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Francisco
Bendl
Indiscutivelmente
o serviço militar para os homens eu classificaria como imprescindível!
Ordem,
hierarquia, disciplina, espírito de corpo, de camaradagem, banho diário, farda
impecável, coturnos brilhando, assim como as fivelas dos cintos, camiseta
branca absolutamente alva por baixo da túnica de passeio... era assim no meu
tempo, pelo menos, quando servi à Pátria há quase CINQUENTA ANOS!
Ao transpor o
Portão da Guarda, e entrar nas dependências físicas da extinta 6ª Cia de Polícia
do Exército, na Praça do Portão, na capital dos gaúchos, eu deixara para trás a
vida de guri, de adolescente, e enfiava o pé definitivamente e com decisão para
ser um adulto!
Foi como sair
de uma dimensão e entrar em outra, real, firme, onde não se podia olhar para o
lado, vacilar, titubear... o soldado precisa estar atento, alerta.
Os primeiros
problemas surgiram com aqueles muito "mimados” em casa.
Acostumados
aos carinhos da mãe, acordar sob os berros de um sargento que se julga o punho
de Deus é diferente, ainda mais se não cumprirmos com o tempo que nos dá para
vestir a farda e entrar em forma, pois a punição é severa, independente de este
prazo não for possível de se cumprir, notamos de imediato, diante de seis
camaradas que ficariam dormindo no quartel porque muito lentos!
Durante os
primeiros quarenta dias eu e mais cem, pois servíamos em uma companhia, dotada
de três pelotões de patrulha e um de serviços, ficamos morando no quartel, indo
para casa aos fins de semanas.
Neste curto
período que um sábado e domingo correspondiam ao recruta, que sempre os mediu
com duração máxima de duas, três horas, de tão rápido que passavam, só
queríamos comer e dormir!
O cansaço era
em demasia, e a comida da caserna... aquela mesma tão magistralmente mostrada
nos antigos gibis do Recruta Zero!
Somava-se à
insônia e a comida que engolíamos, sem degustá-la, sem saboreá-la porque melhor
à digestão, as temíveis ordens dos superiores, os berros, os gritos, as
ofensas, o orgulho ferido porque não
conseguiríamos completar a tarefa ou a corrida ou os exercícios físicos
infindáveis e sempre com novidades.
Servi quando
o castigo físico era praxe, bastava um Cabo ou Sargento ou qualquer outro
superior hierárquico mandar e tínhamos de “pagar” vinte cangurus, apoios,
rolamentos, polichinelos ou correr pela quadra central por cinco, dez vezes.
Tornou-se tão
doentia essa forma de fustigar o soldado, de perturbá-lo para ver a sua reação
que em 71, o Exército extinguiu o tal castigo físico, que servia a quem
determinasse o pobre do recruta a executá-los como terapia para quem era traído
pela esposa ou coisa parecida, assim entendíamos as razões pelas quais alguns
idiotas pela manhã chegavam ao quartel babando pelo sadismo liberado!
À noite,
aulas de como se comportar em público, diante das autoridades, o famoso e
indefectível na ponta da língua, RDE, Regulamento Disciplinar do Exército, a
nossa bíblia, livro de cabeceira, de consulta, o horóscopo do coitado porque se
ele errasse uma ordem ou função, ali constavam os dias de sofrimento que teria
de suportar!
Nesse meio
tempo, percebemos que a hierarquia no Exército não era lenda ou mito. Uma
divisa a mais na manga ou uma estrela a mais no ombro, quem estivesse assim
trajado era o chefe, o superior, que mandava nos demais, portanto o verdugo, o
algoz para o soldado era o maníaco... Cabo!
Acelerado,
louco, inquieto, arredio, estranho, sempre à espreita, o Cabo podia ser do Rancho,
da Guarda, da Patrulha, de Dia, eles se multiplicavam, e como berravam, como
gritavam, como nos achavam, e dê-lhe castigo físico!
E havia os
solertes, os que se aproximavam como amigos, querendo conquistar a confiança do
recruta para depois dar o bote mortal.
Assim, o
primeiro ideal do recruta depois que ascende a soldado - então sai do quartel
fardado, tem farda de instrução, passeio e gala, sabe como responder ao
cumprimento militar, a continência, consegue distinguir as ordens verbais e
pelo instrumento (corneta) - é ser Cabo, e se vingar dos recrutas que lhe
passarão pelas mãos e ordens ano seguinte!
