Moacir
Pimentel
Às vésperas
de um Natal a ser comemorado com a família de minha mulher, resolvemos passar
uma semana em Madri, bem no centro do Triângulo dos Museus, composto pelo Museu
Nacional do Prado, o Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia e o Museu Thyssen-Bornemisza,
os mais importantes da Espanha.
Tontos de
arte e entre "tapas" e tintos, soubemos, graças à comunicação social
espanhola, que as esculturas de bronze de Don Quixote de la Mancha e do seu
escudeiro Sancho Pança, montados nos seus respectivos cavalo e asno prediletos,
haviam sido roubadas da Plaza El Quijote, no belíssimo Bosque de Chapultepec, o
parque urbano da Cidade do México.
Ficamos
consternados, pois a escultura mexicana do Dom é uma obra prima e uma visão
impactante, em meio a todo aquele verde. Por causa da notícia, no dia seguinte,
fizemos questão de começar a nossa "perambulagem" diária, pela Praça
da Espanha, bem no centro da cidade, no nascedouro da Gran Via, a pouca
distância do Palácio Real. No centro da praça e dos jardins que a tornam tão
convidativa, se encontra um grande monumento em homenagem ao escritor espanhol,
poeta e dramaturgo Miguel de Cervantes Saavedra.
Ele é
composto por um conjunto de esculturas, entre elas a do próprio escritor, duas
outras em bronze do cavaleiro Quixote e do escudeiro Sancho além de, em
mármore, duas representações do grande amor do fidalgo: uma da simplória
camponesa Aldonza Lorenzo, a outra da bela aristocrata Dulcinea del Toboso,
quem o delirante amante imaginava ser a primeira.
Inspirados,
resolvemos ir até a velha Madri de Cervantes, a Madri das letras, começando
pela Praça de Santa Ana, para em seguida caminhar pela Calle de Léon, antes de
virar à esquerda na Calle Cervantes para dar uma olhada na casa do escritor,
onde foi escrita a segunda parte de Dom Quixote. De lá até a Calle Lope de
Vega, onde se encontra o convento da Santíssima Trindade, o esplêndido edifício
barroco no qual Cervantes foi sepultado e, na mesma calçada, até a Tasca do
Bacalhau Português, onde se come chorando, nós fomos em um piscar de olhos.
E depois?
Foi só
prosseguir de taverna em taverna, de montadito a montadito, pois em nenhum
outro lugar de Madri a cerveja e o vinho circulam melhor e nas cervejarias e bares
como o Gato Preto ou o Cervantes, a gente sempre encontra forças para mais umas
pernadas e... mais uns copos. Essas paragens de casas com fachadas pintadas com
cores fortes e magníficas varandas - que na ocasião estavam, inclusive,
decoradas com figuras em trajes medievais - pareciam nos hipnotizar e convencer
que pegar o metrô, para a Estação Atocha, era uma grandessíssima bobagem.
Mas, ao fim e
ao cabo, foi o que fizemos. Só que antes de subir o Paseo del Prado na direção
do bendito hotel onde poderíamos,
finalmente, tirar os sapatos, não resistimos e comparecemos, mais uma vez, a um
dos lugares mais obscuros de Madri, obrigatório para os amantes dos livros: na
colina de Moyano, a rua especializada em livros usados. Maravilha!
Durante o
longo tour quixotesco, é claro que respiramos Dom Quixote, o primeiro e talvez
o maior romance evocado pela imaginação humana, publicado há mais de quatrocentos
anos, em 1615. Seria simplificar a obra afirmar que Dom Quixote de La Mancha
nos leva pelos olhos e mente através da paródia, do burlesco, da comédia até à
conclusão aparente de que não há mais lugar para heróis neste mundo.
