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Heraldo Palmeira
Era uma vez um café onde eu nunca
havia entrado. Lugar bonito, charmoso, chamado Le Chocolatier. Instalado no CCAB Petrópolis, em Natal, está na
calçada principal do centro comercial erguido há décadas na tradicional Avenida
Afonso Pena. Local que mentes provincianas – ou matutas mesmo – apelidaram de
“nossa Oscar Freire”, demonstrando noção nenhuma do que significa o lendário
bulevar paulistano. Mas essa já é outra história.
A minha história é inesperada em
qualquer praça de comércio do mundo, nestes tempos em que comerciantes e seus
funcionários perderam a compreensão do significado de cliente. Ainda mais inesperada
para alguém que jamais havia posto os pés na loja.
Empurrei a porta naquele quase meio
de tarde arejada de junho. O local é pequeno, encontrei apenas mais uma das
poucas mesas ocupadas. Pedi água gasosa, café e um salgado. Depois dos sabores,
um dissabor na hora de pagar a conta: a carteira não estava no bolso.
Constrangido, anunciei meu drama para a garçonete. Impávida, e sem demonstrar
qualquer sombra de dúvida, me cobriu com uma voz suave e alentadora: “Não tem
problema, o senhor passa depois e paga”.
Como um pugilista que acaba de beijar
a lona e tem de comprovar ao juiz que pode continuar na luta, ainda balbuciei
que só tinha o celular para deixar como garantia. “Não precisa, fique
tranquilo”, nocauteou-me a moça. Restou-me, como último movimento naquele round encerrado, oferecer nome e telefone
na comanda das despesas, que ela deixou a meu exclusivo critério anotar. Não
tinha qualquer desconfiança para me ofertar.
Transpus com pressa a distância
entre a loja e o apartamento da minha irmã, que fica nos arredores – hospedagem
inigualável que mereço em terras potiguares. Retornei triunfal ao café, pois
não só havia reencontrado a carteira em casa, como já tinha à mão o dinheiro
para quitar aquele vexame que provoquei.
Depois de mais um merecido café
de despedida, pisei a calçada e a porta de vidro se fechou atrás de mim. Eu,
que vivo reclamando, coberto de razão, da má qualidade generalizada dos
serviços e dos “profissionais” que literalmente se escondem atrás dos balcões
em quase todos os lugares, acabara de levar um drible desmoralizante de
competência comercial e continuava paralisado diante daquela demolidora
demonstração de excelência.
Numa hora dessas, não importa o
tamanho do estabelecimento e nem os valores financeiros envolvidos. Nada vale
tanto quanto a atitude de respeito ao cliente.
Num átimo, desenhei o óbvio na
mente: era minha obrigação demonstrar meu encantamento e retribuir aquele gesto
fidalgo da moça. Entrei numa grande e bela loja de sapatos e bolsas femininos
no mesmo centro comercial, onde fui imediatamente cercado pelo time de
vendedoras desocupadas pela falta de clientes. Disse que queria presentear uma
pessoa que me dera uma aula de atendimento e gostaria de deixar um produto
pago. Os primeiros movimentos corriam bem, até que informei que a presenteada seria
a moça do café de ali perto:
– A garçonete do café? – quis saber a vendedora, com ar de quem conhecia a moça.
– Sim, ela mesma.
– Senhor, nós não trabalhamos com vale presente.
– Mas eu deixo meu telefone, fico nos arredores para qualquer
necessidade...
– O que podemos fazer é lhe ajudar a escolher um presente para ela.
– Não, obrigado. Não tenho como escolher algo tão pessoal para uma
pessoa que vi hoje pela primeira vez. Não tenho a menor noção do gosto; nem sei
que número ela calça. Quero dar um presente, não um problema de presente.
– Mas, senhor, a gente pode ajudar a escolher um bom presente...
– Não, não. Obrigado, até logo.
Já ia me encaminhando para a
porta, quando me voltei para passar o recibo que considerei pendente:
– Será que se eu quisesse presentear uma colunista social haveria algum
problema? Terminaria escolhendo algo mais caro, além do que paguei e, muito
provavelmente, “pagaria” a diferença escrevendo uma dessas notinhas de jornal.
Saí dali deixando para trás um
silêncio absoluto, e com a estranha impressão de que as moças da loja bacana
não absorveram bem a ideia de receber, como cliente, a minha cada vez mais
valiosa garçonete. Mas não quis acreditar que o fato de ela ser uma negra – de
beleza deslumbrante – possa ter interferido na ênfase com que me foi dito
“Senhor, nós não trabalhamos com vale presente”.
Entrei numa perfumaria mais
adiante. Contei a história que deu origem a tudo e a vendedora ficou encantada.
