Francisco
Bendl
Antes de ser
taxista e depois que dei baixa do Exército, já casado e com filhos, a solução
para um rendimento compatível com as necessidades da família era ser
vendedor-viajante.
Na década de
setenta, no seu início, não havia celular, computador, Fax, as linhas
telefônicas eram um insulto à paciência, pois se levava horas a fio uma ligação
de Uruguaiana a Porto Alegre, por exemplo.
Não havia
asfalto em mais da metade do RS, que se caracterizava por diferentes tipos de
solo, exigindo perícia dos motoristas e bons carros quando chovia, naturalmente
tração traseira, os indefectíveis fuscas!
Trabalhei em
quatro multinacionais durante 36 anos a fio. Três eram ligadas a medicamentos,
sendo duas veterinárias e uma com linha para humanos, denominados produtos
éticos, sem venda ao público, apenas através de receitas médicas ou fazendo
parte das linhas de aquisição dos hospitais após aprovação do conselho
farmacêutico daquele estabelecimento. A outra era um complexo industrial
poderoso.
Ao sair do
Exército, tive de me adaptar ao mundo dos civis, mais competitivo, selvagem,
indisciplinado, arrogante e prepotente que os superiores hierárquicos que eu me
defrontara na caserna!
No entanto,
eu tinha comigo a necessidade, condição que não permite barganha, negócio, é
seguir em frente e não reclamar.
Viajar e
deixar a esposa sozinha com um filho foi uma decisão difícil, mas era a solução
para se ter uma vida mais amena. Tanto ela como eu deveríamos nos adaptar às
ausências um do outro, recém casados, apaixonados, e os hormônios determinando
a intensidade desta relação.
Fora de casa,
tive de me adaptar as circunstâncias e dificuldades de um profissional que
viajava para vender, levar informações, aperfeiçoamentos, novidades a
comerciantes, médicos ou hospitais, pois éramos os agentes desta atualização,
ao mesmo tempo que eu aprendia os horários para almoçar e encontrar uma vaga em
hotel após o entardecer.
Os
restaurantes de pequenas cidades ou à beira das estradas tinham seus horários,
e chegar após as 13 h era comer uma comida fria ou restos, então quando em
situações deste tipo eu comprava um pão e uma lata de sardinha ou de fiambrada
- aquelas em latas de alumínio com uma chave que desenrolava a tampa -, e me
deliciava com aquele almoço ocasional.
Conseguir um
quarto de hotel após às 16 h era ter a certeza que eu teria de tirar o banco do
caroneiro do fusca e dormir naquele espaço, pois não se conseguia lugar. Quando
encontrado, os aposentos não eram com banheiros, havia apenas uma pia. O
chuveiro e vaso eram coletivos, ou seja, se quiséssemos usá-los dentro de uma
certa tolerância à imundície e fedor só de madrugada, antes que a turma
aquanauta se dispusesse a chapinhar na água e transbordar a capacidade do
esgoto sanitário!
Muitos
colegas, experientes, matreiros, usavam a pia do quarto para essas tarefas, mas
eu era grandalhão, apesar de estar em plena forma física, assim a pia era para
escovar os dentes e lavar o rosto, tão somente.
Havia uma
lenda a respeito de se identificar um verdadeiro viajante quando este pedia o
tradicional desconto ao hoteleiro.
O dono do
estabelecimento tinha um questionário pronto, que perguntava o seguinte:
- Limpas os
sapatos com a colcha?
- Usas o
lençol para dar-lhes brilho?
- As toalhas
de banho e rosto como esponjas de banho?
- Fazes as
necessidades fisiológicas na pia?!
- O
sobre-lençol é utilizado para não deixar vestígios de sexo solitário e
libidinoso?!
- Nada fazes
desta lista?!
- És uma
pessoa educada e civilizada?!
- Então não
tens descontos, pois viajante não és!
Da mesma
forma, percebíamos quem dirigia bem ou não, bastava que chovesse.
Aqueles que
chegassem atrasados ao hotel tinham atolado durante o caminho, e os que haviam
conseguido um quarto eram os que sabiam se desvencilhar do barro.
O meu início
como vendedor e propagandista veterinário foi com um jipe!
Sem problemas
no barro ou nas estradas ruins, menos quando eu transitava em estradas
asfaltadas, quando o utilitário se negava a aproveitar o moderno, o conforto, e
não ultrapassava 70 km/h porque a suspensão ocasionava o tal “chime”, ou seja,
o eixo tremia como vara verde após imprimirmos uma certa velocidade e éramos
obrigados a diminuir a velocidade até a retomada da “normalidade”, afora os
pneus que chiavam em demasia, não ter um rádio, o limpador de parabrisa era
manual e a carroceria de aço, no inverno era um freezer e no verão um forno!
