que As Palavras", cujos versos dizem, em livre tradução…
“Falam mais alto do que
palavras / Essas coisas que fazemos / A maneira como elas rolam / A soma de
nossas partes / A batida de nossos corações / Essa coisa que eles chamam de
alma / Que está lá pulsando / Mais alto do que as palavras.”
Têm razão os velhos poetas roqueiros. Há coisas nessa vida que dispensam
palavras. Dia destes eu li que esta estátua aí embaixo esteve em exposição na
marginal do Tâmisa, em Londres. Mas foi à beira de um outro rio e contra outro
horizonte que a conheci, há já alguns valentes anos. Minha caçula passou quatro
meses em Nova York, quando adolescente. No final do seu programa de intercâmbio
cultural fomos buscá-la e, juntos, conhecemos a Nova York dela, a cidade que
ela aprendera a amar. Foi a primeira vez, por exemplo, que eu fiz um tour para
ver street art - a arte urbana e efêmera que hoje se espalha pelas paredes,
calçadas, postes e telhados de todo o vasto mundo. Confesso que, desde então,
fiquei viciado.
Dentre todas as maravilhas que a minha filha nos apresentou naqueles dias,
uma é inesquecível. É justamente essa impressionante escultura moderna que tive
a sorte de contemplar, numa exposição temporária no Brooklyn. A artista
chama-se Paige Bradley e a obra foi batizada de EXPANSÃO. Para mim, as imagens
dessa obra de arte falam mais alto do que as palavras.
Fui apresentado a ela ainda sob a luz do sol. Assim:
Imagem: pagebradley.com |
Aos poucos, o dia foi acabando, o sol foi se despedindo e ela foi se
iluminando e... extrapolando. Em expansão.
Imagem: hexapolis.com |
Deveria ser assim
com a gente. Mas não. Penso que a partir do momento em que nascemos o mundo
tende a nos fabricar um recipiente, um container, sob as nossas medidas, para
que possamos nos acomodar caladinhos lá dentro: uma certidão de nascimento, um
número de RG, outro de CPF, um título de eleitor, um CEP, um diploma, um
gênero, uma raça, uma profissão, um crachá, um estado civil, uma religião, uma
língua, uma ideologia, uma classe na pirâmide social, um QI.
Eu fiquei ali olhando para a estátua e matutando... Somos percebidos e
definidos mais pelo recipiente no qual sobrevivemos espremidos - pelas nossas
casquinhas civilizantes e pelos nossos moldes civilizatórios - do que por
aquilo que contidos, somos por dentro. Será que nós reconheceríamos, a nós
mesmos, se pudéssemos expandir além de nossos corpos? Nos livrarmos do ralo
verniz ? Será que os nossos amores, os nossos amigos ainda nos amariam se
deixássemos para trás os nossos invólucros? Será que seríamos capazes de
coexistir se fôssemos totalmente transparentes?
Talvez não. Mas cada vez mais, eu sinto que as nossas emoções estão
trancadas em um casulo existencial. Essa estátua me lembra a espécie humana
buscando fazer contato, procurando significado, estendendo a mão para
indivíduos que deveriam ser singulares e inteiros, mas encontrando, tantas
vezes, apenas seres fragmentados e muita alienação.
As pessoas se escondem, se disfarçam, se conectam sim, mas em
profundidade cada vez menor. Não interagem, não se somam, não se acrescentam
conhecimento e emoção. Por outro lado, é preciso mergulhar na nossa escuridão,
antes de linkar-nos seja lá com quem for, antes de deixar que os nossos
demônios conscientes ou inconscientes mostrem os dentes.
Lembro que ficamos ali, naquele parque, esperando pelo por do sol.
Queríamos ver a obra sob os tons avermelhados do poente e, depois, na escuridão
da noite bordada pelas luzes da cidade. Valeu a pena e até mesmo o hot-dog
borrachudo que tivemos que comer em vez de jantar. Como um leve sangramento
para fora do corpo feminino, foi como se dele brotasse a vida... como incontida
luz.
Essa escultura reúne, num único momento de pura beleza, o liberto e
contido. Ela está em expansão. E ao evoluir, ao crescer, ao se derramar para
fora dos seus limites, ela nos intriga e provoca e inspira. É claro que um
especialista em iluminação construiu um sistema qualquer para fazê-la brilhar
de dentro para fora. Mas quem liga? Ela é linda !!
Eu imagino os bichos homens assim rachados, assim quebrados sob a luz do
sol. Consigo visualizar nesta estátua as minhas cicatrizes, as memórias das
minhas perdas, se contorcendo nos meus esconderijos secretos. Posso senti-las
nas sombras, tremendo, nas profundezas das minhas paredes lascadas.