Li pela
primeira vez o romance O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha com dez
anos de idade, na tradução de Almir Andrade e Milton Amado, para a José
Olympio. Fiquei, confesso, viciado. Há vinte anos reli o romance traduzido, em
1876, pelos portugueses Viscondes de Castilho e Azevedo e, finalmente, há
exatos dez anos, tive o prazer de ler O Engenhoso Fidalgo D. Quixote da Mancha
- Primeiro Livro, numa tradução elaborada a quatro mãos, por uma dupla
bilíngue: o brasileiro Carlos Nougé e o espanhol José Sánchez, que foi
publicada pela Editora Record. Um texto que sabe à primeira tradução lusitana
mas que é bem mais legível. Continuo esperando pelo segundo livro. Dizem os
doutos que os grandes livros da humanidade deveriam ser relidos a cada década,
pois os indivíduos evoluem.
Aprecio o
livro, em primeiro lugar, porque ele trata do mundo dos livros e seu
protagonista é obcecado pela leitura. O romance também nos faz passear por
vários estilos de escrita, de narrativa, de “contação de estórias“, me
provocando a necessidade de conhecimento através de outras leituras. A história
de Dom Quixote contém e realiza todas as possibilidades do romance, inclusive a
de inventar-se por dentro.
O sonho louco
de Dom Quixote era o de se tornar um personagem de ficção. O fantástico da
história, entretanto, é que ele já era um personagem de ficção. (rsrs) Ou seja,
melhor elogio à inventividade humana nenhum outro escritor ainda conseguiu escrever.
A ideia que concebeu o romance é alucinante. Um idoso e solitário homem
entregou-se de modo tão total à leitura dos romances de cavalaria que
colecionava, que eles transformaram o seu cérebro.
E, a partir
do que lera, ele criou um mundo diferente e nada mais pode impedi-lo de montar
o seu velho pangaré, se transformar em cavaleiro andante, encontrar todas as
aventuras imaginadas e corrigir os males do mundo. Achando pouco o delírio, o
cara induziu o vizinho, um camponês pobre e ignorante, chamado Sancho Pança, a
montar em um jumento para acompanhá-lo como escudeiro.
O cavaleiro
que só vira o mundo no espelho de seus amados livros passou a confundir
estalagens com castelos encantados, moinhos de vento com gigantes e prostitutas
com princesas exiladas. Só podia dar no que deu: em uma obra prima e em
problemas intermináááveis.
Dom Quixote,
em seus delírios, pode tudo apesar de ser velho e frágil. E o que é pior, um
ridículo e obsoleto homem honrado confundido pela diferença entre o que ele
imagina e o que acaba por ser o caso, mas invencível na negação de que o mundo
de sonho, da sua concepção, é inconcebível.
Em segundo
lugar, o livro é obrigatório para quem estuda ou se interessa por literatura,
já que a loucura do fidalgo é contagiosa e o livro de Cervantes tem contaminado
sucessivas gerações de autores, tanto na composição de seus enredos quanto na
construção de seus personagens. Foi o caso de Daniel Defoe, Walter Scott, Mark
Twain, Charles Dickens e mesmo James Joyce. Também foi fortemente influenciado
por Dom Quixote o francês Gustave Flaubert, cuja heroína Emma de Bovary era uma
Dona Quixote da gema, fugindo do tédio de sua vidinha provinciana através das
pretinhas dos romances que devorava.
Quem mais se
deixou tocar pela magia do cavaleiro de Cervantes? Sem dúvida o
russo Fiódor Dostoievski, o americano Herman Melville, o argentino Jorge Luís
Borges, e o nosso Bruxo do Cosme Velho, o grande Machado de Assis, que já
chegou até mesmo a ser apelidado de “Machado de La Mancha”.
Se, por um
lado, a maior homenagem que uma cultura pode fazer aos clássicos de sua
literatura é traduzi-los em outras criações literárias e em outras línguas, por
outro lado, nenhum elogio é maior do que transformar um livro em nossas
próprias lendas, ditados, provérbios e verbalizações cotidianas. Se lembro das
famosas aventuras do fidalgo, vejo que delas o que ressoa em nossa cultura é a
expressão "moinhos de vento" e abstraio que não há limites para a
imaginação humana e que o nosso herói - ou autor! - sabia disso.