Quando a
empresa trocou os veículos porque não eram econômicos, mas dispendiosos, muita
oficina, e pouco rentáveis em percorrer distâncias e nos deram flamantes
fuscas, foi sair de um Gol, atualmente, para uma BMW, com seus requintes tecnológicos!
O fusca tinha
rádio, a maravilha do século; o limpador de parabrisa não era manual; o
carrinho andava até 120 km/h no asfalto; no barro era valente, pois tracionava
nas rodas traseiras e, em comparação ao barulhento jipe, o VW era silencioso!
A comida era
o churrasco, por excelência. Os restaurantes serviam na maioria das vezes a
predileção do gaúcho, a carne mal passada ou não. Mas comer esta iguaria
diariamente era problema, então quando à noite encontrávamos algum restaurante
na cidade que servisse um à La Carte, fazíamos uma festa!
O horário
mais devastador para o solitário viajante, longe da esposa, dos filhos e da sua
casa era a “Hora do Ângelus”, às 18h, quando as rádios do interior entoavam a
Ave Maria!
Vários
desistiam de continuar nesta função pela saudade insuportável do lar, e quem
permanecesse construía em torno de si uma carapaça contra emoções, contra o
tempo fora de casa por uma, duas semanas completas.
Na razão
direta que não podíamos voltar aos fins de semana para casa com o carro da
empresa, e os sábados trabalhávamos até ao meio dia, comprovados pelo malote
que despachávamos pelos Correios com a Nota Fiscal, data e horário mencionados,
percorrer mais 500 ou 600 km até em casa e voltar no dia seguinte era uma
gincana, desgastante, cansativa, e se iniciava uma semana muito cansado.
Mais a mais,
havia somente o trem, que chamávamos de húngaro, pois tinha sido importado
daquele país, e saía somente à noite para a capital, chegando pela manhã, e
tendo de fazer o mesmo trajeto de nove, dez horas de volta, momentos após
termos chegado em casa!
Assim, eu e a
esposa tivemos três filhos em intervalos de dois em dois anos!
“Controlando”
a explosão demográfica através de uma tabela onde dez dias “podia” e dez dias
“não podia”, percebemos que a cada dois anos ela se invalidava e, quando nasceu
o nosso caçula, decidíramos que seria o último.
Eu e ela
tínhamos apenas 26 anos e três filhos!
O advento do
asfalto, dos telefones mais eficientes, do Fax, do telégrafo, os carros
melhores, mais opções de locomoção, inclusive de avião para o interior gaúcho,
encurtaram as distâncias entre a casa e o trabalho, e com a vinda do celular, a
saudade quase dissipada pela voz da esposa e dos filhos que se podia ouvir em
qualquer momento e ocasião.
Tenho este
período de viajante como o aperfeiçoamento do que aprendi no quartel.
Sozinho, eu e
as minhas decisões, viajar era ao mesmo tempo voltar são e salvo – muitos
amigos pereceram neste meio tempo em desastres automobilísticos – em um
intermitente ciclo necessário e insubstituível, que exigia nossos esforços por
completo, desde a força mental quanto física, emocional quanto equilibrada, de
modo a se manter os objetivos determinados quando se saiu de casa, um melhor
sustento à família, e a possibilidade de se comprar um dia uma casa, e ter um
carro mais ou menos atualizado.
Na verdade
intenções simples, porém com riscos graves de instabilidades familiares e
falecimento do pobre do viajante, quando não se defrontava com as tragédias
conjugais, que se traduziam no encontro de um novo amor para ambos durante as
ausências naturais pela profissão do chefe da família ou também conhecidas
vulgarmente como traições, um dos preços caros que se pagava pela solidão!
E se o
viajante não encontrasse nele mesmo as razões pelas quais decidira pela
profissão, se tornava infeliz, e buscava freneticamente pelas noites nas
cidades onde se hospedava a companhia de alguém que pudesse lhe trazer uma
satisfação mesmo que fortuita, ocasional, mas tão necessária quanto o alimento
ou um remédio em horas demarcadas.
Conheci dois
colegas que eram casados e tinham NOIVAS no interior, as vantagens de uma
comunicação inexistente à época e meios de se encontrar o profissional no
momento.
Após quase
quatro décadas viajando pelo Brasil, Uruguai e Argentina, de carro, avião,
navio, trem, ônibus, lancha, carroça, caminhão, camionete, Kombi, deixei a
profissão em caráter definitivo.