Perfume escolhido, o cartão de troca foi ajuntado dentro da embalagem. Eu não
conhecia minha garçonete para saber do seu gosto olfativo, nem podia obrigá-la
a carregar um cheiro apenas porque gosto dele.
Naquele já finalzinho de tarde,
as mesas da calçada do café estavam lotadas, como costumam ficar nos
finaizinhos de tarde. Quem sabe, momento do dia em que a brisa do Atlântico
potiguar talvez espalhe alguma poção mágica capaz de juntar gente e causar a tal
sensação de se estar na Rua Oscar Freire. Vá saber!
O interior do salão estava vazio
e me acerquei do balcão. Puxei conversa com as três funcionárias. Realcei o
episódio que nos uniu naquele dia, mas, para elas, aquilo era “o normal” – claro
sinal de que os patrões também estão acima da média.
Ao entregar o presente, fiz
questão de dizer que minha mulher e minha filha também usavam. Não queria que o
perfume que escolhi deixasse no ar qualquer odor de cantada barata. A minha
garçonete recebeu com extrema elegância, sem alarido. Como convém às melhores
vendedoras da verdadeira Oscar Freire – onde, por acaso, eu estaria dias depois
dirigindo as filmagens de um projeto sobre comércio de alto padrão.
No jantar, fiz um relato daquela
tarde inesquecível para minha irmã anfitriã. Soube que o dono do café é seu amigo
antigo, médico como ela – liguei para ele dias depois.
Soube também que a tal loja de
bolsas e sapatos finos, a que não trabalha com vale presente, costuma enviar
lotes de sapatos e bolsas para que minha irmã escolha, em casa, o que desejar.
E passe depois para acertar a conta.
A postura das vendedoras da loja
de bolsas e sapatos finos me causou a desagradável impressão de preferência por
mulheres que podem ter os próprios nomes trocados por jornalista, doutora,
deputada, senadora, prefeita, governadora, senhora, sinhazinha, sinhá, querida,
linda, maravilhosa, poderosa, chiquérrima... Vá saber por que garçonete não se
encaixa nesse grupo de fantasia, mesmo com a conta previamente paga!
1) Como sempre, bela crônica.
ResponderExcluir2) O Heraldo escreve bem e nos transporta àquele encanto de cidade que é Natal.
3) Eu tb, em 2002, estive lá, provando, saboreando, colecionando... pot-iguarias (potiguar-ias) diversas: na alimentação, na hospitalidade, nas amizades.
4) Bom domingos a todos (as) !
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirComo você escreve bem! Das suas pretinhas ninguém discorda! Mas se eu fosse aquele cliente acho que teria oferecido flores à moça, ou melhor , não teria oferecido nada além de um sincero muito obrigado. Porque tratar bem um cliente é obrigação e tratá-lo mal, principalmente em tempos de crise , é uma idiotia colossal.
Agora se eu fosse o protagonista do seu Café Especial e tivesse me deparado com as três patricinhas da Oscar Freire potiguar que "não trabalham com vale-presente", teria resolvido me divertir. Passava na livraria mais próxima, comprava alguma coisa para ler, levava pelo braço a Suzany para a butique delas e recomendava à bela deslumbrante para escolher a prenda sem nenhuma pressa. É que tem gente que para aprender, só so-le-tran-do e bem "devagarinho" !
Abração
Senti o bom gosto das iguarias.
ResponderExcluirCaríssimo Moacir: minha primeira opção foi um buquê de flores, mas não havia floricultura na redondeza. Não tinha intimidade para levar a moça à loja, até porque o clima não parecia favorável. Não precisei perder tempo (e dinheiro) dando livros a quem não os leria. A repercussão que o assunto teve foi muito mais veemente para todos os personagens - o próprio café imprimiu cópias do texto e expôs no ambiente e sob o tampo de vidro das mesas.
ResponderExcluirA verve desse amigo é realmente deslumbrante!!
ResponderExcluirQue bela narrativa, mestre. Veja que voce me transportou para o Bar do Ponto, a "sopa" de Colete, a sinuca de Chagas nos velhos e bons tempos de Santa Cruz.
ResponderExcluirCaro Heraldo, mais uma vez me deleito com suas cronicas.Nesse frequentar de cafés e boutiques a gente vai formando o perfil tao irregular da nossa sociedade. Parabens, amigo. Fico esperando ansiosamente a proxima! abraco amigo.
ResponderExcluirQuerido HP, obrigado por mais uma viagem de três minutos através de seu texto escorreito e emocionante. A gente tem tanto a aprender com as pequenas coisas da vida, não é mesmo?
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