Como se não
lhe bastasse tamanha fama, Dom Quixote saltou para outras paragens artísticas e
linguagens. Talvez os exemplos mais evidentes dessa acrobacia sejam as
múltiplas esculturas e as ilustrações feitas do Dom Quixote por Gustave Doré,
Pablo Picasso, Salvador Dali e, em meados do século XX, quando Cervantes
tornou-se “fashion” de novo, por Roc Riera Rojas que ilustrou, magistralmente,
uma edição especial que se tornou peça para colecionadores.
Don Quijote y Sancho Panza - Ilustração de Roc Riera Rojas |
Da mesma
forma, são inúmeras as versões musicais de Dom Quixote. Já em 1614, um ano
antes da segunda parte do romance ser publicada, no Palácio do
Louvre, em Paris, um balé chamado Don Quichotte Danse foi apresentado ao
distinto público. Em seguida, muitas óperas deram o ar da graça delas, nascidas
das partituras de Purcel, Antonio Sallieri e, mais recentemente, Jean Kurt
Forest.
Dignos de
menção são ainda o poema sinfônico "Don Quixote”, de Richard Strauss e o
álbum L'Homme de la Mancha por Jacques Brel. Como esquecer as suas busca e
missão sendo cantadas pelo grande Brel, muito antes da versão do Chico ser
cantada pela Betânia?
Em 1998, o
disco La Leyenda de la Mancha foi gravado pelo grupo de rock espanhol Mago de Oz, inteiramente inspirado pelo
protagonista de Cervantes e recheado com canções inesquecíveis como Molinos de
Viento e La Insula de Barataria. Dia destes, a banda Coldplay fez mais um
carinho no cavaleiro com a canção Spanish Rain.
Nos anos sessenta,
vi o filme com o Cherkasov no papel do Dom. Aos dezenove anos assisti outro Don
Quixote, estrelado por uma companhia australiana de ballet, no qual Rudolf
Nureyev girava mais do que as pás dos moinhos, eclipsando o Robert Helpmann no
papel de um fidalgo de fragilidade inigualável.
Em 1972 uma
nova versão cinematográfica do Quixote foi lançada, dirigida por Arthur Hiller
e estrelada por Peter O'Toole e Sofia Loren. Fez furor e foi um enorme sucesso
de bilheteria. Mas os versos do Sonho Impossível no musical Homem de La Mancha,
que eu assisti na Broadway em 1977, com Richard Killey nos papéis de Cervantes
e de Dom Quixote, para mim roubaram todos os shows. A maior obra do
Renascimento europeu, não soa como prosa no palco, recitada por criaturas de
carne e osso. Parece verso e, é claro, esta questão "poética" me
parece estar no centro do paradoxo desta obra sobre enigmas: o sonho e o
ridículo.
Jamais
assisti a filme ou peça que fosse melhor do que o livro original, mas, de
qualquer forma, todas essas versões da obra de Cervantes deram a Dom Quixote
uma visibilidade mundial. O Quixote do Rex Harrison para a BBC e o Alec Guiness
no papel do Monsenhor Quixote, de Graham Greene - um debate sobre a
pós-ditadura e o comunismo e a fé - foram grandes homenagens ao simplório santo
e ao louco sublime que jamais desistiu do caráter sagrado do que pode ser
imaginado, mas não chegaram aos pés da performance cinematográfica de O'Toole.
E a partir
daí, Dom Quixote da Mancha, que tinha sido reduzido a uma de duas identidades -
o idealista que combatia as injustiças ou o louco varrido que queria a todo
custo se tornar um personagem literário - foi abstraído como ambos e mais, como
a multiplicidade de suas facetas e percebido como genial sim, exatamente por
ser herói, palhaço, sábio e santo ao mesmo tempo, por nos confundir e fazer
pensar, já que nenhum dos seus rótulos sozinho dá conta da sua imensa
personalidade e verdade infinita.