As estradas
não mais me atraíam, eu estava cansado, conhecia os automóveis muito bem, havia
pernoitado em hotéis simples, luxuosos, alguns portentosos, havia travado
conhecimentos com milhares de pessoas, as mais exóticas e estranhas, as mais
comuns e normais, de acordo com a minha avaliação, claro, e eu queria ficar em
casa com a minha mulher, e ter a companhia dos filhos que iniciavam pôr os pés fora
do lar, sair do ninho, e eu queria estar presente nesta ocasião.
Sem o
conforto de uma renda assegurada, terminei me aposentando no táxi, que é outra
história, de certa forma relatada nas crônicas que o nosso amável e amigo
Wilson tem publicado no seu extraordinário blog.
Como podem
perceber, a vida tem sido um constante aprendizado, que deixa a cada ano as
experiências que enriquecem a existência ou a desvalorizam, dependendo se a
banca aprovou ou não os exames posteriores, como a manutenção da família, a
coerência, a mesma disposição para novas tarefas como esta, de escrever, e a
quantidade de amigos obtidos ao longo deste caminhar constante, difícil e
paradoxalmente nostálgico, pelo tempo que nos cobrou de aprendizado, solidão,
sofrimento, e que se foi embora para sempre!
1) Ótimo texto. Gostei muito de viajar "literariamente" com o Bendl.
ResponderExcluir2) Me fez lembrar que, outro dia, eu e o Moacir, conversávamos (via e-mail) sobre crônicas de viagem.
3) Esse Brasilzão e seus mais de 5 mil municípios tem muitas crônicas nos esperando ... para ler e para escrever ...
Rocha,
ExcluirMuito obrigado por estares lendo as minhas bobagens.
Mas as recordações de um profissional desta área são muitas, principalmente o "trabalho" que se passava em se conseguir hotel, um restaurante ...
Antes que eu esqueça:
NÃO HAVIA CARTÃO DE CRÉDITO, e o pessoal não aceitava cheque, que levavam mais de QUINZE DIAS PARA COMPENSAR!!!
A gente saía de casa para viajar com dinheiro no bolso para QUINZE, VINTE DIAS!!!
BaH, Rocha, meu caro, mas eu sou um Jurássico!!!
Abraço, forte.
Saúde e Paz!
"O dono do estabelecimento tinha um questionário pronto, que perguntava o seguinte:
ResponderExcluir- Limpas os sapatos com a colcha?
- Usas o lençol para dar-lhes brilho?
- As toalhas de banho e rosto como esponjas de banho?
- Fazes as necessidades fisiológicas na pia?!
- O sobre-lençol é utilizado para não deixar vestígios de sexo solitário e libidinoso?!
- Nada fazes desta lista?!
- És uma pessoa educada e civilizada?!
- Então não tens descontos, pois viajante não és!"
Bend, você é um escritor!!!
Eu me deliciei com a sua história.
Saúde e Paz
Ofelia
Ofélia,
ResponderExcluirTenho a honra de dizer que fiz parte daquele caixeiro-viajante romântico, que se deliciava nas janelas dos trens, indo de município em município oferecer o seu material.
Nós éramos a fonte de informação dos comerciantes e médicos do interior, pois levávamos as novidades para o primeiro e os avanços para
o segundo, diante da falta de comunicação.
Por exemplo:
Os jornais de Porto Alegre chegavam em certas localidades à noite!
O rádio era este manancial que se tinha, mas havia pouca penetração, havia limite na Onda Média, e a FM tampouco existia!!!
A verdade é que as senhoras escondiam as suas filhas quando sabiam que vendedores-viajantes estavam na cidade, pois o nosso conceito era de que NINGUÉM escapava do nosso papo, da lábia, além de sermos da capital, senhores do mundo!
Ofélia, quando eu vendia e divulgava produtos veterinários, que eu visitava as fazendas pelo interior de distritos, inclusive, eu me deparava com pessoas que a minha imaginação não concebia que alguém sequer conhecesse a cidade do SEU MUNICÍPIO!!!
Não conhecer Porto Alegre, tudo bem, era longe de certas localidades, mas de seiscentos, setecentos km, mas a sede do município era muito.
No entanto, a maioria dos peões, que trabalhava nas fazendas imensas do RS, com mais de 15, 20 algumas com mais de 50 quadras de campo - uma quadra equivale a 88 ha(!) - tinham até 10.000 bovinos, cinco mil caprinos e 200, 300 cavalos!!!
Também eram conhecidas como "cabanhas" porque se especializavam em criar gado de raça e sem mistura, como havia no gado de corte.
E não havia no RS o Zebú ou o búfalo, só depois que eu deixei o setor, vinte anos após, uma que outra fazenda tentou criar o zebu, a raça Nelore, o branco, e tentou-se a cruza com a raça Charolês, um gado branco de porte, com touros pesando até 1.200/1.400 kg de peso!!!
Não deu certo, claro.
