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Heraldo
Palmeira
O sol nasce para todos,
principalmente nos janeiros e fevereiros do Nordeste. Num condomínio de
veraneio de classe média, mar lá adiante, sentei à beira da piscina numa
segunda-feira. Leitura e uísque à mão, em pouco tempo estava envolto pelos
grupos sociais organizados com absoluta rigidez.
Meninos e meninas se separam
rigorosamente pela idade e se mantêm distantes na hora de nadar e tomar sol. Se
juntam de noite ao redor de mesas de conversa e jogos diversos – de sedução ou
de pura infantilidade, dependendo da idade.
Os adolescentes são apenas
adolescentes. As meninas, naturalmente mais emburradas nesta fase, enfrentando
as armadilhas das primeiras TPMs, das inseguranças de praxe e mogangas resultantes
de mimos exagerados recebidos de pais e avós. Os meninos, quase sempre
bobalhões, preocupados com músculos e dimensões. Os elos comuns são a
supreendente ingestão de álcool, os smartphones e os aparelhos ortodônticos que
– até isso! – eles conseguem personalizar.
Mais próximos do bar e a meio
caminho da piscina, jovens casais na faixa dos 30 cuidam de filhos ainda muito
pequenos, falam de viagens e grifes com deslumbramento quase matuto, contam
suas vantagens e fazem planos que, fatalmente, um dia lá na frente, descobrirão
distantes da realidade que resultará do passar dos anos.
Num canto, mulheres que passaram dos
40, oscilando entre os modelitos perua ou boneca velha. Biquínis extravagantes,
maquiagem pesada, chapéus meio ridículos, óculos muito ridículos de tão grandes
e cabelos alérgicos a água, unanimemente no modelo palha porque destruídos por
rituais de tinturas e escovas que beiram a psicose. Todas já passaram por
procedimentos dermatológicos pesados ou pelo bisturi, pois envelhecer é verbo
retirado do dicionário muito antes da última reforma ortográfica. As bocas de
todas parecem picadas por abelhas da espécie botox. Reclamam da vida, de
maridos e ex-maridos, do dinheiro que eles agora destinam a amantes e
namoradas. E sentam o verbo nas desafetas ausentes.
Mais perto de mim, o grupo das
senhoras que passaram dos 60. Falam muito baixo. Mas os risinhos nervosos
parecem revirar o baú dos pecadilhos que cometeram nas penumbras das décadas de
50 e 60. Algo como requebrar os quadris às escondidas, guiadas por Bill Halley,
Elvis e Beatles. Duvido que alguma delas tenha sido adepta dos Stones.
Em pouco tempo, o tema muda, as
vozes ganham volume para tratar de um problema entre uma delas e a filha. Nesse
momento, a decana do grupo posta-se como matriarca e dá a palavra final em
absolutamente tudo. “Faça assim, faça assado”. Parece que não é permitido dizer
nada além de amém. Tanto que ninguém ousa reclamar dos bobes solenemente
instalados no cabelo da velha senhora.
No lado de lá da piscina, o grupo
das ninfetas domina a cena. Todas se chamam Patrícia, Bruna, Silvia, Juliana,
Cláudia, Giovana, Maria Isabel. Todas entre 13 e 15 anos, falando de futuro sob
aquela ótica decorada nas salas dos colégios caros que frequentam. Todas
valorizando as dietas alimentares que não apagam celulites e estrias – que elas
nunca me ouçam! Todas interessadas em meninos batizados Felipe, João Henrique,
Eduardo, Fernando, Diego, Carlos, Pedro. Todas falando de filhos com a
estupidez natural da idade.
Uma delas, com ênfase, garante
que sua filha vai tocar guitarra e as amiguinhas ficam deslumbradas. Quase
peguei meu Moleskine para fazer anotações e marcar as datas de um encontro com
o futuro, na estreia dessa Eric Clapton de saias que ninguém pode garantir que
virá ao mundo. Nem cheguei a me mexer na cadeira porque lembrei de algo óbvio:
se depender do gosto musical da jovem mãe
e de toda sua geração, a guitarra não sairá da prateleira da loja. Ninguém
precisa de guitarra em músicas que só falam de chifre, rapariga e cachaça, com
as respectivas suítes corno, raparigueiro e cachaceiro.
Súbito, os avós da guitarrista inaudita chegam com o tio da artista. O menino mal completou um ano de idade. Como a
família tem posses, uma mulata pobre, a ninfeta mais linda de todas, faz o
papel de babá. A sinhá branca, perua por excelência, é implacável com sua
mucama moderna na distribuição de tarefas e no jeito de dar suas ordens.
O sinhô seu marido, depois de
perguntar com desdém “Como é seu nome, mesmo?”, divide com quem está ao redor,
ali na beira da piscina, a revelação de que sua mucama se chama Edilene. E lhe
entrega o sinhozinho, tio da
guitarrista que nascerá daqui a pelo menos dez anos.