Talvez os
filmes e os musicais tenham levado as pessoas ao livro e nele a perceber o
delicado sistema de relativismo tecido por Cervantes para o personagem fidalgo
que, por exemplo, vai pelas páginas transformando derrotas em vitórias,
considerando estas tão naturais quanto aquelas, em um mundo que é "um
carnaval onde tudo se confunde".
Ensinaram-me
que Dom Quixote foi a novela primordial, a primeira onda de zombaria ao
Renascimento, a despedida do grande romance medieval, de cavalaria, La Morte
d'Arthur e da heroicidade. Mas foi? Conversa fiada. O meu Renascimento - e dele
Dom Quixote é o épico cômico supremo, a obra prima literária maior e mais
abrangente - soma tudo e todos de Micheangelo a Shakespeare, as grandes
catedrais, as histórias do rei Artur do Mallory, a Monalisa, os Davis, a Dafne
de Bernini se transformando em árvore de mármore, a decoração do Domus Aurea
onde membros humanos viram ramos, flores, sereias e conchas. A nudez humana
tomando de assalto a Capela Sistina, Rafael, Caravaggio e Macbeth sendo
assombrados por todos os espíritos do mundo e portanto sendo Dom Quixote.
Muito se fala
da loucura do personagem. Tudo o que desafiava os seus sonhos de romance, honra
e justiça, cada afirmação da realidade do mundo, cada negação absoluta da
fantasia tornava-se alguma força maligna para o nosso cavaleiro. Então, faz
todo o sentido essa loucura que, em algum nível, é irrefutável, porque apesar
de toda a humanidade e sensatez de Sancho Pança, evocadas a cada capítulo dessa
comédia maluca, a coisa mais real nesta obra é o Dom delirante, louco em sua
armadura improvisada e com a cabeça cheia de fantasias.
Só que às
vezes, é impossível discordar de Dom Quixote. A beleza de sua própria donzela,
da sua gloriosa Dulcineia, que na verdade era uma garota suada que salgava a
carne dos porcos, não tem como ser negada. Parte do que torna Dom Quixote tão
notável é a maneira pela qual Cervantes construiu o mundo do seu protagonista,
em volta da vida cotidiana. Quixote salta fora da real para corrigir o que
nela, na verdade, está errado.
Sim, o fidalgo
provoca o riso, mas como precondição do saber: saber o quanto não se sabe,
saber que a realidade toda não é acessível aos humanos, saber que a fé é
necessária. Fé que não vem da divindade, mas sim da sua própria ficção, que
pode ou não tomar a forma do divino. Trata-se de uma fé que não delega nem
implora, antes se responsabiliza pelo que crê e cria.
A loucura de
Quixote permanece loucura - e, na prática, é muito engraçada - mas também é uma
feroz crítica à crueldade do mundo. Nem por um momento se duvida que o Dom seja
uma figura de grande nobreza de espírito, do tipo mais profundo e pungente,
porque tudo o que é ridículo sobre ele é inseparável do seu desejo inabalável
de fazer o bem e de seguir o sonho.
Quase tão
maravilhoso quanto o Dom é o prezado Sancho Pança. Aliás essa amizade aí, entre
tão exatos contrários, é uma das mais belas páginas da literatura humana. É
interessante verificar o quanto o mundo desinformado e semialfabetizado possui
a astúcia e a sabedoria de uma sociedade que não aceita a loucura, mas honra os
aflitos e se inclina para os sensíveis, para os grandes tocados por Deus, como
dizem os árabes.
A figura do
fiel escudeiro de Dom Quixote é um dos personagens supremos da literatura,
talvez só se comparando - e mesmo assim de longe! - com o Leopold Bloom no
Ulisses de James Joyce. Sancho Pança é a voz para sempre razoável do estúpido
adorável, tentando transmitir, em doses homeopáticas, seu senso comum ao louco
transfigurado que é o sal da Terra, a pimenta do livro e a sabedoria do mundo.
