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17/08/2016

Bernini


Moacir Pimentel

Quando vou a Roma, quero estar ali, na Via Veneto, onde as fachadas dos prédios são museus, entre a Piazza Barberine - com a sua Fonte do Tritão - e a Vila Borghese com o melhor de Gian Lorenzo, o Bernini, mais conhecido por ser o autor da Fonte dos Quatro Rios, localizada na Piazza Navona, quase defronte da embaixada do Brasil.

Desde garotão, estudando em Roma, a Vila Borghese e seus jardins tornaram-se um dos meus recantos prediletos nesse mundo. Gosto de voltar à Roma da minha juventude onde tenho amigos e sempre fui e sou bem tratado. Depois de alguns anos sem lá pisar, um primeiro jantar numa mesa da calçada do Caffè Strega, com direito a um Brunello de Montalcino, a pasta sciutta, a um saltimbocca alla romana, tudo arrematado com Vin Santo e uns cantuccini...é como estar em casa de volta do desterro!

Saber que bem ali a poucos passos está La Terrazza dell'Eden - onde para comer eu ponho até gravata e aposento as bermudas - que irei perambular pelo Trastevere, passar um dia inteiro nos Museus do Vaticano, olhar para as maravilhas de Michelangelo na Sistina, ver uma exposição fantástica da Frida Kahlo, ir de manhã cedo até as Muralhas Aurelianas e correr pelos jardins da Vila Borghese, faz bem à alma e ao corpo.

É tão bom respirar Roma, pensar na efemeridade dos impérios, nas grandes famílias que a construíram, na Arte ali a céu aberto, graças a Scipione Borghese, por exemplo, tão mecenas e um ávido colecionador das obras de Caravaggio, Rafael, Ticiano e até Rubens, mas muito principalmente, o patrono do incrível talento do napolitano Bernini, um cara genial que foi arquiteto, retratista, restaurador e, acima de tudo, um maravilhoso escultor cujas obras estão por toda a cidade eterna.

Mal posso esperar para ver as coleções da Galeria Borghese, mas é preciso "prenotar". Faço reservas perto da happy hour. Gosto de lá ir, ao cair da tarde - tem menos gente - e após ter relaxado tomando uns mojitos - às vezes um bellini - no Harry's Bar, defronte da Porta Pinciana. E depois de ter alimentado - disfarçadamente! - com migalhas de grissini, os pombos que teimam em frequentar as mesas da calçada, para desespero das garçonetes.

Lá na Vila estão alguns trabalhos menos importantes de Bernini, feitos para decorar e distrair, como por exemplo, a Cabra Amalthea, Zeus e o Fauno e as Almas Abençoadas. São obras mais decorativas. Toda vez que visito à Galeria sinto falta de contemplar o Hermafrodita, um mármore romano - cópia de um bronze grego - que foi modificado, além de restaurado, por Bernini e hoje mora no Louvre. Mas lá se encontram as obras mais importantes de Bernini, excetuado o belo Êxtase de Santa Teresa que mora em um nicho em dourado na Capela Cornaro, na Igreja de Santa Maria della Vitória.

A escultura Enéas, Anquise e Ascânio é pura filosofia pois, estranhamente, nesta vida nos tornamos pais de nossos pais. O Rapto de Proserpina é uma dose de erotismo na veia. É incrível como Bernini trabalhou a pele da musa, a carne pressionada pela força da pegada das mãos violadoras:

By Alvesgaspar - Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=43569138









Já o Davi berniniano, que é um pouco escanteado pelo de Michelangelo, não deveria ser. No seu Davi, Bernini nos mostra o instante no qual o anão tornou-se um gigante. Digna de nota é, ainda, A Revelada sendo despida pelo Tempo. Só o tom do mármore já vale contemplá-la. O jovem artista certamente flexionou os músculos, técnicas e criatividade nestas obras, sua notável habilidade pode ser vista na forma como ele trabalha o mármore como se fosse barro em suas mãos, em vez de pedra, exigindo dele que trabalhe com martelo e cinzel! 
Mas eu sou maluco mesmo é pela obra-prima Apolo e Dafne. É uma das esculturas com mais MOVIMENTO que já vi, pois ela eterniza no mármore a transmutação de uma jovem em planta.

Figurati!