Eu posso entender que bandagens invisíveis, unem nossas frágeis peles,
nossos ossos, nossas respirações. Nos amassamos, nos rasgamos, mas não
avançamos. Somente nosso medo líquido vai gotejando para fora de nós. Tolos que
somos, gaguejamos e fechamos as nossas janelas nos contentando a olhar através
de vidros, ainda que arrepiados.
Naquela tarde, abraçado à minha filhota, desejei estar sentado, como a
garota de pedra, em poças de luz oculta. Queria que as minhas fraturas fossem
expostas, que aos poucos a luz fosse incendiando as minhas brechas para, pelo
menos, suavizar os crepúsculos e embelezar as noites dos meus.
Moacir, seu artigo é como a estátua que nos faz pensar e ilumina. Quando a cabeça não pensa o corpo padece, já diz o ditado. Às vezes, a gente amadurece tranquilamente como uma fruta no pé. Ou então quando tudo parece muito acomodado, acontece alguma coisa que nos sacode completamente e nos tornamos melhores. Outras vezes só aprendemos em meio ao sofrimento, dificuldades e problemas difíceis. Mas mesmo aos trancos e barrancos estamos caminhando na direção da luz. Amei!
ResponderExcluir1) Expansão ... aprendizados ... crescimentos ...
ResponderExcluir2) Bela crônica, bela estátua ... vivências ...
Moacir,
ResponderExcluirA força para seguir o caminho que nos leva a espiritualização está dentro de nós e as nossas cicatrizes nos servem de mapa. Nunca duvide da sua luz e obrigada pelas belas palavras.
Caro Pimentel,
ResponderExcluirMarguerite Yourcenar, em seu livro magistral intitulado Memórias de Adriano, descrevia lá pelas tantas a sua admiração pelas estátuas, a beleza, os detalhes magníficos dos sulcos nos rostos, as expressões de cada face ...
E justamente as apreciava porque era a forma como encontrava de valorizar os gestos, o aperto de mão, o sorriso, a lágrima, a fala, do ser humano!
O teu excelente artigo - mais um! -, que se chama Expansão, mostra a amplitude intelectual do meu amigo, e cuja mente não aprisiona a sua imaginação e criatividade, mas a expele como um jato de alento para quem admira os teus conhecimentos, cultura e experiência de vida, então reverencia o que escreves.
Parabéns!
Um abraço.
Saúde e Paz!
Boa Noite, novos amigos. Com prazer que entro nesse blog formado pelo sr.Wilson acompanhado por Antônio, Heraldo ( já conhecido através do blog do nosso querido Setti ) Francisco e meu amigo Moacir , para absorver conhecimentos e dar meus " pitacos " sempre muito atenta. Moacir me indicou esse espaço , sabendo que me interessaria, pois gosto de estar conectada em novos assuntos e aprender cada vez mais. Desde então leio todos os dias as publicações , estou encantada com os textos e tb com os comentaristas. Parabéns a todos pela idéia magnifica. Esse texto do Moacir ( poeta, menino pueril, mestre, detetive -Rsrsrs- ) faz com que meditemos nosso caminhar aqui na terra. Estar conectados com nós mesmos, abertos para o outro, mostrando nosso verdadeiro eu, é muito difícil, mas não é impossível. A medida que amadurecemos e nos certificamos de quem realmente somos, colocando-nos à disposição do outro, nossa alma se ilumina aos poucos, tal qual a linda escultura aqui representada. Abraços, Dulce
ExcluirA diversidade dos comentários sobre a escultura EXPANSÃO , me deixa muito feliz e ecoa o Jorge Luis Borges , o escritor argentino, que dizia que "o leitor é o autor duplicado”.
ResponderExcluirOs comentários são um grande elogio à arte de CRIAR porque é como se a estátua tivesse se metamorfoseado em cada um de vocês. É bom verificar que qualquer observador de uma obra de arte a transforma em "vivência" - como apontou o Antônio - se surpreende e é "sacudido" por ela - como disse a Mônica - encontra nela forças para acreditar - como no caso da Flávia - resgata as memórias que em vez do Adriano eram da Marguerite como fez o Bendl - e como um "detetive" - mencionado pela querida Dulce - vai decodificando-a , anotando-lhe as pistas,passa a absorvê-la,a transformá-la em memória. De alguma forma, a arte nos modifica e enriquece.
Essa escultura muda quem a amassou com as mãos no barro, quem a fotografou no crepúsculo, quem escreveu sobre ela, quem a editou, quem leu e comentou , quem a compartilhou , quem achou tempo para montar as peças desse quebra cabeças e, de fazê-lo - quem sabe? - já não é mais o mesmo pela estrada afora.
Abraços e muito obrigado a todos