Dom Quixote é
o insano mais amável das letras, uma personagem de majestade imperfeita, mas
extraordinária. Sancho Pança é o sujeito de confiança, com os pés firme mas
gentilmente plantados no chão, que defende o seu senhor como se intuísse que jamais
teria destino maior do que cuidar da obstinada criatura-caricatura e que viver
a loucura de Dom Quixote seria o mais perto que jamais estaria de Deus.
Nada nessa
narrativa é mais comovente do que crescente apego e admiração mútuos do
cavaleiro e do escudeiro. Cada um respeita profundamente a sabedoria do outro,
cada um é influenciado pela personalidade do seu avesso. O cavaleiro insiste em
tratar o escudeiro com as cortesias devidas a um rei, e Sancho, ao fim e ao
cabo, declara que nem todos os reis do mundo poderiam tentá-lo a não mais
servir o seu senhor.
Dom Quixote e Sancho Panza - gravura de Gustave Doré |
O que pensar
e, mais importante, o que terá pensado o
criador, desses dois homens? Será que não somos todos, ao mesmo tempo,
Quixote e Sancho? Será que não somos todos um pouco doidos de pedra, não com o
êxtase de Dom Quixote, nem com a loucura parcimoniosa de Sancho, mas com outra
espécie de loucura mansa, um compromisso improvisado entre a fé e a
dúvida? Será que todos os da nossa
espécie não têm a sua cota de sentimentos quixotescos em algum lugar da alma
funda?
Será que
viver bem não seria simplesmente a alternância destes dois estados de espírito,
do humor de Quixote para o de Sancho, e vice-versa, que parecem dividir entre
eles, na estrada, aquilo pelo qual vale a pena viver? Um homem com o humor do
Sancho seria um ladino agradabilíssimo enquanto que um homem com o humor de Dom
Quixote seria algo muito parecido com um santo. Há que fazer, dentro de nós,
com que as nossas contradições conversem, pois não se pode, a não ser às custas
de muito sofrimento, viver dividido. Acredito que o quixotismo é uma qualidade
universal. Sem as nossas quixotadas ainda estaríamos nas cavernas e sem os
nossos lados sanchos morreríamos todos do miocárdio na mais tenra juventude.
De todo
jeito, atos de rebelião ou de reforma são sempre quixotescos, pois o reformador
visa minar o sistema já existente a fim de transformá-lo. Inácio de Loyola,
fundador dos jesuítas, e Francisco de Assis, o primeiro dos franciscanos,
tiveram trajetórias visionárias, para muitos fanáticas. Santa Teresa,
Joana d'Arc, Martin Luther King e Gandhi viveram, sofreram e conquistaram as
suas visões quixotescas. Contra todas as probabilidades, contra a força das
instituições estabelecidas, contra a crença dos costumes existentes, tais heróis
quixotescos se opuseram a tudo, tendo como armas o sentimento, a integridade da
sua fé e a força de vontade.
Acho interessante como, enquanto buscam a verdade ou a justiça, os Quixotes verdadeiros, os heróis de carne e osso, têm uma visão interna tão forte que enxergam como ilusão, as aparências externas. E é esse o encanto do livro de Cervantes. A clareza da visão quixotesca é exemplificada no livro de forma lapidar. Quando, por exemplo, o fidalgo em vez de ver duas prostitutas decaídas, enxerga senhoras de alta estirpe e, em seguida, as mulheres respondem às suas amabilidades impecavelmente. Só se pode concluir que a força da vontade do cavaleiro forçou as mulheres a fazer com que suas identidades externas concordassem com as imagens idealizadas pelo maluco.
Esta noção também concorda com um truísmo psicológico: se um homem antecipa o desempenho inferior de outro homem, ele irá receber o que espera. O inverso também é verdadeiro. E o gentil e engenhoso cavaleiro que desejava a imortalidade através dos seus atos, nos deixou apenas a sua história para eternizar o seu princípio de vida. Sucessivas gerações de leitores, pouco dotados de poderes, força de vontade e de imaginação para serem, eles mesmos, quixotescos, há mais de quatro séculos leem a biografia do valoroso cavaleiro de La Mancha e, como Sanchos, participam de suas visões, as desfrutam e, esperemos, as entendem.