Uma espécie
de ciclo vicioso ou vital às Forças Armadas.
Na razão
direta que se sofre, se passa muito
frio, fome, sede, cansaço, exaustão, surge a primeira manobra militar,
entusiasticamente preparada porque pode ser a morte ou a imortalidade, o
soldado vai depender dos astros e de sua sorte o destino que lhe reserva!
O meu
primeiro acampamento teve um soldado do meu pelotão que por pouco não decepou a
língua, indo de madrugada para Porto Alegre, oitenta quilômetros de distância, esvaindo-se em
sangue para o Pronto-Socorro!
Dormindo que
estávamos, fomos acordados ao som de um alarme, uma sirene estridente, que nos
colocava em pé como robôs, e saíamos das barracas em grande correria para
entrar em forma. Pois o colega não se deu conta das amarras da barraca,
tropeçou e... não perdeu a língua por detalhe, mas ficou três meses
hospitalizado e quando voltou tinha perdido mais de trinta quilos porque se alimentava
só de líquidos!
O retorno ao
quartel após uma semana de testes à insanidade e oferendas aos deuses das
guerras, nos fez caminhar com toda a tralha nas costas por vinte e quatro
quilômetros, até chegarmos na estrada que nos levaria de volta à caserna em
cima de caminhões QT!
Mas o trecho
foi feito por homens, por combatentes, por soldados que aprenderam dormir ao
relento, comer uma ração fria, ser acuado por granadas, morteiros, e um azimute
que quase acaba com o meu pelotão porque nos jogou dentro de uma lagoa que
circundava o campo e quase morremos afogados, pois não se pode mudar o vetor
estabelecido, sob pena de se desviar do local combinado, então que seja por
dentro de tubulações, viadutos, elevadas, túneis, até dentro d’água!
Assim como
fechamos a porta da juventude quando entramos para o quartel, a vinda de uma
primeira manobra fechava a segunda porta, desta vez alertando que éramos
homens, valentes, que suportávamos as dores, os padecimentos, os desconfortos,
e confirmávamos que o soldado é superior ao tempo!
Conheci grandes
homens no Exército, assim como alguns miseráveis, sem caráter.
Aprendi a
amar esta terra, me doar ao país se necessário, admirar o Pavilhão Nacional,
obedecer a hierarquia, aceitar os regulamentos disciplinares porque
fundamentais à organização militar, à postura, à imagem, à ordem!
E trouxe para
a vida civil depois de três anos e poucos meses, um pouco do conteúdo deste
pacote de atribuições dos militares, que muito me ajudaram na escala da minha
vida civil, pessoal, particular e familiar.
Também
aprendi uma lição que jamais vou esquecer porque absoluta, indiscutível, uma
verdade apodítica, estocástica, o legítimo óbvio ululante, como dizia Nelson
Rodrigues.
A companhia
em forma, todos em posição de sentido, eretos, sem se mexer, o comandante ia
determinar o fim do expediente de uma semana quando ele para, estaqueia, fica
inerte!
O rosto fica
encolerizado, vermelho de raiva.
Ele não fala,
a voz sai gutural!
Descobrira
que no meio da tropa, com os soldados trajando suas fardas reluzentes e
coturnos brilhantes, um soldado, um mísero soldado estava de... sapatos!!!
Ele não
caminhou até o alienígena, voou. Pousando em frente ao audacioso e suicida
animal, vocifera:
- O que é isto, infeliz?
O soldado
trêmulo, gaguejando, questiona:
- Isto o quê?!
O comandante
quase perdendo o controle esbraveja:
- O que estás calçando, miserável?!
Voz baixa, um
sussurro, antes de ir para o cadafalso, o “reco” responde:
- Sapatos, comandante.
- E quem autorizou que tu podias usar sapatos,
desgraçado?!
- A minha mãe, senhor!
Silêncio
sepulcral. Ouvíamos até mesmo o bater das asas das moscas.
Inacreditável
a cena que se seguiria, pensávamos, se o criminoso seria morto a tiros,
enforcado, atropelado... o silencio continuava angustiante.