Apolo e Dafne - imagem: http://cdn2.all-art.org/Architecture/images8/bernini/10a.jpg




A inspiração de Bernini para esta composição complexa vem do poema narrativo Metamorfoses, de Ovídio, onde Apolo, o deus do sol, desafia Eros, o deus do amor, para um combate com armas, e nele é ferido e castigado por uma fecha de ouro, que o faz enlouquecer de desejo por Dafne, a ninfa das águas, que embora não fosse uma deusa tinha poder sobre os fenômenos naturais como nascentes e árvores.

Mas a ninfa não desejava Apolo, pois aos deuses fizera a promessa de manter-se virgem. Ora, Apolo era filho de Zeus, estava acostumado a obter tudo o que queria e a recusa de Dafne o excitava ainda mais! Ele não aceitava a rejeição e a perseguia, a ameaçava, se humilhava, implorava, prometia à moça o mundo. Exausta daquele assédio e - quem sabe? - um pouco tentada e com medo de não cumprir a promessa de eterna castidade, ela suplica então aos deuses que:

"Destruam esta beleza que me maltrata ou transformem o corpo que destrói a minha vida, para que Apolo pare de caçar-me e de respirar em seus cabelos".

Nas suas Metamorfoses Ovídio narra que antes mesmo de finalizar a prece Daphne sentiu um torpor "por todo o corpo e seus cabelos se transformaram em folhas dançantes, seus braços ganharam o suave movimento dos galhos e seus pés adentraram a terra como raízes". É exatamente isto que testemunhamos naquele mármore, onde Bernini transforma pele em casca, cabelos em folhas, membros em ramos, dedos em raízes. Só que mesmo nesta nova forma Apollo ainda a ama.

A narrativa conta uma história de desejo e de busca e está cheia de referências ao sentir e ao toque, das quais Bernini usa e abusa e transforma em arte poética usando, surpreendentemente, como matéria a dureza implacável do mármore! E então podemos ver o amor dendrófilo de Apolo pela árvore - um esguio loureiro - "cobrindo de beijos sua madeira flexível, nela repousando o corpo cansado e regando-a de lágrimas e declarando: "Enquanto minha cabeça for embranquecendo a tua folhagem será honrada pelo eterno verde".

Bernini retrata Apolo com um sentimento de grande perda no rosto. Mas há outra dimensão para a escultura se percebemos que a Apolo só foi permitido abraçar plenamente Dafne na fronteira da sua transformação, exatamente no segundo no qual a natureza do seu amor fora, por motivos óbvios, fundamentalmente alterada, quando o seu desejo evidentemente tornara-se incompatível com o seu objeto. O afeto continuou a ter para o mesmo objeto, enquanto o próprio carinho mudou.

É isso que se vê no olhar de Apolo dirigido aos dedos de Dafne em metamorfose, um olhar vidrado mas cheio de promessas de futuro. Neste momento de realização começa a transformação subsequente de sua luxúria em amor, do seu movimento em estabilidade. Ou seja, ainda que sua postura indique uma perda aleatória de equilíbrio, a posição física de Apolo, as suas mãos no corpo da jovem, refletem que Dafne, ao transformar-se, deu-lhe permissão finalmente para que a amasse e "parecia acenar com a copa frondosa em resposta às propostas de Apollo". Por conseguinte, certos aspectos da escultura, especialmente aqueles que tratam de forma imediata do instante da transformação da moça, sugerem uma harmonia criada pela metamorfose, não de Dafne, mas de Apolo: em vez de desejar ele passara a amar. No entanto, nisto tudo há uma fortíssima conotação moralista e então uma pitada de contextualização se faz necessária.

A escultura foi encomendada pelo cardeal Scipione Borghese como a terceira de uma série de quatro obras sendo as outras: Aeneas, Anchises e Ascan, o Davi e O Rapto de Proserpina. As primeiras quatro esculturas mencionadas, parecem ser objetos de desejo naturais para um cardeal romano, pois enfatizam a história das tradições de Roma e cristãs através as figuras de seus líderes pretéritos. Mas por que raios iria querer um príncipe da Igreja, na sua coleção, toda a sensualidade e luxúria que nos encantam, nas figuras apaixonadas de Apolo e Dafne e de Proserpina e Plutão, todos oriundos de mitologia pagã da gema?