Se entendemos que o quixotismo é uma materialidade que desafia a vontade humana, a tentativa de fazer de uma visão uma realidade, estamos falando da história da nossa espécie. Não foi só Ícaro quem experimentou aquelas asas. Ao expressar e desenvolver a personalidade quixotesca do seu herói, Cervantes descobriu e definiu uma avenida iluminada de auto expressão e de exaltação da alma humana.
Assim, não importa se Dom Quixote é uma paródia da cavalaria, um palhaço, um herói ou um louco de pedra. Não interessa que as utopias continuem inaceitáveis em um mundo onde os valores absolutos não podem sobreviver. Não nos desanima que, embora muitas vezes triunfem, os cavaleiros andantes devam, finalmente, enfrentar a realidade. Sabemos, como dizia o poeta, que a única vida que temos é a que tem que pensar. Mas pensar também é... CRIAR.
Então, certamente, Dom Quixote de La Mancha continuará a inspirar todas as artes por mais quatro séculos, pois Dom Quixotes somos todos nós. O velho fidalgo louco continuará para sempre indelevelmente vivo e em liberdade em nossas imaginações, nos revelando em seus sonhos impossíveis (quem sabe?) a mais funda qualidade do espírito humano.
Moacir,
ResponderExcluirParabéns por ter colocado o dedo na ferida da contradição humana quando nos sugere viver alternando os 'humores' de Quixote e Sancho. Lembra quando Dom Quixote deixa de ser maluco e o Sancho pede a ele para voltar as maluquices, porque sem elas a vida tinha ficado sem graça? Acho que queremos ter juízo e precisamos da segurança de uma vida sem surpresas como o Sancho, mas não resistimos aos sonhos como o Quixote. Talvez por mostrarem tão bem esse conflito Dom Quixote e Sancho são um sucesso. Nas páginas do livro ou no filme experimentamos a loucura deles sem riscos em vez de viver as nossas e terminar num hospício.
Um abraço
Outro grande texto, Moacir, no qual me chamou a atenção a maneira como você descreveu a influência da leitura no cérebro do personagem. Hoje mais do que nunca somos como esponjas absorvendo tudo, sendo programados. Talvez devêssemos refletir mais sobre o que lemos. Todas as mídias continuam envolventes, capazes de nos fazer acreditar que o que escrevem é a própria realidade. A ficção está de plantão nas redações e na internet, nos roubando a consciência e o senso crítico.
ResponderExcluirOlá, Moacir. Esse seu texto primoroso é de uma magnitude inigualável. Você nos leva a passear primeiro por Madri, observar os museus, perambular pelo centro da cidade , fazer um tour quixotesco, entre saborear quitutes e vinhos e apreciar as esculturas de Quixote. Como não aprender e tirar proveito dessa narrativa ? Passamos pelas músicas, obras teatrais, , pintores famosos, e ganhamos um link fantástico e emocionante. Suas pretinhas, mostram o ser humano maravilhoso sensível que você é. Foi um presente do dia dos pais. Obrigada ! " Não importa saber se é difícil demais, quantas guerras terei que vencer por um pouco de Paz ". " Enfim seja lá quando for,vai ter fim a infinita aflição, e o Mundo, vai ver uma flor, brotar do impossível chão ".
ResponderExcluirOi Moacir, torci para que seu texto ainda estivesse aqui hoje. Ontem o dia esteve estranho.
ResponderExcluirQue abrangente a sua análise de Quixote e Sancho. Li e voltei a reler alguns trechos, algumas partes.