Então, Ofélia, tenho muitas lembranças daquela época, pois estive viajando por mais de 35 anos, razão pela qual conheço quase todo o Brasil, Uruguai e Argentina.
Grato pelo comentário.
Um abraço.
Saúde e Paz!
Caro Francisco ( me permita chamar-lhe de você ). Comentarista novata no blog, amiga do Moacir, devo dizer-lhe que viajei com você nessa narrativa, isso porque lembrei-me do inicio do meu casamento, quando meu marido também viajava à trabalho. Desde o noivado sua função roubava-o de mim quase metade do mês. Nos seis primeiros meses de casados ainda não tinha engravidado- já estava preocupada, pois era o que mais queria - , consultando o médico ele nos orientou à respeito e logo em seguida engravidamos. Temos três filhos homens, total maravilha. Assim como você o meu viajante tem histórias memoráveis de hotéis, economia das despesas, 'causos' referentes a rotina do trabalho, e o meu ciúme. Imagina! Recém casada e o meu bonitão longe ! Mas estou aqui para parabenizá-lo pelos seus textos, estou adorando caminhar com você no seu táxi, nas suas vivências. Seu relato simples e complexo, deixa a sensação de um homem culto, vivido, pai e marido amoroso, além de um ser humano preocupado com o ' outro '. Parabéns !
ResponderExcluirPrezada Dulce Liporace,
ExcluirPosso quase afirmar que por eu ter sido vendedor-viajante por mais de três décadas, que o meu casamento tenha chegado atualmente aos 46 anos de uma união estável, carinhosa e amorosa!
Quero tentar comemorar as Bodas de Ouro, 50 anos, algo que ninguém da minha família conseguiu.
Mas, conforme escrevi acima, quando eu voltava das viagens eu e a cônjuge não tínhamos tempo para brigas, aquelas rusgas naturais de um casal que se vê diariamente.
A gente queria era ... isso mesmo!
Evidente que reconheço o esforço da minha esposa para cuidar dos filhos, trabalhar, dar atenção à casa e sozinha, pois eu estava perambulando ora pelo RS ora Brasil afora.
A minha mulher foi e tem sido extraordinária, razão pela qual mesmo sob tentações inerentes à idade, vinha à tona em minha mente os esforços que ela dispendia em prol da família, de mim, dos filhos, e arrefecia os ânimos de um homem jovem e longe de casa.
Indiscutivelmente a fidelidade foi o alicerce, a base do casamento, apesar do tempo que ficávamos separados.
Eu diria, Dulce, que tanto eu como ela havíamos encontrado as pessoas de nossas vidas, que viveríamos juntos até o fim, e que nada iria nos impedir de sustentar, educar e formar os filhos que tivéssemos, da mesma forma que o casamento seria indissolúvel até um de nós se despedir deste mundo.
Um abraço ao marido, ao colega, que lhe desejo um merecido descanso agora em casa e em tua companhia. O outro abraço é teu, pelo comentário e palavras que me deixaram emocionado, que as agradeço imensamente.
Saúde e Paz, Dulce, e também aos teus amados.
Bendl, o texto da sua resposta é tão bom quanto o post. Quanta vivência.
ResponderExcluirEu me lembrei do Ney Latorraca naquela série em que ele, como caixeiro-viajante, tinha três mulheres, cada uma mais bonita que a outra. E era um sujeito querido e divertido.
Acho que gostava das três.
Gostaria de poder dizer 'Confesso que Vivi'. Mas é para poucos a expressão.
Saúde e Paz, Bendl.
Abraço
Ofelia
Ofélia,
ExcluirMuito obrigado por esta comunicação que temos, que me deixa alegre, animado, e sempre disposto a escrever algo de minhas memórias para diverti-la, da mesma forma que se tornaram inesquecíveis justamente porque a maioria foi agradável, de um aprendizado que me deixou a experiência necessária para seguir em frente e resistir às armadilhas pelo caminho.
Assim, relatando-as, quero que as pessoas compartilhem comigo esses momentos bons, e que e que saibam que todos nós tivemos e ainda temos as mesmas dificuldades diariamente, mas que não podem impedir que a amizade prepondere, as relações amistosas que fazemos questão em manter, e de ampliar esta gama de amigos e amigas espalhados pelo Brasil e sem conhecê-los pessoalmente, apenas pelo que escrevemos e registramos como pensamentos, ideias e conceitos sobre a vida.
Outro abraço, Ofélia, forte e caloroso.
Saúde e Paz!
Bom dia! Que história linda! Me emocionei! Pois também sou vendedor viajante a 25 anos! E amo minha profissão! Vou repassar para outros amigos! Deus abençoe muito!
ResponderExcluirWilson também é meu nome!
Obrigado por este texto!