A resposta está num rodapé da história, numa inscrição na base da escultura de Apolo e Dafne e na leitura da poesia do Cardeal Maffeo Barberini, o então, futuro Papa Urbano VIII. Em 1620, o ano entre a conclusão de Enéas, Anquises e Ascânio e o início dos trabalhos de Apolo e Dafne, o Cardeal publicou a sua poesia de juventude, intitulada de Poemata, na qual tratava, superficialmente, do tema da caça e da metamorfose de Dafne, dando-lhe uma conotação de crime e castigo. Daí a beleza exterior da Dafne de Bernini contrastando com seu tormento interno, o seu corpo sensual agonizando e a angústia nas expressões.

O futuro Papa, que por óbvio, precisava ser agradado, havia poetado:

"Aqueles que amam buscar as formas fugazes do prazer no final encontram folhas e frutos amargos em suas mãos”.

Bernini esculpiu esta epígrafe na base da sua obra prima em 1625, como um lembrete de que, embora os corpos que esculpira fossem de imensa sensualidade, ao fim e ao cabo, a mensagem era de moralidade.

Nessa complexa teia que Bernini teceu comparando as armadilhas da paixão e da luxúria com o movimento, e em seguida, a imobilidade com a estabilidade do amor divino, ele equilibrou com acurácia e habilidade estes elementos, juntamente com o epitáfio da lavra do Papa que impregnou com os ideais da teologia cristã um antigo poema. As palavras do papa no entanto nos fazem pensar até que ponto a arte de Bernini era ou não patrulhada e se Ovídio concordaria com essa demonização do amor físico.

Essa questão abre a porta para perguntas subsequentes em relação aos deveres morais e éticos da interpretação artística, que, na minha opinião, jamais deveria ser engajada a seja lá o que for, e sim inteiramente livre. Este debate, no entanto, bem excede o escopo deste post.

Bernini, claro, continuou a apreciar as carnes, o suor, as mulheres e excelentes vinhos, seguro de que Apolo e Dafne tinham assegurado para ele a reputação como o artista mais importante da Europa.

A escultura é de tirar o fôlego e nela Bernini manteve a prática de dar às suas esculturas uma visão central onde rola a ação, mas também e brincando com nossas mentes, forçando o espectador a mover-se em torno da escultura para determinar seu significado e, certamente, exigindo deles uma participação real, uma interação com os mármores observados! Assim o espectador é parte da transformação de Dafne em loureiro, da sua metamorfose da vida para uma árvore de pedra, com um dinamismo tão sublime que gente se maravilha e, sem querer, sem precisar de recados papais, pensa em Deus. A mão que esculpiu aquilo não era humana.


8 comentários:

  1. 1) Obrigado Moacir pela matinal aula de Artes Plásticas, Esculturas, Vida, Turismo ...

    2) Observo a contagem das visitas, vai célere e ultrapassará as 30 mil logo.

    3)Blog de Alto Nível !

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  2. Monica Silva17/08/2016, 11:11

    Moacir, a estátua é linda demais. Amei! Concordo com você que o que é bonito nos faz pensar na mão de Deus sem mais recados. Não é mesmo preciso mais ninguém pra dar uma mãozinha na oração. Pra começar a rezar basta a gente ver aquela mão pegando pedra como se fosse carne e o corpo da mulher virando uma árvore de mármore. Obrigada pelo milagre feito pelas mãos do artista.

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  3. Flávia de Barros17/08/2016, 14:20

    Moacir,


    O seu artigo como sempre nos oferece uma visão muito abrangente do tema. Não creio que nenhum artista seja imunizado contra a política, mas se tiver talento supera as armadilhas e faz arte genuína. Como fez o Bernini que descobriu como aprisionar o movimento. Registro ainda a beleza das palavras que narram o final desse triste amor não consumado: 'Enquanto a minha cabeça for embranquecendo a tua folhagem será honrada pelo eterno verde'.


    Sem querer ser intrometida, peço a você para nos falar qualquer dia sobre o Davi de Bernini que graças ao de Michelangelo, passa batido. Obrigada por nos escrever sobre coisas tão bonitas e um abraço.