Gostei especialmente deste pedaço resumo: "Dom Quixote é o insano mais amável das letras, uma personagem de majestade imperfeita, mas extraordinária. Sancho Pança é o sujeito de confiança, com os pés firme mas gentilmente plantados no chão, que defende o seu senhor como se intuísse que jamais teria destino maior do que cuidar da obstinada criatura-caricatura e que viver a loucura de Dom Quixote seria o mais perto que jamais estaria de Deus.
Nada nessa narrativa é mais comovente do que crescente apego e admiração mútuos do cavaleiro e do escudeiro. Cada um respeita profundamente a sabedoria do outro, cada um é influenciado pela personalidade do seu avesso. O cavaleiro insiste em tratar o escudeiro com as cortesias devidas a um rei, e Sancho, ao fim e ao cabo, declara que nem todos os reis do mundo poderiam tentá-lo a não mais servir o seu senhor".
Você está me dando trabalho 'para casa', como se dizia antigamente. Eu, que só li Dom Quixote em livro infanto-juvenil, me senti obrigada a medir a intensidade de suas palavras num texto vigoroso.
Já são dois os livros. O desconhecido (pra mim) O Brilho do Bronze e agora a visita a Dom Quixote de La Mancha.
Preciso andar ligeiro ou, a continuar desse jeito, em breve terei uma fileira de livros me esperando, o que não é nada bom do ponto de vista da leitura. Vira aflição.
Bom dia, Moacir. Que você tenha vivido bem o dia de ontem, dia dos pais.
Abraço
Ofelia
1)Importante mensagem de Moacir, belo texto sobre esse livro "eterno". A mensagem da fraternidade humana: "Dom Quixote somos todos nós". Concordo plenamente.
ResponderExcluir2) Agora uma interpretação que poucos conhecem:a historiadora francesa Lucienne Julien, em seu livro "Os Cátaros e o Catarismo - do Espírito à Perseguição", edições Ibrasa, 1993; nos fala às págs. 148 a 150 que "a influência Cátara manifesta-se de outra forma no Dom Quixote"
3)Catarismo foi uma FÉ Neotestamentária muito forte, dos primórdios do Ensinamento de Jesus até serem dizimados na Idade Média, ainda hoje na França existem ruínas do apogeu cátaro.
4)Kardecistas hoje se dizem continuadores da obra cátara (Katharós = amigos de Deus), da mesma forma, maçons, rosa-cruzes e outros esotéricos. O Katarismo está ressurgindo.
5) A autora diz que vários textos literários ocidentais foram influenciados pela Doutrina Kátara.
6)Há fortes indícios de que missionários budistas asiáticos dialogavam frequentemente com os Kátharos.
7) Parabéns Moacir !
Informando:
ResponderExcluir1) Dulcinéia, segundo o Esoterismo Cátaro é a Verdade.
2) O Caminho Cátaro é Doce = Dulce... a Verdade é Doce
3) Cervantes Cátaro. Ser antes (Cervantes) de tudo Amigo de Deus.
4) Dulcinéia = vivenciar a Doçura
Moacir, ontem tentei postar, e agora repito, por não estar aqui.
ResponderExcluirRealmente Dom Quixote é um ícone e mesmo quem não leu o livro como eu se encantou com a história ou em algum resumo infanto-juvenil ou no filme. Mas lembro que no colégio estudei que Dom Quixote e o Policarpo Quaresma de Lima Barreto eram personagens parecidos. Por causa das leituras levadas ao pé da letra, do entusiasmo que defendiam seus valores fora de moda e das loucuras e projetos sem pé nem cabeça. Lembro que ambas as histórias no começo eram divertidas mas acabavam mal em fracasso e desilusão. No caso do Policarpo no triste fim do título do livro. O seu post me deu vontade de deixar a preguiça de lado e conhecer melhor o Engenhoso Fidalgo.