A sinhá atravessa a lâmina d’água
para encontrar seu grupo, aquele das mulheres apicultoras. Mantém um olho na
colméia e outro no ambiente, fiscalizando a distância regulamentar entre o
sinhô e a mucama. Afinal, apesar da tatuagem que lhe confere um ar de
modernidade retrô dentro do maiô, ela não tem qualquer chance diante do
magnetismo, da plástica e dos cabelos maravilhosos da menina.
O sinhozinho-tio começa a berrar para entrar na piscina. A ninfeta mais linda de
todas tira blusa e short e se apresenta num biquíni sumário. Amarelo. Contraste
absoluto com sua pele. O pequenino é o último a se calar e por instantes
eternos só se ouve o barulho da água batendo nas bordas da piscina. Aquele
corpo escultural, chocolate, jambo, sei lá, soa como ofensa para todas as
outras ninfetas, peruas, bonecas velhas e senhoras ocupadas em queimar seus
couros ao sol.
Um dia, li em algum lugar uma
explicação genial para a diferença entre ninfeta e lolita: a lolita é a ninfeta
com plena consciência do poder que tem. Para felicidade geral daquela nação
bronzeada, Edilene continuava ninfeta. Inocente da cabeça aos pés. Afundou num
cantinho da piscina com o bebê da sinhá e sumiu na paisagem.
Na verdade, ela estava encantada
com a conversa das ninfetas brancas. Todas meninas da sua idade e sem qualquer
semelhança visível. Distantes um oceano da sua dura realidade, onde as amigas
são Maria José, Das Graças, Das Dores, Da Luz, Biluca, Dalva, Judite, Ketyly,
Daiane, Suellen. Onde escola é ficção, comida é dúvida cotidiana e os meninos
se chamam Chico, Zé, João, Manezim, Raimundo, Bastião, Maicon, Wanderley,
Diolindo, Francinaldo. Meninos que nunca querem romance. E filhos podem
reservar passagem para o mundo pouco depois da primeira menstruação.
Talvez Edilene acreditasse que
nem tinha direito àquele sol que nascera para todos poucas horas antes. O único
para todos que ela conhece se escreve Paratodos, é jogo do bicho. Ali, no
território das patricinhas, das sinhás brancas, das senhoras donas da verdade
ninguém teve sequer a delicadeza de melhorar seu nome, de lhe chamar de
Leninha. Seria perfeição demais para uma mucama, a mais linda de todas as ninfetas
a um passo de virar lolita.
1) Boa crônica. O autor escreve muito bem !
ResponderExcluir2) Me pareceu belo quadro, pintura bem detalhado.
3) Emoldurado com adjetivos precisos.
4)Tela perfeito texto.
Sensacional. Parabéns Heraldo, exatamente assim que quando paro sentada em meio um aglomerado de pessoas, de "tribos" diferentes, vejo as coisas e percebo as pessoas que compõem estas "tribos". Você, Heraldo, como sempre um visionário da sociedade em que hoje nos encontramos. Me senti dentro do seu texto como uma simples observadora!
ResponderExcluirMais uma vez estive lá contigo, meu amigo, vendo e ouvindo tudo, desde o chapinhar nas águas, até os risinhos abafados das já vovozinhas. Só Leninha sorria, sem a pretensão de romper seu silêncio pudico, pois que sua voz ali não cabia. Cheguei a sentir o calor do sol e o gelo de seu bom uísque derretendo-se rumo adentro. Quase me senti refrescada, não fosse o entusiasmo que senti ao viajar para não sei onde e ali pousar e restar dentro de você. Nesta São Paulo fria e chuvosa, ainda cabe um passeio amigo, para apreciar modas e modos que você deliciosamente desvela. Querido Heraldo. Peço-lhe permissão para postar no meu Blog e divulgar para as 4 partes do mundo, o escritor genial que dentro de você espia trechos do nosso humano e prozaico viver, de que raras vezes nos damos conta com tão dramática lucidez.
ResponderExcluirAh! Fiquei curiosa. Os homens. Onde estavam os homens? Já embalados em cotidiana embriagues? Nos campos de golfe ou de ténis? Ou ainda se recuperando das noites de ontem? Suando nas corridas e escapadas de sempre? Pois que tal cena me remete agra, enquanto escrevo, aos tempos de 150 anos atrás, quando crianças e mulheres trajavam as mesmas vestes de veludo e eles, homens ainda usavam saiotes, calças aderentes aos corpos, perucas, pó de arroz e cheiravam rapé.
Heraldo, cronica espetacular. Como sempre.
ResponderExcluirHeraldo, seu texto me fez lembrar do filme 'A que horas ela volta?'.
ResponderExcluirAmigo, você continua com o incomparável dom de nos fazer transportar para o lugar descrito!! Parabéns!
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