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  4. Dulce Liporace17/08/2016, 15:33

    Moacir, isso é covardia ! Você colocou o dedo na " ferida " , pois são minhas esculturas preferidas, isso não é novidade, pois já trocamos figurinhas sobre essas maravilhas. Pior ! Tenho que voltar à Roma para uma visita no Museu da Villa Borghese , qdo lá estive não consegui bilhetes de entrada. Vou sair daqui com reservas- se possível para. dois dias. Ver cada detalhe, minuciosamente do corpo, dobras, movimentos, transparências. Ah...Bernini ! E as pinturas de Caravaggio ? Admirar essas obras com toda " pompa e circunstância " que Roma nos propicia, é tudo de bom na vida. Falando em Apolo e Dafne, os ramos de loureiro ficaram associados à Apolo nas suas conquistas e até hoje são usados nos jogos Olímpicos - que estão em pleno vapor aqui no RJ. Felizes das pessoas que podem usufluir desses seus textos de aprendizagem. É uma troca de conhecimento, energia e sabedoria. Obrigada mais uma vez , amigo. Abraços, Dulce PS : Parabéns sr. Wilson ( Mano- simples assim ) pelo blog.

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    1. Obrigado, Dulce, o blog é assim por causa de nossos amigos que escrevem nele. E, por favor, é Mano mesmo, "tout court" :)
      É um prazer tê-la comentando aqui.

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  5. Oi Moacir,
    Só faltei dizer "Geme!" para o Rapto de Proserpina. Como é possível criar tal mossa na coxa dura de uma pedra mármore? E a mão ossuda, que me fez lembrar do tempo em que eu sabia quais meses eram de 30 ou 31 dias por esses ossinhos? O escultor é quase um segundo deus.

    Faz tempo fui ao MAM aqui no Rio para ver a exposição de Rodin-Camille Claudel. Uma heresia o que vou dizer. Mas não gosto de escultura em material escuro. O trabalho é bonito? É bonito. Mas não me fala à alma porque perco detalhes que gostaria de perceber. Loucura minha? Pode ser.
    Já na saída do MAM eu quis comprar um quadrinho, dos muitos que eram vendidos como lembrança de Camille Claudel. Minha amiga, que na época trabalhava comigo, me disse: "Fefê, não leva não. Essa mulher era muito torturada, não é bom levar pra casa." Pensei: eu já sou Ofelia, a enlouquecida personagem cujo Hamlet matou o pai dela e a deixou para trás. Camille também foi ignorada por Rodin e acabou no manicômio. Eu, hem?, é querer brincar demais com a sorte. Não levei o quadrinho, ou melhor, não o trouxe. E hoje já não tenho ideia de como eram esses quadrinhos.

    É tudo souvenir, eu sei, mas existe souvenir de outro tipo, com um astral melhor.
    Você comprou algum por aí? Tô falando dos que envolvem arte. O que não deve ser difícil em se tratando de Itália.
    Felizes dias, Moacir. Felizes dias pra você e sua família. Seu périplo parece delicioso.
    Abraço
    Ofelia

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  6. Moacir Pimentel18/08/2016, 12:15

    Ao Antônio eu agradeço pelo constante e amigo incentivo matinal, se bem que de professor de qualquer coisa estou bem looonge. Com a Mônica eu concordo quando diz que essa nossa conversa com a galera santíssima tem que ser pessoal. Para Flávia eu tentarei rascunhar alguma coisa a mais sobre o Davi de Bernini - que prefiro ao de Michelangelo! - assim que for possível. Dulce, sei que o post foi uma releitura mas veja-o como uma homenagem a você e um agradecimento à essa sua paciência infinita de ler os meus arrazoados. Ofélia, nem me fale de Rodin...quem sabe qualquer dia falamos da Camille, tão Suplicante, e do Portão do Inferno -o único Big Bang criativo dele - e de todas as figuras diminutas que dele fugiram para virar gente grande? E não, a minha tribo não é muito de "souvenirs ". Nos bastam os bytes de memória!

    Obrigado e o abraço de sempre para todos

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  7. Francisco Bendl20/08/2016, 12:26

    Não comento sobre o texto brilhante de Pimentel, mas confesso que desconhecia a escultura com a mão na coxa de uma mulher, certamente, com tamanha perfeição!

    Que talento!

    Que sensibilidade!

    Simplesmente eis a excelência, a virtuose esculpidas!

    Apenas pela foto, o texto de Pimentel basta, nada mais se precisa dizer, nada.

    Um abraço, meu caro Pimentel.
    Saúde e Paz!

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