Antes tarde do que nunca, me desculpem, é com alegria respondo aos ótimos comentários pois a Flávia nos fala de uma das maravilhosas funções da arte: a catarse! Essa capacidade que a arte tem de nos transportar , de nos fazer viver sem riscos outras vivências e de aprender com elas. Através da leitura , nas telas , no teatro , diante de uma obra de arte, ouvindo música a gente cresce. Já o Márcio abordou uma questão de grande importância, presente na filosofia ocidental desde a República de Platão, na sua alegoria dos prisioneiros dentro de uma caverna, os quais julgavam serem as sombras que o sol projetava lá de fora nas suas paredes,a realidade. As mídias são hoje como aquelas cavernas, projetando factóides sobre nós que, num corre corre sem senso crítico e direito à leituras contraditórias, enxergamos apenas as imagens e artigos e versões e produtos consumíveis que querem que vejamos e os repetimos e compartilhamos sem filtrá-los , ajudando a criar, muitas vezes, uma realidade paralela. À querida Dulce, que tantas lições de vida já me deu e que me deixa sem jeito com os seus elogios generosos e exagerados, digo que feliz somos nós, os viciados na aprendizagem. Obrigado , Ofélia, tive sim um esplêndido dia dos pais. Não se apresse nas leituras. Pra quê? Você já é "do tamanho do que vê " e do que escreve , de forma muito original , aliás. Antônio, dia destes li algo que me fez pensar nos velhos Mestres iluminados : " O futuro tem um coração antigo". E last but not least , à Mônica devo confessar que não li o Triste Fim de Policarpo Quaresma. Vou tomar as providência e agradeço-lhe pela dica de leitura.
ResponderExcluirAbraços para todos e muito obrigado.
Moacir, um texto magnífico e apaixonado sobre meu velho amigo o Fidalgo e sobre a complexidade da alma humana. Provavelmente o melhor, até aqui, dos que você tem nos trazido às Conversas. E que, se levar alguns dos leitores a travar um conhecimento pessoal com esse par incomparável, também por isso terá valido a pena.
ResponderExcluirOfélia, pode ficar tranquila, os posts não saem do blog, desça pela página e verá que vão ficando em ordem, os mais novos na frente.
Pimentel,
ResponderExcluirLi e reli o teu comentário sobre um dos dois maiores livros escritos até este momento, Dom Quixote, pois quem lhe acompanha na grandiosidade é Guerra e Paz!
Quixote é ode à loucura, como bem escreveste, e o personagem de Cervantes é naturalmente um insano!
Mas quem de nós não tem um pouco de louco e médico, como diz o ditado popular, de modo a nos curarmos dos sintomas que consideramos "anormais" ou exagerados?!
Quem de nós não queria ser um herói, e ter cavalariços ou escudeiros ou valetes à disposição e, quando em guerra, voltar para casa e encontrar a mulher amada à espera?
E não seria a nossa vida um tanto quanto quixotesca?!
Não seria a nossa existência um tanto quanto insana quando lutamos contra adversidades que, em princípio, seriam inexpugnáveis?
Não seria o nosso pequeno carro, motor 1.0, sem ar condicionado, com mais de vinte anos de uso, um legítimo alazão, que nos conduz em velocidade e segurança para onde pretendemos ir?
O melhor amigo, aquele que nos compreende, que nos aceita como somos e está sempre à disposição, não seria o nosso Sancho Pança?
Não houve quem dissesse que a vida é uma metáfora? Eu ousei complementar em uma de minhas crônicas do livro O Divã Móvel, que, nesse caso, a existência era um paradoxo, justamente alternando momentos de conscientização do que somos com o sonho do que gostaríamos de ter sido!
E quem pode me dizer se vivemos mais a realidade que a imaginação?
E quem pode afirmar categoricamente que a realidade precisa ser enfrentada, que se dar liberdade à imaginação e viver a sob o seu comando, porém feliz?!
Mil vezes Quixote e a sua exuberância sonhadora e insana, que a asfixia de O Processo, de Kafka, com a vida sendo roubada inexplicável e injustificadamente!
Belíssimo comentário, Pimentel, a sua especialidade, a sua exuberância como escritor e de nos deixar extasiados com seus textos!
Um forte abraço.
Saúde e paz!