A ira do
comandante foi se dissipando, seu rosto voltando ao normal, a voz era audível e
nítida quando exclamou:
- Bom, se foi a senhora sua mãe, aceito. Agora,
diz para ela que nas próximas vezes ela que venha falar comigo antes de decidir
que tipo de calçados meus soldados podem usar!
Quando nos
dispensou e pudemos sair de forma, aprendêramos que a autoridade materna ainda
prevalecia, mas não tentamos verificar até onde ela poderia ir, e continuamos a
usar coturnos tanto no verão quanto no inverno, sem maiores riscos à hierarquia
militar!
Fora das
dependências do quartel, óbvio, na calçada, ouvíamos o corajoso balbuciar entre
os dentes:
-Mãe é mãe, c.#*&..!
1) Bom texto, boas lembranças.
ResponderExcluir2)Aproveitando o assunto: eu sempre achei que as mulheres no Brasil tb tinham que servir o Exército, aos 18 anos, da mesma forma que acontece em outros países. Hoje pode até se alegar que não tem dinheiro, mas já houve época em que havia dinheiro para isso, penso ...
Rocha,
ResponderExcluirAs mulheres já fazem parte das FFAA, diferentemente da minha época.
Machismos à parte, tenho minhas dúvidas quanto à mistura com a tropa nas mesmas dependências físicas, no mesmo quartel.
Agora, aproveitar as mulheres e suas inteligências e poder de organização em prédios separados das casernas, nas profissões médica, dentista, farmacêutica e engenharia, vejo com agrado o gênero feminino vestindo farda, menos com os soldados, mesmo ambiente, mesmo batalhão, companhia e pelotão, é o que penso.
Grato pelo comentário.
Um abraço.
Saúde e Paz!
Bendl, você me lembrou muito do meu pai. Ele repetiu a vida inteira, primeiro para meu irmão, depois pro meu filho, que "o homem precisa ser superior ao tempo."
ResponderExcluirAchava que todo homem devia servir ao Exército para aprender a ter disciplina, virar um homem de verdade.
Meu pai andava com os sapatos engraxados, brilhando, você jamais o veria com sapatos apagados.
Trocava uma camisa de meia branca todo dia. Andava limpo. E, como você, era afável, educado com as pessoas.
Eu me lembrei muito dele.
Foi bom.
Obrigada, Bendl.
Saúde e Paz
Ofelia
Ofélia,
ResponderExcluirGrato pela leitura da crônica, e me alegro de promover lembranças do senhor teu pai.
Há momentos na vida dos homens que todos se identificam, e é justamente quando sob comando, sob ordens, que verificamos quem pode cumpri-las para depois ser capaz de comandar.
Eis a razão pela qual o serviço militar DA MINHA ÉPOCA e do senhor teu pai é referência, não o de hoje, sem qualquer desvalorização da minha parte, mas atualmente as FFAA mais se parecem escolas de Ensino Médio que universidades onde se forjavam homens, a ferro e fogo, sob disciplina rígida e exemplos edificantes, preparo físico e mental absolutos!
E tais predicados aprendidos se mostram nas pequenas atitudes diárias, como a disciplina, superior ao tempo, sapatos engraxados, roupas limpas, e muita educação e respeito com as pessoas, afora estar de prontidão permanente quando requisitado.
Um abraço, Ofélia.
Saúde e paz!
Caríssimo Bendl,
ResponderExcluirEu vou lendo os seus textos, que correm soltos e fluídos, e consigo visualizar o amigo numa mesa farta, virando uns copos, dando risada, roubando a festa com os seus "causos". Você é um contador de histórias nato, Bendl.Isto é um dom que não deve nuuunca ser desperdiçado. Ao escrever você prende a nossa atenção da primeira à última linha, misturando informação, reflexão, filosofia , seus valores e crenças e , muitas vezes, a descrença, mas sem abrir mão do senso de humor.
Parabéns!
Abração
Obrigado, Pimentel, pelo comentário e gentileza a respeito do que relato da minha "vida" militar.
ResponderExcluirAcho que jamais devemos perder o humor, pois conforme uma das seções daquela célebre revista pequena, sucesso no mundo inteiro em décadas passadas, Seleções, "Rir é o Melhor Remédio"!
Um forte abraço, meu caro amigo.
Saúde e Paz!